quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 – P5647: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (27): Baptismo de fogo - Parte 1



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias (a 27ª), com data de 14 de Janeiro de 2010:


«Baptismo de fogo» - Parte 1

Binta, 5 de Julho de 1964


O estacionamento era fustigado pela chuva que desde há umas horas caía em grossas bátegas. Na noite escura preparava-se a nossa primeira operação «a sério». Tomou-se uma refeição quente enquanto se trocavam piadas entre os mais animosos. Os mais ensonados iam acordando aos poucos.

Tiveram um significado especial as palavras que o nosso capitão Tomé Pinto nos dirigiu antes de iniciarmos a caminhada. Falava com calma e tentava transmitir segurança aos seus homens. Do bom êxito da operação que íamos empreender poderia resultar a sorte da companhia. Seria preciso que todos dessem o seu melhor.

Agora ia ser a sério. Íamos ao encontro do inimigo.

A nossa missão “resumia-se” numa batida à região de Lenquetó (situada a cerca de 12 kms do estacionamento), tabanca onde se julgava estar reunido com pessoal o «Chefão» da zona, um tal Paulo Lomba, conhecido pelo BARBAS.

Tentaríamos destruir a tabanca e fazer prisioneiros.Bebíamos as suas palavras. Lembra-me de pensar que nunca um “Pinto” me tinha parecido um “Galo” tão aguerrido e mandão. Ali, a haver “pintos”, era todos nós, maçaricos com dois meses de Guiné.

Teríamos que caminhar com o maior cuidado e no máximo silêncio pois o itinerário que íamos seguir “atravessava” uma região onde algumas tabancas ainda estavam habitadas.

Quando saímos do aquartelamento íamos uma hora atrasados em relação à partida previamente marcada, devido à chuva que não abrandava.

Eram 02h00.

Guiados pelo guia Malan Sissé percorremos com segurança e rapidez os primeiros quilómetros, ritmo que no entanto não pôde ser mantido pois a partir do entroncamento de Caurbá até à bifurcação de Genicó tivemos que rodear 13 abatises. Estes «vultos» sinistros com quem pela primeira vez tomávamos conhecimento atestavam a presença do inimigo na nossa zona. Caminhámos lentamente e com redobrados cuidados quando passamos perto de Genicó que estava habitado.

Passámos pelo "esqueleto" carbonizado de uma camioneta da serração de Binta, que o inimigo tinha destruído há poucos meses atrás.

Às 04h45 estávamos perto do nosso objectivo.

Ouviu-se por momentos com nitidez, no silêncio da noite, o ruído característico do pilão. Não muito longe cães latiram. Lentamente percorremos a distância que nos separava de Lenquetó.

Às 05h15 começou-se o envolvimento da tabanca instalando-se em meia-lua os dois grupos de combate.

Poucos momentos depois viram-se alguns indivíduos sair caminhando na nossa direcção. Gritou-se para que fizessem alto. Retrocederam rapidamente fazendo fogo de pistola de dentro da tabanca. As nossas tropas abriram fogo e durante alguns momentos dezenas armas automáticas crepitaram simultaneamente. Parecia uma trovoada. A reacção do inimigo embora diminuta fez-se sentir.

Um «suicida» descortinou o nosso capitão em pé, protegido por uma árvore, e avançou para ele correndo com um «canhangulo» em posição de fogo. Foi abatido depois de meia dúzia de passos.

Outros dois indivíduos saíram em correria da tabanca e ziguezagueando conseguiram passar por meio de uma secção, escapando ao fogo de duas ou três dezenas de atiradores. Foi uma fuga desesperada que, com um mínimo de probabilidades de êxito, resultou. Pareciam voar e escaparam-nos autenticamente entre as mãos!

Houve uma certa dificuldade em controlar esta primeira “descarga” para se passar ao interior da tabanca, conseguindo-o o nosso capitão com o seu exemplo e com a sua experiência (já tinha andado por Angola), arrastando consigo alguns homens, que penetraram lentamente na tabanca. Houve um inimigo que, apesar de ferido, lançou uma granada sendo abatido acto contínuo. Não se registaram outros actos de resistência mas foram abatidos ainda alguns indivíduos que tentaram fugir para o exterior.

Iniciou-se a revista das moranças e começaram-se a reunir prisioneiros, alguns deles feridos, para um pequeno largo no centro da tabanca. Foram prestados os primeiros socorros aos que mais necessitavam. Não se encontraram armas, não se conseguindo da parte dos prisioneiros informações.

Começaram-se a encaminhar os prisioneiros para o exterior da tabanca enquanto se incendiavam as moranças que iluminaram sinistramente o alvorecer.

Com dificuldade devido ao número (cerca de 40) e ao estado de alguns prisioneiros perdeu-se bastante tempo antes de se iniciar a marcha de regresso.Quando estávamos para partir apresentou-se um novo prisioneiro que tinha passado despercebido a quando da revista à tabanca.


Seriam talvez 07h00 quando lentamente nos começámos a afastar de Lenquetó que ardia. A nossa missão estava cumprida.

Iniciámos o regresso ao estacionamento, donde tínhamos partido cinco horas antes.

Na tabanca tinham perecido duas ou três dezenas de inimigos.

Com os dois grupos de combate, progredindo em quadrado, andaram-se uns 500 metros, interrompendo-se a marcha várias vezes por dificuldade em fazer caminhar os prisioneiros dentro do nosso dispositivo. Um prisioneiro já moribundo, o chefe da tabanca, teve que ser abandonado por já não poder deslocar-se, sendo-lhe ainda injectado morfina para alívio do seu sofrimento.

Decorridas mais umas centenas de metros foi descoberto um homem (isolado) que apesar de avisado em altos gritos para não fugir o tentou fazer, sendo perseguido e abatido. Tiveram de fazer-se novas paragens devido aos prisioneiros que se deslocavam com muita dificuldade no centro do quadrado.

Quando a cerca de 500 m de Caurbá progredíamos numa zona fortemente arborizada, (com muitos arbustos e pequenas palmeiras), fomos emboscados pelo inimigo. Ouviu-se um rebentamento de granada já depois de a "guarda da frente" ter passado, seguido momentos depois por outro estoiro.

Depois de um primeiro momento de expectativa e surpresa (houve quem pensasse até que os rebentamentos se deviam ao descuido ou imprevidência de algum dos nossos soldados) instalámo-nos rapidamente em círculo, «mascarando-nos» com a vegetação existente no local.

Seriam cerca de 08h00.

Houve mais alguns tiros do inimigo, de pistola e pistola-metralhadora, respondendo a nossa tropa com grande poder de fogo em todas as direcções.

O inimigo não estava longe e havia lançadores de granadas dentro do nosso dispositivo. O rebentamento da segunda granada provocou ferimentos no Furriel Mesquita e no 1° Cabo Craveiro, que seguiam na linha da frente, do lado esquerdo, sendo tratados por alguns soldados que utilizaram a propósito os pensos individuais, e pelo Furriel Enfermeiro Oliveira, verificando-se serem ligeiros os seus ferimentos.

Momentos depois tivemos a sensação de estarmos envolvidos pois os tiros de pistola-metralhadora, pistola e rebentamentos de granadas sucediam-se de todos os lados. O nosso dispositivo, um tanto ou quanto desarticulado, avançou para uma zona mais descoberta, instalando-nos em círculo junto de uma grande árvore. Entretanto na retaguarda havia também contacto com o inimigo sendo feridos o Sargento Gouveia Marques (com estilhaços de granada), num braço e o 1. ° Cabo Marques (com uma rajada de metralhadora), no escroto e num testículo.

Continuámos a responder ao inimigo com fogo baixo e uma bazucada deve ter feito grandes estragos no inimigo, pois ouviram-se gritos lancinantes durante alguns momentos.

Junto à árvore já referida o nosso capitão, calmamente, transmitia ordens e recomendava ordem no fogo para não virem a faltar munições.

Os feridos entretanto tinham-se deslocado até ao abrigo dessa árvore (que passou a servir de posto de comando e enfermaria) onde foram mais convenientemente tratados, verificando-se inspirar cuidados os ferimentos do Cabo Marques.Antes ainda de nos instalarmos junto à árvore do “Comando”, que vimos referindo, o Soldado n.° 2212/63, Chita Godinho conseguiu abater um inimigo que fazia fogo muito próximo com uma arma de repetição e corajosamente deslocou-se até este retirando-lhe a espingarda.

O inimigo continuou a flagelar-nos mas do nosso “círculo” continuava a partir um «furacão» de ferro e fogo.

Foi pedida a aviação para apoio e um helicóptero para evacuação do ferido mais grave, o Marques, que embora cheio de dores continuava a manter um sangue frio e serenidade notáveis, nunca desanimando nem exteriorizando o seu sofrimento.

O apoio aéreo não se fez demorar muito localizando-nos com relativa facilidade depois das indicações dadas pela rádio pelo nosso capitão. Ainda antes da chegada dos aviões (doisT6) o inimigo tinha tentado fazer uma autêntica carga sobre o nosso dispositivo, sendo abatidos, uns dois ou três indivíduos, a uns cinco ou seis metros da árvore onde se abrigavam o nosso capitão, o Furriel Enf.º, o cabo radiotelegrafista e os feridos já mencionados anteriormente.

Também ainda antes da chegada dos aviões soubemos pela rádio que a coluna-auto que se dirigia ao nosso encontro, com duas secções comandadas pelo Alf. Santos, tinha sido também emboscada junto do entroncamento de Caurbá, e que tínhamos um ferido grave por estilhaço de granada.

Com a chegada do apoio aéreo o inimigo mostrou-se menos activo, fazendo no entanto ainda por duas ou três vezes fogo de pistola-metralhadora para os «caças».

Os pilotos, habilmente conduzidos pelas informações de terra, fizeram fogo por várias vezes para os locais donde o inimigo nos tinha flagelado, lançando ainda uns «roquetes» para umas casas de mato nas proximidades da tabanca, que se avistava ao fundo, à esquerda.


Cerca das 11h00 chegou o helicóptero para evacuação do ferido sendo a sua descida comandada pelo nosso capitão que, a peito descoberto, conseguiu evitar que descesse num local onde poderia estar o inimigo. Em manobra impecável o helicóptero desceu apenas a uns 20 metros da árvore junto da qual se encontravam os feridos.

Rapidamente o Marques foi transportado até ao helicóptero pelo Enfermeiro Oliveira, auxiliado pelo nosso Capitão Tomé Pinto e pelo AIf. Tavares, revelando o pessoal do helicóptero grande experiência e calma. Sempre com a hélice em movimento o helicóptero elevou-se rapidamente, dirigindo-se para Binta onde o esperava um condutor gravemente ferido aquando do ataque à coluna-auto, que entretanto já não estava debaixo de fogo, não podendo no entanto aproximar-se da zona de Caurbá por se encontrar avariada uma viatura.

Os T6 continuavam a evolucionar sobre a área dando-nos uma sensação de agradável protecção o ruído dos seus motores.

A pedido do Capitão Tomé Pinto os pilotos metralharam a zona por onde, electrizados pelo exemplo do nosso Comandante de Companhia, que arrancou de imediato para a frente, seguimos o mais rapidamente possível, respondendo ao fogo inimigo que, de cima das árvores, nos continuou a flagelar durante algum tempo. Com um dispositivo em «cunha» conseguimos iludir o inimigo que não esperava a nossa saída pelo local onde ela se verificou.


A experiência e o arrojo do nosso Capitão conseguiu que dois grupos de «maçaricos», que se “agarravam” ao chão logo que se ouvia um tiro, «voassem» por uma zona batida pelo fogo do inimigo que nos viu afastar com rapidez e segurança. A registar a tentativa de fuga de três prisioneiros aquando da retirada da zona da emboscada, que no entanto foram abatidos, sendo de louvar a calma e serenidade das duas secções que tinham a seu cargo a guarda ao numeroso grupo de prisioneiros, trazendo-os sem mais uma baixa até ao estacionamento.

Os quilómetros que nos separavam ainda de Binta foram percorridos debaixo de um calor sufocante que exigiu de cada um, um esforço suplementar, pois vínhamos a caminhar desde as 2 horas da madrugada.

Logo que nos afastámos de Caurbá o dispositivo voltou à formação de "quadrado" sempre superiormente comandado pelo nosso capitão, que extenuado por um esforço extraordinário ficou sem voz e teve de se aproveitar do vozeirão do Furriel Juca (um homem pequeno mas com voz de gigante...) para continuar a transmitir as suas ordens.

O Capitão Tomé Pinto em 1964

Cada metro de mato exigia já um esforço penoso para o percorrer.

Desejava-se os barracões de Binta mais do que, em qualquer outra altura, um hotel de luxo.


Foi para muitos (entre estes e muito na vanguarda o «cronista»...) o dia «D», o dia mais longo das suas vidas...

Já próximo do estacionamento o nosso capitão e um grupo de combate foram ainda ao encontro da coluna-auto para proteger o seu regresso.

Quando chegámos a Binta, onde também se tinham vivido horas de grande ansiedade, eram 12h30.

Acabava-se, de viver o nosso primeiro dia operacional em terras da Guiné. Tínhamos combatido duramente com o inimigo e obtido uma vitória esmagadora. Do Cacheu até à fronteira do Senegal os que tivessem «escapado» fariam a nossa melhor «publicidade».

Não se poderá dizer que não tivemos um baptismo de fogo animado.


E… nunca um “Pinto” me tinha parecido um “Galo” tão aguerrido e mandão.

O Capitão Tomé Pinto actualmente

(Os ex-militares da CCaç 675 saudam especialmente, hoje, dia 14 de Janeiro, o "seu" Capitão - agora Ten. General -, pela passagem do seu 74º. Aniversário. Parabéns e que conte muitos mais).

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

3 comentários:

Colaço disse...

Uma história bem descrita,estes baptismos de fogo para tal íamos mal preparados eram um problema,mas sempre foi assim a tropa manda desenrascar.
Um abraço Colaço.

José Silva disse...

Aqui está um exemplo de como um bom capitão nem sempre dá um bom general.José Silva

Anónimo disse...

E quem é o José Silva para afirmar no caso em apreço - a carreira militar de Alípio Tomé Pinto - que foi um bom Capitão mas não deu um bom General ?
Está claro que não se poderá agradar a todos numa carreira tão longa como a do Ten.General Tomé Pinto mas gostava de saber os "porquês" do comentário do José Silva.
Fico na expectativa.Cumprimentos.
José Eduardo Reis de Oliveira
Furriel Mil. Enfeimeiro da C.Caç. 675 / Binta-Guiné 1964-66.