segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5626: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (8): Recordações da Belmira, da Manjaca, da Maria, da Safi, do Jamil...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > Mulheres (nalus ?). Foto de João Graça,  médico, que esteve como voluntário no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém, de 5 a 10 de Dezembro de 2009.

Foto: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Mensagem do  nosso camarada e amigo Arsénio Puim, natural de Santa Maria,  Açores, a viver na Terceira, antigo Alf Mil Capelão do  BART 2917 (Bambadinca, 1970/72):

Luis Graça

Envio um novo trabalho sobre mais algumas personagens da Guiné que eu conheci, o qual publicarás se tiver interesse e quando achares oportuno.

Um abraço
Arsénio Puim


2. RECORDANDO... VIII > ALGUMAS PESSOAS DA GUINÉ

(i) BELMIRA (Bambadinca)

Belmira é uma guineense mandinga que vivia em Bambadinca. De vinte e poucos anos, inteligente, alegre, era lavadeira no Quartel.

Vive só e pobre, com o seu filho, de cor mestiça, cujo pai é um soldado português pertencente a uma unidade antiga de Bambadinca. Por causa disso, tem problemas na tabanca. As pessoas olham mal as mulheres que têm filhos de brancos e ostracizam-nas.

Belmira mostrou ter apreço por certos valores do cristianismo, como a escola, que quer dar ao seu filho, e o casamento monogâmico. Não gostava da casar com um homem que tivesse outras mulheres. Diz que os Fulas e os Mandingas têm muitas mulheres, e estas brigam entre si e são elas que trabalham na bolanha.  «Os cristãos só têm uma mulher, e esta não trabalha na bolanha, e são civilizados», sem deixar, porém, de dizer que «os soldados brancos são malcriados».

Esta conversa com Belmira ocorreu num dia em que ela veio falar comigo para baptizar o seu filho, embora ela seja muçulmana.

(ii) A MANJACA (Xitole)

O mesmo aconteceu, no Xitole, com uma rapariga de apenas 17 anos,  chamada  A Manjaca. Tem dois filhos de soldados brancos e quer baptizar os «mininos», sendo também muçulmana. Enquanto falava comigo, dava o seu volumoso seio ao filho, que o suga com ar bem-aventurado.

Este é um fenómeno corrente na Guiné: as raparigas que têm filhos de pais brancos acham que eles devem ser baptizados, ainda que elas próprias professem a religião muçulmana. Talvez, por uma associação do cristianismo à civilização branca ocidental. «Branco», em África, além de identificar a cor da pele não negra, é um conceito histórico e civilizacional.

Claro que tive que explicar àquelas mães que não fazia sentido baptizar os seus meninos só por serem filhos de pais brancos, uma vez que eles iriam viver num meio onde não receberiam qualquer influência duma educação cristã.

(iii) MARIA (Xitole)

A Maria, filha do chefe de tabanca do Xitole, é uma rapariga de personalidade forte, espírito claro e conversação interessante. Senhora das suas ideias, ela não concorda com o fanado e recusou realizar a excisão, o que lhe acarreta algumas críticas na tabanca.

Gosta dos brancos, mas não para casar. «Famílias africanas não aceitam, nem famílias brancas. E deixam os filhos e vão-se embora. E não mandam patacão. É feio. É um picado», referiu.




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole  > 2001 > Restos do aquartelamento e povoação de Xitole. A antiga casa do comerciante libanês Jamil Nasser, amigo dos tugas das várias unidades de quadrícula que por lá passaram durante a guerra colonial (**).


Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados


(iv) JAMIL (Xitole)

Outra pessoa muito conhecida no Xitole é o sr. Jamil, um próspero comerciante libanês, já idoso, inteligente e sabido, que aqui se fixou há muitos anos. Sobre ele recaem algumas suspeitas de que faz comércio com os «turras». No entanto, mostra grande animosidade contra o programa «guerra da paz» de Spínola, porque, desta forma, «os nativos habituaram-se à manha e os turras são tratados como reis».
- És turra?
- Não sou.
- Então vai-te embora.

É a história que o sr. Jamil conta de Spínola uma vez que ele encontrou um prisioneiro do PAIGC num aquartelemento que visitou.

Por outro lado, ele exprime apreço e hospitalidade para com os militares estacionados no Xitole. Numa ocasião em que estive lá, também fui convidado, juntamente com outros militares, para um almoço de chabéu na casa dele: um prato, feito com carne do mato cozinhada em óleo de palma e bem temperada de piripiri, que é típico da Guiné e muito saboroso.

(v) SAFI (Bambadinca)

A terminar este apontamento, recordo mais uma pessoa de Bambadinca, com quem tive relação de trabalho. É a Safi, uma jovem mandinga, de 16 anos ou pouco mais, que era a minha lavadeira. Tinha um feitio algo reservado, mas, ainda assim, era amiga de fazer perguntas e sempre delicada. Conhecia algumas canções mandingas, que, com agrado, ouvi ela cantar, na sua voz de timbre africano. Com ela também aprendi algumas palavras, mais correntes, da língua mandinga, como a saudação habitual entre as pessoas desta etnia, que acho muito bonita e sonante:
- Kairacita?
- Kaira.

É equivalente ao «Jamtum?»; «Jamtum», dos Fulas, que era frequente ouvirmos, em interminável repetição, entre pessoas desta etnia.

Conheci a família de Safi, muito carenciada, como a grande maioria dos guineenses, que me recebeu com muita simpatia nas poucas vezes que me desloquei à sua casa. Uma vez, estando a comer, fui convidado para tomar a refeição com eles, a qual constava de arroz com alguns pedacinhos de carne misturados, que todos tirávamos dum recipiente único e comíamos às bolinhas com a mão.

À Safi, que hoje já vai caminhando para os 60 anos de idade, devo-lhe o meu respeito e apreço pelo trabalho que desempenhou para mim, pela graça que, juntamente com as outras raparigas lavadeiras, traziam ao nosso Quartel quando a ele se deslocavam, e pela sua simpatia para com o «padre-capilon».

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

______________

Notas de L.G.:

(*)  Vd. último poste da série > 2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz

(**) Vd. psote de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

(...) Caro Luis Graça



Visitei hoje, mais uma vez, esta página e fui ver as fotografias do Xitole.


Deparei-me com a fotografia das ruínas da casa do Jamil Nasser (1), do Tio Jamil, como eu lhe chamava, e veio-me uma nostalgia difícil de explicar (2).


Quase todos os dias, ao fim da tarde, ía a casa do Jamil e,  no seu alpendre de entrada, bebiamos uns uísques, acompanhados de pedaços de tomate com sal, enquanto ele ouvia as notícias do Libano no seu rádio, em árabe, claro está, e comentava o que por lá se passava.


Para mim era como sair um pouco da tropa e entrar numa vida social, o que dava um certo equilíbrio emocional.


Um dia, quando me preparava para ir ter com o Jamil, apareceu o seu criado Suri, oriundo da Gâmbia, salvo o erro, para me dizer que o Jamil pedia para eu não ir ter com ele naquele dia.

Fiquei admirado, mas bebi o que tinha a beber no quartel. Mal anoiteceu, houve um tremendo ataque ao Xitole que, graças a Deus, não provocou quaisquer vítimas ou sequer ferimentos, mas destruiu bastante alguns edifícios.


Percebi o recado do Jamil, mas nunca falámos nisso. Tenho algumas histórias com ele e até fotografias, se não me engano, não tenho é muito tempo, mas logo verei o que posso arranjar.


A memória falha de vez em quando, mas penso que ainda me encontrei com o Jamil em Lisboa depois de ter vindo da Guiné.

Lembro-me que ele costumava ficar num Hotel, ao lado do Cinema Tivoli, se não me engano Hotel Condestável.

Abraço


Joaquim Mexia Alves  (...)

5 comentários:

Luís Graça disse...

O padre capilon merece os nossos aplausos por, no cumprimento da sua missão castrense e espiritual, nunca ter descurado as suas obrigações como pastor da Igreja de Cristo...

Ele não era (ou não quis ser apenas) um capelão militar, um padre fardado, ao serviço de um exército em guerra... (Não o conheci nessa qaulidade, nunca o vi nem ouvi a celebrar missa, nunca rezei com ele, nem sequer lhe pedi conselho ou ajuda espiritual... Hoje tenho pena de o não ter conhecido melhor, a nível do seu múnus espiritual).

O que eu quero sublinhar é que a sua atenção, solicitude, disponibilidade, carinho, amor, solidariedade, caridade, compaixão - chamem-lhe o que quiserem! - também contemplava as mulheres, as crianças, os homens, os velhos da população civil, independentemente da cor, da religião, da origem...

A grande diferença em relação a nós, militares, operacionais ou não, com os nossos 22, 23 ou 24 anos, é que ele ganhava-nos em maturidade humana... Ele convivia com a população, e escrevia no seu caderninho notas sobre esses contactos... O famoso caderninho que lhe seria mais tarde confiscado e depois devolvido (Arsénio, tens de contar-nos, direitinho, essa história do teu caderninho)

Pois é, meu caro, estou-te grato por esses apontamentos, que nos ajudam hoje a recuperar algumas lembranças da população civil ( começar pelas nossas queridas lavadeiras, fulas ou mandingas) de Bambadinca, do Xime, do Xitole...

Obrigado. Luís

Luís Graça disse...

Errata: Deve ler-se:

Ele não era APENAS (ou não quis ser APENAS) um capelão militar, um padre fardado, ao serviço de um exército em guerra...

Jorge Narciso disse...

Interessante um dos temas introduzidos pelo belo Post do Puim:
A mestização originada pelas nossas Tropas, neste caso na Guiné.

Excepção feita a um ou outro caso em que a paternidade terá sido assumida, os restantes (e o pequeno exemplo suscitado mostra que terão sido numerosos) que se poderão designar por "incógnitos", levantam questões que, sem falsos pruridos, seria talvez interessante tentar perceber.

Por exemplo:
- Qual a estimativa do seu número ?
- Que responsabilidades o "Poder instituido" imputava ao "Pai", se as mulheres as reclamassem ?
- Como se integraram (ou até que ponto foram ostracizados)esses "filhos de branco" (e as Mães), nas suas comunidades ?

Aqui fica o repto,
com um abraço

Jorge Narciso

Luís Graça disse...

Jorge:

Ora aí está uma questão deveras interessante, estimulante, delicad, crítica, difícil e eventualmente fracturante...

Tanto quanto me apercebi, na época, na Guiné, durante a guerra colonial (1963/74) o Exército nunca se preocupou com o problema dos "filhos da guerra"... Acho mesmo que fez como a avestruz: assobiou para o lado...

O Exército não tinha gente qualificada (oficiais do quadro ou milicianos com sensibilidade sócio-cultural e preparação técnica) para saber lidar com um problema delicado como este... O Exército não tinha psicólogos, antropólogos, juristas, especialistas em questões psico-sociais... para lidar com estes problemas e resolver eventuais conflitos...

O que se passava no segredo da alcova, entre um homem (branco, militar) e uma mulher (guineense, civil) escapava ao RDM... a menos que se tratasse de uma menor ou houvesse queixa por violação... (O António Reis, no seu livro 'Uma Jornada em África' conta um caso destes, passado no HM 241, que levou à condenação de um enfermeiro: mas isso passa-se em ambiente 'urbano', na cidade do asfalto, em Bissau, não no mato, nas tabancas do interior...).

Não faço a mínima ideia se, ao longo da guerra, houve casos que tenham chegado aos tribunais... No meu tempo, as relações (sexuais) entre tugas e mulheres pareciam ser ditadas pelo livre consentimento ou pelo simples comércio do sexo...

Todos conhecemos alguns casos, poucos, de relações que foram mais ou menos duradoras... no período correspondente à comissão de serviço militar... Serão raras, raríssimas, as relações entre tugas e mulheres guineenses que acabaram em casamento... A distância cultural era acentuadíssim, na época, e a atitude em relação aos casamentos mistos muito pouco aberta, para não dizer hipócrita...

Quanto ao frito dos amores entre mulheres guineenses e tugas, alguns não terão chegado a medrar... Sabemos que há uma tradição (cultural) de infanticídio na Guiné-Bissau, em casos de albinismo, gémeos, invisuais e outros deficientes... Náo sei de os filhos dos tugas também foram tratados, nalguns casos, como 'filhos do irã', logo amaldiçoados...

Temos, em todo o caso, o dever de prestar aqui uma homenagem à extradordinária coragem das mulheres guineenses, por muitos motivos e mais um: algumas conseguiram enfrentar os "preconceitos" da sua comunidade de origem, mas também a pretensa superioridade da moral dos tugas...

Venha daí a primeira pedra...

Arsénio Puim disse...

Caro Luis
Os 33 anos que eu tinha quando fui chamado para capelão militar,as vivências que tivera antes e,até, as funções que me competiam no Exército terão contribuído para me ligar um pouco aos problemas sociais e culturais das populações da Guiné e sobre isso tomasse algumas notas. Não tanto como hoje vejo que podia e devia ter feito.
Algumas recordações não estão escritas, mas são reminiscêrncias que vão aflorando quando me debruço sobre a nossa passagem na Guiné.
Admirei o carinho da tua expressão relativa às lavadeiras africanas dos militares, que julgo ser merecido.
Quanto ao problema dos filhos dos brancos espalhados pela Guiné,levantado por Jorge Narciso, na sequência do meu trabalho, e bem secundado por ti,é um assunto de abordagem complexa e delicada, mas que vale a pena, mesmo à distância de várias décadas, nomeadamente na sua realidade sociológica.
Um abraço - Arsénio