segunda-feira, 7 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6551: Notas de leitura (119): Uma Campanha na Guiné, 1965/67, de Manuel Domingues (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2010, com mais uma das suas recensões:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a um relato edificante e esclarecedor do que era o Leste da Guiné entre 1965 e 1967.

A ver se para a semana vou ao CIDAC para ver se descubro mais literatura avulsa, pouco mais coisas tenho para ler, os nossos camaradas estão na retranca, não abrem mão do que guardam nas suas bibliotecas.
Paciência, que também é uma virtude.

Um abraço do
Mário


Notícias do Leste da Guiné, entre 1965 e 1967:

Um relato singular sobre a história do BCaç 1856


por Beja Santos

Manuel Domingues foi comandante do Pelotão de Reconhecimento e Informação e desempenhou as funções de oficial de informações do BCaç 1856, que teve a sua sede no Gabu, entre 1965 e 1967. Escreveu um documento singular sobre a história do seu batalhão, desde a sua formação, quadrícula, operações, avaliação da missão e memórias dos protagonistas. Supera toda a linguagem convencional destes documentos habitualmente cinzentos onde não há espaço para entrelinhas. Não, Manuel Domingues não ilude o inferno de Madina do Boé e Béli e a tenaz que se foi apertando à volta do Senegal e da Guiné Conacri sobre os destacamentos desta região militarmente designada por L3. No seu relato refere inclusivamente um diário de um combatente, de autor desconhecido da CCaç 1417, que lhe terá sido entregue pelo comandante do batalhão, no final da comissão. É um documento de indiscutível importância, quem o escreveu tinha bases literárias, sensibilidade, era bom observador, combateu, registou canções, temos aqui uma fotografia do tempo e do evoluir da guerra. Esta CCaç 1417 andou em bolandas até chegar a Bajocunda, Canquelifá e Copá. Fizeram a instrução em Bula e Binar, na região de Bambadinca percorreram Ponta Varela, Ponta do Inglês, Poidom e o Burontoni, seguiram depois para o Xitole, seguiram para Galo Corubal. Já na região do Gabu, fizeram escoltas, estiveram em Bajocunda e arredores meses a fio.

Outro relato importante é do capitão miliciano Jorge Monteiro que esteve em Madina do Boé. Ele confessa, depois de ter vivido em Madina durante 11 meses, a completa inutilidade de estar numa posição que não servia para nada, era um acampamento subterrâneo protegido por arame farpado e seteiras, um alvo apetecido para os ataques diários das forças do PAIGC. Pega no seu diário e cita alguns dados: no dia 1 de Dezembro de 1966, às 18:15 mandaram-nos 6 granadas de morteiro 82; às 19:30 mais 6; no dia 3, logo às 6 da manhã, mais 6; na tarde do dia 4, 9 granadas; no dia 6 puseram 2 morteiros e 2 canhões sem recuo a trabalhar e no dia 7 pelas 3 da manhã atiram-nos 15 granadas; no dia 8 às 6 da tarde 5 granadas e logo a seguir, às 7:30, 2 granadas de canhão sem recuo. Respeitaram o dia de Natal, mas acordámos a 26 logo às 6 da manhã. Entrevistado mais tarde, o capitão Monteiro não percebia como é que Madina do Boé, um pântano, um chão inútil, no meio de dezenas e dezenas de quilómetros de área inundada, um charco imenso onde só as rãs se sentiam bem, podia vir a ser a capital do PAIGC.

Há depoimentos sobre os quais devíamos reflectir com muita profundidade, até às últimas consequências. Vejamos o que escreve António Araújo da CCaç 1416:

“Fomos os primeiros a ser destacados para o mato, oito dias após a nossa chegada a Bissau. Éramos a companhia mais antiga, logo a que tinha mais prática de guerra.

Ainda hoje não consegui entender como um indivíduo entrando no mesmo dia, à mesma hora, no mesmo quartel, só porque entrou um passo atrás passou a ser o mais novo. Tal como uma companhia, só porque lhe foi atribuído um número mais baixo passou a ser a mais antiga.

Ficámos mal aquartelados num celeiro em Nova Lamego, com uma zona de intervenção enorme: Canquelifá, Buruntuma, Piche, Bajocunda, Pirada, Paúnca, Cabuca e Madina do Boé.

Passaram poucos meses e depois de vários combates travados com o inimigo sofríamos a primeira baixa. Um alferes ferido às primeiras horas da manhã. A evacuação pedida com o grau máximo de urgência, só é deita depois das 15 horas. O alferes já tinha morrido depois de ter sido transportado muitos quilómetros aos ombros em maca improvisada”.

Até o capelão, de nome Mota Tavares, andou metido em sarilhos, viu camaradas a morrer ao seu lado, interrompeu a celebração do culto durante o bombardeamento dos quartéis, seguiu com o cálice na mão para dentro dos abrigos. Vale a pena escutá-lo: “Nunca usei uma arma. Não estava lá para lutar ou defender a guerra, mas para ajudar em nome de Cristo os meus irmãos militares. Levava o terço, os Santos Óleos e o canivete de escuteiro. Um dia, em Buruntuma, um capitão obrigou-me a levantar uma pistola para levar no dia seguinte para uma operação. Obedeci ao meu superior mas de madrugada, ao sair à porta de armas dei a pistola ao sentinela: Eh pá! Guarda-me esta treta até logo e não digas nada a ninguém. O percurso foi muito cansativo. Como tinha boa resistência física, cheguei a carregar duas G3 às costas para aliviar soldados mais cansados”.

No epílogo, Manuel Domingues refere Óscar Baldé, um menino que eles tinham conhecido em Copá, no Norte do Gabu. Estudante brilhante, obteve uma bolsa do Governo brasileiro e depois do Banco Mundial, tendo chegado a ministro das pescas e do mar, já no século XXI. Sentia-se desapontado com a falta de democratização do país e com a corrupção que graça por toda a parte. Mas os combatentes do batalhão 1856 lembravam com saudade aquele menino que alguém tinha ensinado a ler e a escrever e que ficara amigo inseparável do furriel miliciano Fernando Pereira da CCaç 1417.

Estamos perante um relato que justificava plenamente ser reajustado para uma edição mais divulgada, dada a plenitude das suas mensagens.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6542: Notas de leitura (118): Uma Campanha na Guiné, 1965/67, de Manuel Domingues (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Leio:

"No dia 1 de Dezembro de 1966, às 18:15 mandaram-nos 6 granadas de morteiro 82; às 19:30 mais 6; no dia 3, logo às 6 da manhã, mais 6; na tarde do dia 4, 9 granadas; no dia 6 puseram 2 morteiros e 2 canhões sem recuo a trabalhar e no dia 7 pelas 3 da manhã atiram-nos 15 granadas; no dia 8 às 6 da tarde 5 granadas e logo a seguir, às 7:30, 2 granadas de canhão sem recuo.

Estes os factos. E quais foram as consequências, importantes, fundamentais para entendermos uma guerra desta natureza? Qual o grau de destruição, quantos mortos e feridos?
Seriedade, rigor na leitura dos factos.

Um abraço,

António Graça de Abreu

Ps. Por seriedade, pelo rigor necessário também sabemos todos hoje que a capital do PAIGC não foi Madina do Boé.

Manuel JOaquim disse...

Caro Graça de Abreu

-Mas o que é que tem a ver o "cu com as calças?" -Nada,as calças é que existem em função dele. Quero dizer: havia umas calças(uma instalação militar defensiva)para tapar um cu(Madina), para manter as aparências de ocupação de uma área territorial,mais nada.Aquilo era mesmo o "cu de Judas".Essa "terra de ninguém" tinha um valor simbólico para encenar,politicamente,a situação de controlo total do território.
Em 1973, o PAIGC fez o mesmo;usou esse espaço geográfico como bandeira para obter os mesmos objectivos políticos.Usaram a mesma "folha branca"(a nossa)que abandonámos, para fazerem crer que,agora, estava lá escrita a verdade (a sua,lógico).

Desculpa,António, mas é precisamente numa guerra desta natureza(revolucionária, subversiva, de guerrilha,como quiseres)que estas situações têm consequências importantes.Não foi Madina evacuada,mais tarde, pelo grande estratega Spínola? Porquê? Porque,então,pelo histórico do local,já se previa que era isso mesmo que iria acontecer:destruição,mortos e feridos.
É que o isolamento,a resistência,o sofrimento,a angústia,a dúvida razoável do «porquê?»sem uma "luz ao fundo do túnel",aliadas a uma forte pressão do IN,aguentam-se até ao limite da própria coragem.

Depois...ora,depois vêm as histórias dos heróis e dos cobardes,da manipulação dos factos,por vezes tão ostensiva que vai ao ponto de criar ambientes e casos TOTALMENTE falsos mas embrulhados,como não podia deixar de ser,no seráfico papel de «verdade».Não escolho nenhum dos contendores.Sucede em ambos os lados,mas bastante mais do lado do PAIGC(curiosamente,hoje,com alguma gravidade ao nível interno).
Também eu quero rigor e seriedade na leitura dos factos.O que não implica que minhas conclusões sejam iguais às tuas.

Em relação ao teu Ps(post-scriptum,é óbvio): a seriedade e o rigor obrigam-me a dizer que o próprio PAIGC criou essa "capital"(provisória)
como muleta para o discurso político.Nem sequer o escondia.A Madina do Boé era o local (incerto) da mata onde se reuniam.Aliás,as imagens das suas reuniões políticas (digamos que já encenadas como de Estado)mostram isso mesmo.Sem preocupações de esconder fosse o que fosse perante os convidados.

Eu já cheguei a uma conclusão:a "mítica" Madina do Boé nunca "existiu".Quando muito houve uma obscura tabanca que os bambúrrios da "sorte" guindaram às alturas da história das partes beligerantes.

Um abraço

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Manuel Joaquim

Não sei bem quem tu és, desculpa, mas com todo o respeito,aí vai um esclarecimento.

Primeiro, acho que pela seriedade e o rigor, quando se descreve uma ou uma sequência de flagelações a um aquartelamento deve indicar-se quais as consequências dessas flagelações.Caso contrário,pode-se pensar, "caíam como tordos, morriam uns atrás dos outros".Era o que a propaganda do PAIGC fazia.
Cada vez que flagelavam um aquartelamento "destruíam-no completamente."
Um exemplo, o aquartelamento de Cufar foi flagelado vinte vezes pelo PAIGC no espaço de um mês, em Outubro e Novembro de 1972. Não tiveram nenhum morto, nem a população, apenas alguma destruição
e tabancas a arder.
Claro que os ataques eram sempre perigosos. Tenho a transcrição da gravação feita por mim, debaixo de
fogo, em Cufar, 20 de Janeiro de 1974. Publiquei no meu livro Diário da Guiné, pag. 186 e está no Youtube.
Bastar procurares Diário da Guiné.

Segundo. Já foi explicado aqui no
blogue, aí há um ano, que o lugar onde o PAIGC declarou a independência não foi
em Madina do Boé, mas uns quilómetros abaixo, na fronteira com a Guiné Conacry.
Em Novembro de 1973, o general Bettencourt Rodrigues foi de helicóptero a Madina do Boé e não encontrou lá ninguém. Isto é rigorosamente verdade.
Está no meu Diário da Guiné, pag. 166, com data de 6 de Dezembro de 1973.

Um abraço

António Graça de Abreu

antonio graça de abreu disse...

Volto à carga pela última vez.
Eis a transcrição do que escrevi na altura sobre a curta estadia do governador em Madina do Boé, Outubro 1973:

Cufar, 6 de Dezembro de 1973

"O governador, general Bettencourt Rodrigues foi mesmo de helicóptero a Madina do Boé, ao lugar onde o PAIGC diz ter declarado a independência. A ideia que tenho da região é de que se trata de zonas desabitadas, abandonadas há anos pelas NT devido à ausência de interesse estratégico da região, no extremo sudeste da Guiné. O governador esteve lá durante uma dezena de minutos, numa espécie de comprovação da impossibilidade de o PAIGC haver usado aquela “zona libertada” para declarar a independência. Houve um jornalista alemão que acompanhou a comitiva do Bettencourt Rodrigues e redigiu uma crónica datada de Madina do Boé. A propaganda é necessária. Também é verdade que não encontraram viva alma na antiga povoação do Boé, destruída pela guerra em anos passados. Onde estavam os heróis do PAIGC que declararam a independência da Guiné em Madina do Boé? Talvez não estivessem longe, mas ninguém os viu".

Posso agora garantir que nesse dia havia tropas páraquedistas na região de Madina do Boé para garantir a segurança do governador.
E Madina ficava mesmo ao lado da Guiné-Conacry.