sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5648: Canjadude, a chegada de um periquito (2): Finalmente Canjadude. As primeiras impressões (José Corceiro)

1. Segunda parte de Canjadude, a chegada de um periquito, trabalho enviado pelo nosso camarada José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2010


CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO (2)

Uma necessidade primária dos seres vivos é a conservação das espécies


Já sei o SPM 0028 (creio ser Serviço Postal Militar) da CCAÇ 5, escrevi mais de trinta aerogramas para familiares e amigos, já tinha escrito três ou quatro vezes, mas sem SPM.

A alimentação tem sido boa, aqui há restaurantes cujos proprietários são metropolitanos e a ementa tem pratos parecidos com a metrópole, logo que posso aproveito.

Dia 7 de Junho 1969, levantei-me cedo, dormi tranquilamente na Delegação, as instalações são razoáveis, há, para dormir, espaço reservado a graduados e não graduados, dormi onde quis, pois estou só mais o Amaro. Os mosquitos, é que são o demónio, são presença constante em qualquer local; tendo um ciclo de vida tão fugaz têm que ser muito eficazes, profícuos e prolíficos, para manterem a colónia constante, parece que estão em todos os lados, são aos milhares, não se dão ao luxo de falhar o alvo.

Hoje fiz o meu primeiro serviço em todo o tempo de tropa, com G3, estou de plantão ao Paiol do Quartel de Nova Lamego, está muito calor, mas estou à sombra. Hoje, ouvi, por volta das 23.00 horas, com perfeita nitidez, grandes rebentamentos, foi um bombardeamento muito intenso. Disseram-me que foi o Aquartelamento de Piche que foi atacado, segundo a fonte, houve dezenas de feridos (47) e quatro mortos.

Está um calor tórrido e mortiço, atmosfera carregada e tensa, humidade misturada com as partículas em suspensão ameaçam explodir a qualquer momento, transpira-se preocupação e insegurança, paira incerteza e receio no ambiente, aproxima-se temporal, será chuva, trovoada ou vendaval, o desconforto e a palpitação são gerais, o suor é melaço e teima em não se deixar limpar, está tudo agitado, a brisa está calma, mas as folhas das árvores estão a baloiçar, os mosquitos põem à prova toda a astúcia e rebeldia, para fintar o indígena e conseguir a sua sugadela, as lagartixas, no quintal, andam num frenesim desenfreado e estonteante, como se hoje fosse o último dia das suas vidas, no quartel respira-se desconfiança, há muita movimentação militar, já vieram dois Pelotões de outro Destacamento, saíram três Pelotões para o mato na eventualidade de ataque, estarem a postos, está tudo de prevenção, eu estou de Cabo de Dia ao Comando, é dia 9 de Junho 1969.

Não tem havido nada de maior mas a prevenção rigorosa continua, anda tudo muito nervoso e instável, fala-se que a qualquer momento vai haver ataque ao quartel, à noite fica tudo às escuras e continua a movimentação das tropas, a sair para o mato. Estou de Cabo de Dia à CCS, dia 11 de Junho 1969.

Já sei que amanhã dia 13 de Junho, vem a coluna de Canjadude e vou partir rumo CCAÇ 5. É dia 13, mas é dia de Santo António, que auto-confiança, ainda bem que não sou supersticioso, é preciso calminha, sensatez, espírito responsável e cooperante, partilha do saber, integração e laços de boa camaradagem, haja humildade, força gera força de sinal contrário. Não vale a pena entrar em pânico, ansiedade ou depressão, porque isto cria dependência e dá lucro às multinacionais do medicamento, ansiolíticos e anti-depressivos.

- Tem calma , não queiras prever o futuro, o que for será, não te tenciones com o provir! - Assim me aconselhavam os meus espíritos santos de orelha na altura.

Eu respondia:

- O futuro estrutura-se no presente, é preciso cautela...

De Nova Lamego a Canjadude são cerca de 25km, com a precaução necessária, a coluna progrediu, por questões de segurança mais ou menos a meio, apeamos das viaturas, caminhámos cerca de meia hora, voltámos a montar nas viaturas, agora senti o pessoal mais desinibido, solto, confiante, descontraído, seguro e comunicativo, estávamos a viver o mesmo perigo, o mesmo drama. Via rádio, informaram o Posto de Transmissões que estava tudo OK e que havia periquito para render o Dionísio de Transmissões. Faziam parte da coluna dois Operadores de Transmissões, o José Carlos de Freitas (natural de Guimarães), despreocupado, deixa para lá não me incomodem, calmo, boa pessoa, foi jogador do Vitória de Guimarães e barbeiro na CCAÇ 5, o José Natividade da Silva (natural de Alqueidão), espevitado, reguila, com sangue na guelra, bom camarada, (impressões subjectivas e minhas, reportadas à época, mas tenho a certeza que continuam as boas pessoas que eram, esses bons dons estavam impregnados na personalidade) o Silva, aproveitou-se, e pediu-me para mandar via rádio, a minha primeira mensagem na Guiné, ao Cabo Dionísio, que eu ia render.

Foto 1 > Corceiro a mandar a primeira mensagem, via rádio, entre Nova Lamego e Canjadude. A seu lado José Carlos Ferreira, atrás, do lado direito o Malhadas, natural de Vila Nova de Paiva ido nesse dia também para a CCAÇ 5. Os militares nativos são do 4.º Pelotão. O fotógrafo foi o Silva.

Após a vinda destes dois camaradas, para a metrópole, passaram quase 40 anos e só há dias falei com o Silva. Nestes 40 anos tive só um contacto há 30 anos, com o Rogério Carneiro, que infelizmente, soube agora, já não faz parte dos vivos, o meu respeito. Neste caso também a rendição individual foi madrasta, vinha cada um em sua altura perdia-se o contacto, perdia-se o rasto, éramos relativamente poucos.

Foto 2 > Canjadude > O 1.º Cabo José Carlos Freitas à entrada do abrigo de Transmissões

Foto 3 > Canjadude > 1.º Cabo José Natividade da Silva

Foto 4 > Canjadude > O 1.º Cabo Malhadas, natural de Vila Nova de Paiva

Foto 5 > Canjadude > O 1.º Cabo Amaro dentro de um dos abrigos das Praças

Cheguei a Canjadude, já sou Gato Preto, estou instalado numas termas subterrâneas tipo sauna romanoturcas. Aqui, pia mais fino, dorme tudo em abrigos subterrâneos, cobertos de cibes de palmeira e cimento, está tudo ligado por um serpenteado de valas aos ziguezagues, com 1,20m de profundidade que dão acesso a pontos estratégicos onde se encontram instaladas armas pesadas. Nos pontos mais sensíveis e fragilizados, há bidões cheios de terra para protecção em caso de ataque.

Ao chegar o que mais me impressionou foram as grandes rochas à entrada do Aquartelamento, ainda não tinha visto nada parecido na Guiné, que mais parecem baluartes a dar-nos as boas vindas e garantir protecção e segurança, acolhedoras, pois servem de postos de sentinela.

Foto 16 > Canjadude > O filão de rochas calcárias no solo argiloso, capricho da natureza, que mais se assemelhavam a cogumelos ali nascidos, já que o filão não se prolongava nuito para o lado esquerdo nem para o lado dreito, terminava por ali. Mais parecem pedras esquecidas em contenda mitológica. Zona praticamente plana, a erosão ao longo de milhões de anos, fez o seu trabalho.

Foto 23 > Canjadude > Picada à saída do arame farpado, rumo a Nova Lamego

Foto 24 > Canjadude > Vista aérea > Em primeiro plano os baluartes a dar as boas-vindas à chegada e a oferecer hospitalidade. Vêem-se alguns abrigos, o edifício bloco, a parada, o campo de futebol, a tabanca coberta de arvoredo, a pista de aviação e na continuação desta, a picada no meio da floresta que ligava ao Cheche, cerca de 20Km, de onde foram retiradas as NT. Retirada de Madina de Boé, quatro meses antes de eu chegar a Canjadude.

Foto 25 > Canjadude > Vista aérea, tirada do lado da bolanha das lavadeiras, (nascente). Ao lado esquerdo vê-se a tabanca, na parte central há uma mangueira, junto à parada, por trás da qual se vê um canto do abrigo das Transmissões. Vê-se, em plano afastado, lado direito, o filão das rochas que vai morrer logo mais à frente.

Foto 9 > Canjadude > 1.º Cabo José Corceiro

Foto 10 > Canjadude > O nosso tertuliano José Martins, Fur Mil TRMS a dar um abraço de boas-vindas a José Corceiro

Em Canjadude, passei 25 meses, com poucas ausências; para minimizar o choque de despedidas, com receio que transpirasse o desconforto em que me encontrava e porque tinha a família muito sofrida, devido ao funeral do meu tio, da minha avó e duma tia, com quarenta e poucos anos, faltou-me a coragem de vir de férias à metrópole, temia a despedida, não sei como seria?! Foi muito tempo fora da civilização que eu conhecia, logo, desejava, confinado a um espaço tão limitado em condições tão carenciadas, privado das necessidades mais elementares, sem as quais o ser humano consegue harmonia emocional e física; tentava, conforme podia e deixavam, compensar o não gozo em pleno das três necessidades primárias dos seres vivos, e, como podia, tentava desequilibrar os pólos das baterias. Foi muito difícil a falta de presenças, de carinhos, de mimos, de pequenos nadas, os afectos… era a saudade… a tensão e pressão com contenção de explosão. Cada um refugiava-se e representava o que lhe ia na alma, o que lhe parecia mais plausível: álcool, bajudas, petiscos, escrita, ler, simulações guerreiras e teatrais, afeição a animais, apegados às coisas mais inverosímeis, tentava-se suprimir as deficiências e lacunas do meio a que estávamos expostos, recorrendo aos mais variados hobbies para nos compensarmos, eram necessidades primárias desvirtuadas a actuar!

Talvez tivesse facilitado a minha integração e minimizado o meu desconforto, se o meu código genético tivesse no respectivo cromossoma um gene com aptidão mais guerreira que dominasse o alelo correspondente, ficaria por ventura mais acomodado no teatro de guerra, mas deixava de ser EU, eu batia-me interiormente com as minhas limitações, por valores que queria preservar e dignificar, queria, sem ser lírico ou utopista, (com toda a estima e consideração) continuar a ser amante de diálogos, respeito, consensos e paz, não tinha preparação para este tipo de guerra, estava a ficar com a percepção que neste meio (teatro de guerra) obrigavam-me a renunciar à minha personalidade e a valores que eu queria acautelar, vivia num conflito ambíguo, meio externo (ambiente) guerra, meio interno (raciocínio) paz, esta ambivalência era morrinha para o meu EU!

O meu hobbies, entre outros, foi a fotografia e o diapositivo (slide), tirei muitos milhares.

Para todos um abraço.
José Corceiro

Fotos: © José Corceiro (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. poste da primeira parte de 13 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5640: Canjadude, a chegada de um periquito (1): De Lisboa a Gabú (José Corceiro)

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