quarta-feira, 9 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6569: Notas de leitura (120): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2010:

Queridos amigos,
Era inevitável fazer-se uma referência à obra de José Freire Antunes que bem precisada está de continuação.
Não discuto a importância dos depoimentos, mas eles carecem do contraditório, de outros aclaramentos e da reposição factual.
Seja como for, há aqui substância que não pode ser ignorada.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, 1961 – 1974, Volume I, por José Freire Antunes

por Beja Santos

O Círculo de Leitores publicou em 1995 dois pesados volumes de um projecto coordenado por José Frei Antunes. As observações que se seguem circunscrevem-se ao primeiro volume. José Freire Antunes apresenta assim o seu trabalho: “O meu principal objectivo foi dar a palavra, registar, enquadrar o percurso de dezenas de personalidades que tiveram uma acção relevante nas várias áreas, em Portugal e em África. Para isso recorri sobretudo à metodologia da história oral, desenvolvida a partir de 1948 na Universidade de Colúmbia (Nova Iorque) e que trouxe uma evolução qualitativa à historiografia”. Sabe-se agora que não é tão verdade o que José Freire Antunes exalta, esta metodologia tem inúmeras fragilidades quando não é combinada com outras. O que para o caso interessa é que o autor introduz uma tábua cronológica com acontecimentos encarados como determinantes nesse período de treze anos e depois dá a voz a um conjunto de personalidades e operações militares das quais vamos reter as que têm a ver com a guerra da Guiné, a saber: Bethencourt Rodrigues, Silva Cunha, Spínola, Carlos Fabião, Operação Mar Verde, Luís Cabral e Marcelino da Mata.

Bethencourt Rodrigues, o último governador e comandante-chefe da Guiné dá um testemunho sereno sobre os meses em que presidiu aos destinos da mais tumultuosa província em chamas: “Em 1973, existiam 225 guarnições ocupadas por tropas da Marinha, do Exército e milícias. Em grande parte imposto por uma progressiva adaptação à manobra socioeconómica que vinha sendo conduzida, este dispositivo apresentava, a meu ver, inconvenientes de dispersão e de vulnerabilidade que se tornava necessário corrigir. Contava-se fazer tal remodelação na época das chuvas, quando se verificava uma diminuição drástica do número e intensidade das acções do PAIGC. Estava também a ser ponderado um certo retraimento do dispositivo, afastando da fronteira as guarnições militares. Deste modo, para as flagelações, o PAIGC teria de instalar os seus meios em território da província. Nas suas acções, o PAIGC demonstrava uma certa capacidade de comando e de organização. O PAIGC recebia material de guerra moderno e eficiente em quantidades vultosas, destacando-se nesse material os foguetes terra-ar que determinavam alterações na conduta das operações”. Em linguagem eufemística, o general subentendeu que estava em marcha a estratégia aprovada por Costa Gomes, a que Spínola inicialmente deu concordância e depois repudiou: o progressivo abandono de todos os destacamentos de fronteira, adaptando o dispositivo militar a uma concentração susceptível de poder intimidar o PAIGC. Tratava-se de algo mais sério que ocorrera nos primeiros meses do comando de Spínola, em que se retirou da região do Boé e de outros pontos com ou sem população e onde a capacidade defensiva já não permitia mais do que resistir.

O depoimento do último ministro da Defesa é de uma enorme importância, paradoxalmente há nele informações que não se vêm utilizadas nas análises referentes aos últimos meses da guerra. Ele diz claramente: “Tive conhecimento dos contactos com o PAIGC em Roma e em Londres”. Isto é importante, ainda há gente que nega que o governo de Marcelo Caetano tivesse procurado negociar com o PAIGC. Rui Patrício irá também dizê-lo claramente no volume II desta obra. Silva Cunha revela-se desapontado com o comportamento de Spínola, sobretudo a propósito da criação do que ele designa por “mito da impossibilidade da defesa militar da Guiné”. Silva Cunha alega que tinha reforçado certos meios de defesa, designadamente baterias anti-aéreas para proteger o aeroporto de Bissau. A propaganda fazia esconder o que em meios militares se sabia que era inevitável: o PAIGC ia ter aviões sofisticados, ultimava-se os preparativos dos seus pilotos. Silva Cunha declara: “A África do Sul tinha comprado duas baterias de mísseis terra-ar Crotale em França – eu consegui que eles desistissem de uma, e comprámo-la nós, directamente aos franceses. A bateria dos Crotale era para proteger o aeroporto de Bissau. Conseguimos artilharia em Israel, porque uma das coisas de que se queixavam na Guiné era de que a artilharia deles tinha alcance superior ao da nossa. Conseguimos os Red Eye, mísseis terra-ar individuais, na Alemanha. Não sei quem os vendia, só sei que eles nos forneciam 500 Red Eye americanos”.

O que o livro do Freire Antunes publica sobre Spínola é, em termos históricos, indescritível, incompreensível: pega num conjunto de directivas de 1968 e procede a uma síntese, como se fosse possível no contexto destas directivas iniciais encontrar todo o pensamento e acção que Spínola desenvolveu ao longo de cinco anos. O que as directivas iniciais exprimem são a remodelação dos dispositivos, retiradas e reajustamentos; enunciam novos princípios doutrinários para o teatro de operações, como seja o comando unificado, a preparação das tropas recém-chegadas, a passagem de testemunho nos aquartelamentos, a definição de uma política intitulada “Por uma Guiné Melhor”. Muito mais coisas havia a dizer, deve ter faltado tempo para investigar, assim se ludibria o leitor (e se isto é história oral...).

De grande importância é também o testemunho de Carlos Fabião, um militar com elevados conhecimentos sobre a Guiné. Considera que no essencial Spínola estava a ganhar tempo para se encontrar uma solução política e que a africanização da guerra da Guiné obedecia à lógica de animosidades entre etnias: os fulas do lado da bandeira portuguesa, os balantas a apoiar o PAIGC. Fabião recorda que a situação na Guiné descambou perigosamente de 1965 a 1967, o PAIGC implantou-se de pedra e cal em santuários como o Morés, Sara-Sarauol, Boé, Quitafine e Cantanhês. Era um adversário muito melhor equipado que as tropas portuguesas. E declara: “A certa altura começou a haver uma grande falta de moral nas nossas tropas e a todas as regiões onde íamos levávamos pancada. Tite começou a ser uma desgraça. Depois ocupámos Jabadá, em frente a Tite, mas tivemos mais de 100 ataques fortes da Jabadá no espaço de um ano. Eram ataques pequenos mas consecutivos. No Cantanhês houve dois desastres. No Quitafine houve também mais do que um desastre. O moral da tropa era baixo e vivíamos a tentar aguentar aquilo... Spínola chegou à Guiné e correu com todos os incompetentes... passado um tempo, a situação tornou-se muito crítica na parte Leste do Norte da Guiné e foi necessário fazer uma operação para derrotar um efectivo muito numeroso que estava lá instalado... o PAIGC tinha foguetões terra-terra de 122 mm, que faziam fogo a 17 quilómetros, enquanto a nossa arma mais importante só fazia fogo a 10 quilómetros... se me disserem que a guerra colonial estava perdida na Guiné, eu digo que estava. Se me disserem que a guerra colonial não estava perdida na Guiné, eu digo também que não estava. E não estava a que preço? O regime mandava para lá aviões, helicópteros mas também homens não sei onde é que os iria buscar. Um dia passou por mim um soldado que não me fez continência. Chamei-o e perguntei-lhe se ele não me tinha visto. Ele disse-me que sim, que me tinha visto e deu-me um papel do seu comandante de companhia que dizia “Atesto que o soldado tal é paralítico do braço direito”.

Falta-nos falar da Operação Mar Verde e dos depoimentos de Luís Cabral e de Marcelino da Mata. Ficam para o próximo post. A equipa do Freire Antunes procurou-me na época, facultei-lhes material, decidiram arbitrariamente por um texto distraído do relatório de uma operação que comandei “Rinoceronte Temível” e por um poema de Ruy Cinatti que ele me dedicou. Vem tudo na página 51 deste volume.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6551: Notas de leitura (119): Uma Campanha na Guiné, 1965/67, de Manuel Domingues (2) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Eu não queria entrar mais nesta oxidante, ferrugenta discussão, mas não resisto.

1-Os aviões e os pilotos do PAIGC.

Os guerrilheiros controlavam, segundo a sua propaganda e a dos seus apaniguados
"2/3 do território". E tinham, ou iriam ter, pilotos e aviões. Onde seriam os seus aeroportos, as suas pistas de aviação? Em Madina do Boé, no Morés, na Caboiana?
Não. Seriam (uso o tempo condicional) na Guiné Conacry.
Não vamos ser ingénuos.
O uso da aviação pelo PAIGC, provavelmente com aviões e (maus)pilotos da Guiné iria provocar a internacionalização total da guerra. Portugal preparava-se para comprar Mirage franceses, capazes de bombardear fora das fronteiras da Guiné Portuguesa.
Não vale a pena analisar os "ses" e todos os "condicionais".
A fase final do conflito foi o que foi, sem derrotas militares nos aquartelamentos de fronteira (ai Guileje!)nem red eyes, etc.

2-Respigo a opinião de insuspeita pessoa:

Diz Aristides Pereira em entrevista ao nosso amigo Leopoldo Amado, em 1998, transcrita pelo coronel Manuel Amaro Bernardo no seu interessantíssimo (sobretudo pelos muitos dados que nos fornece) Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerrilheiros, Guiné, 1970 – 1980, Lisboa, Ed. Prefácio, 2007:

Leopoldo Amado: “Por altura do 25 de Abril de 1974, o PAIGC tinha uma capacidade militar maior que as tropas coloniais?
Aristides Pereira: Maior, não diria, na medida em que estavam bem apetrechadas, tinham uma logística mais bem montada que a nossa, para além de um número superior de efectivos do que nós. A verdade é que no fim o soldado português já estava mal; estava farto daquilo.”

Meus caros amigos e companheiros da Guiné. A guerra não estava militarmente perdida. Estávamos era fartos da guerra, de um conflito que não tinha solução militar. A solução era, sempre foi, política. Daí o 25 de Abril, um movimento militar com um objectivo de natureza política, derrubar o regime e acabar com as guerras em África.

Foi ou não foi assim?

A 10 de Junho de 2010, Viva Camões, Viva Portugal!...

Abraço,
António Graça de Abreu

Manuel Joaquim disse...

Meu caro António G. de Abreu

Parece até que estamos os dois sempre às "turras" um ao outro!
Não, poderemos ter opiniões diferentes, ou nem tanto.Sirva a imagem do copo meio de água:um vê-o meio cheio e o outro diz que está meio vazio.
Neste caso,"é chover no molhado" estarmos a discutir os «ses», quando muito servirá aos estrategos militares para a criação de cenários de guerra.

Outra coisa é a difusão da ideia de que " a guerra não estava militarmente perdida", que foi lançada (e mantida)pela hierarquia militar,sendo entendida por muitos como um "lavar as mãos como Pilatos",opinião que não tenho.
Mas, se não estava «militarmente» perdida, querem dizer que «politicamente» o estava? Se a guerra estava perdida «politicamente»,que andavam os chefes militares a fazer? A encher a "pança",sacrificando milhares de jovens deste país,enganando o governo com promessas de vitória?

A "brigada do reumático" tinha credibilidade? Entre as próprias forças militares tinha muito pouca, e no Governo de M. Caetano?
Como é que se pode combater com soldados desmotivados e ganhar uma guerra?

Então, uma guerra «politicamente» perdida pode ser "ganha" militarmente?
Pode,mas é inaceitável;o IN é que se vai aproveitar dela.
O que é que sustenta uma vitória militar se o beneficiário político
já não é capaz de usufruir dos resultados dela? É um balão furado!
Por isso é que,na estratégia política,é preferível a derrota política à derrota militar. Tem sempre custos muito menores para os cidadãos.
E foi isto que o regime de Salazar e Caetano não quis perceber. Os cidadãos estavam no fim das prioridades. Tão no fim que até se esqueceram do seu número, cada vez menor para se poderem prencher os corpos militares necessários.E optou-se,claramente,pela derrota militar.Como na Índia.Só que ,agora, saiu-lhe "o tiro pela culatra".As Forças Armadas (o seu corpo vivo) arrepiaram caminho.

À tua pergunta final, sobre o último parágrafo,"Foi ou não foi assim?"respondo que concordo contigo.Só com uma ressalva:
Para mim, a guerra não estava militarmente,nem politicamente, perdida.Para mim a guerra estava perdida,há alguns anos já ( na Guiné ). E estava perdida porque , como dizes, estávamos fartos dela.Bem fartos!
Além disso,contesto o uso desta afirmação com o sentido de que as independências das colónias poderiam ter sido sustidas( é a mensagem subliminar), ou negociadas doutra forma, porque as nossas forças armadas tinham capacidade para suportar, militarmente, essa intenção.
E a minha opinião, cada vez mais alicerçada, é que não tinham mesmo. Nem sequer para (politicamente) ocupar o território, com estacionamento fixo.
«Militarmente» é para discussão de índole militar. Foram os políticos que acabaram com as guerras em África,pois,mas foram os militares que derrubaram o regime e "armados em políticos ou para-políticos" contribuiram muito(muito, muito)para isso.Não venham dizer que não tiveram nada, ou tiveram muito pouco , a ver com isso.Porque não é verdade.

Olha, António,obrigado pelo estímulo intelectual.Obrigas-me a pensar!

Um abraço

antonio graça de abreu disse...

Uma guerra militarmente perdida significa, um exército (neste caso colonialista, fascista, ou heróicos continuadores, transmissores de um passado épico,de um Império multiracial ou pluricontinental, todo e qualquer rótulo tonto ou inteligente que nos quiserem colocar), significa um exército que foi derrotado no terreno pelo outro beligerante.
Militarmente derrotado, repito.
Apenas isto.
Não fomos derrotados nas terras da Guiné. Em termos militares éramos mais fortes do que os guerrilheiros do PAIGC. Em Abril de 1974, 90% da população guineense vivia junto ou próximo dos aquartelamentos ou destacamentos NT. E havia 225 aquartelamentos ou destacamentos com tropa portuguesa ou africana, ao nosso lado, espalhada por toda a Guiné. Quantos possuía o PAIGC?
Perdemos militarmente a guerra?
Não insultem os 40.000 portugueses (eu fui um deles, 72/74!) que aguentaram no terreno e se comportaram como dignos soldados, homens do que de melhor, ao longo de nove séculos, a grei lusitana produziu.
Mas então a guerra não estava perdida? Claro que sim. Em termos políticos, desde o primeiro dia.
Não em termos militares. Sempre fomos mais fortes do que os valoroso combatentes do PAIGC..

Abraço,

António Graça de Abreu

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