Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Guiné 63/74 - P6576: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (24):O miúdo Marciano Mamadú Sissé
1. Nota solta enviada pelo nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), em mensagem do dia 8 de Junho de 2010:
Amigo Carlos,
Este caso marcou-me profundamente.
Por aqui se vê a amizade que tivemos pelo povo da Guiné.
NOTAS SOLTAS DA CART 643 (24)
O MIÚDO MARCIANO MAMADU SISSÉ
Havia pouco tempo que a Cart 643 - Águias Negras - se encontrava em Bissorã, estávamos em Junho de 1964.
Os primeiros dias foram preenchidos com a instalação dos homens pelo chamado aquartelamento, ficando 3 pelotões em casernas, nos ex-armazéns de mancarra.
Os oficiais num edificio do arruamento principal dentro da povoação, frente à residência do Administrador, Aguinaldo Spencer Salomão.
Os sargentos, por sua vez ficaram alojados junto às casas de alguns civis, caso do Gardeth, Michel Ajouz e outros, isto numa rua paralela á principal, não longe do mercado indigena.
Os nossos quartos em numero de três, albergavam os 16 sargentos da companhia, alojados em beliche, com uma instalação sanitária para todos, o que não era nada mau, comparado com outros locais.
Então começaram a aparecer as chamadas lavadeiras, - Bo miste lavadera -, algumas ladeadas pelos filhos, uns pela mão e outros em atrelados.
Foi nessa altura que apareçeu um miúdo, simpático, sorridente, não largando a nossa porta durante todo o dia, oferecendo os préstimos em recados, enfim um sempre pronto para qualquer tarefa.
O nome dele era Marciano Mamadu Sissé, morava na estrada do Olossato, um pouco antes da pista de aviação.
A pouco e pouco foi promovido a Mascote da Sargentada, motivado pela sua simpatia e pela prontidão e boa vontade em nos servir. À noite regressava à sua morança, levando sempre uma quantidade apreciável de rancho, não de restos mas igual ao distribuído aos homens da companhia.
O tempo foi passando, entrava no quartel como se fosse um dos nossos, entre outros serviços ajudava na cozinha e na oficina auto na pessoa do mecânico, um alentejano de Arcos-Estremoz, de nome Joaquim Cabaço.
Dia a dia, mês após mês, o calendário passava com naturalidade, até que chegou o meu fatídico dia 27 de Outubro de 1965, dia em que fui ferido com alguma gravidade.
Não mais regressei a Bissorã, sendo evacuado do mato diretcamente em heli para o HM241, mais tarde para o HMP em Lisboa.
A partir de então perdi o contacto com a minha familia militar, até porque 3 meses depois terminaram a comissão de serviço, regressando todos a casa. Perdi o contacto também com os meus amigos civis e naturalmente com o Marciano. Pouco tempo depois recebi um aerograma, deduzo que foi escrito por alguém da Cart 816, em 1966, com palavras do Marciano a seu mando.
Foi lido com atenção e emoção, mas acabei por não responder, encontrava-me no Hospital com muitos problemas de saúde, que durou entre 2 a 3 anos, como tal o que estava escrito, caiu no esquecimento.
Mais tarde decidi fazer uma pesquisa para saber se o Marciano era vivo e em caso afirmativo, o local da sua residência.
Recorri à Embaixada da Guiné-Bissau, solicitando informação junto de um funcionário, que me aconselhou escrever para as entidades oficiais de Bissorã, contando toda a história.
Acertei em cheio, depois de um tempo de espera, eis que surgem noticias, o Marciano Mamadu Sissé, era vivo e de boa saúde.
Disse que morava no mesmo local, mas depois da independência teve de fugir, e esteve anos por terras do Senegal. Fuga que foi motivada pela perseguição dos que colaboravam, ou se davam com a tropa Portuguesa, os que não conseguiram, foram impediosamente fuzilados, como me recordo do Quebá e Citafá (mandingas), nossos amigos e guias.
Entretanto o único telefone na altura existente em Bissorã, foi-me disponibilizado para poder falar com ele, foi um momento grande e emotivo, passou a chamar-me de Pai Rogério, enfim de miúdo a homem 30 anos depois.
Fiquei feliz, a minha teimosia deu frutos.
A sua descendência é de meia duzia de filhos, 2 em Bissau, 3 em Bissorã e um na cidade da Amadora, filho este que conheci mais tarde e tendo passado momentos com a minha familia, aliás foi com ele que tive conhecimento destas informações.
Hoje estou em contacto com alguma frequência, mas o sonho do Marciano era o de ter uma visita nossa à sua Bissorã.
A difícil luta pela sobrevivência é uma constante, o que de momento lhe posso garantir, é algum apoio material, tanto em dinheiro como em artigos diversos, claro quando tenho portador, o que é dificil por vezes.
Junto fotos, do Marciano aos 13 anos e mais tarde aos 45, aerograma de 1966 e carta do Secretário do Sector de Bissorã, dando a notícia que o tinha encontrado.
Rogério Cardoso
Ex-Fur Mil
Cart 643-Águias Negras
Marciano aos 13 anos
Marciano aos 45 anos
Aerograma de Marciano dirigido a Rogério Cardoso
Carta do Secretário do Sector de Bissorã enviada a Rogério Cardoso, dando conta do paradeiro de Marciano.
(Clicar nas imagens para ampliar)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6559: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (23): O Comandante do BART 645, Coronel Braamcamp Sobral
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2 comentários:
Bonito este teu conto, assim como os anteriores. Quando se fala de Bissorã ou Olossato, claro que não fico insensível e tenho que me mexer.
Afinal as nossas Companhias também estiveram jintas em Bissorã durante alguns meses, e em franca e sã camaradagem que registei e registo com agrado.
Não me recordo do Marciano, mas, nós, os Furrieis da 816, também tivemos um assíduo companheiro com a mesma idade do Marciano, mas não me lembro do nome. Oxalá que esteja bem também.
Nós, os furrieis da 816, quando chegamos a Bissorã, inicialmente era para ficarmos alojados perto de vocês e também nas imediações do mercado mas, depois acabamos por ficar numa bonita casa que teria sido de um colono português ou de um bem sucedido Libanês que ficava enfrente da casa do libanês Rui que fazia um bailarico em sua casa, julgo que aos sábados.
A nossa casa era também paralela à estrada principal mas do lado oposto da vossa. Lembras-te?
Um abraço Rgério.
Rui Silva
Amigo Rui
desculpa de só agora responder ao teu com..
Já estou a ver a casa onde a malta da 816 ficava, foi o nosso camarada Armando Pires que me fez lembrar através de umas fotos.
O Rui não era um tipo pequenino que trabalhava na Administração? Eu e alguns manos iamos a uns bailaricos, numa casa mais ou menos para esses lados. Eu até mais que uma vez consegui levar o nosso homem grande, da comp. para a festança, ele não dava muitas abébias, mas eu lá conseguia, pois era a maneira de conseguir autorização.
Um abraço do Rogério
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