1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2010, com mais uma das suas recensões:
Um pouco da história do Leste da Guiné, 1965 - 1967
por Beja Santos
Quando peguei no livro “Uma Campanha na Guiné, 1965/67, história de uma guerra, relatos e memórias dos intervenientes”, por Manuel Domingues, edição de autor, em 2003, pertença da biblioteca da Associação 25 de Abril, julguei que ia ler mais um relato convencional de uma história de batalhão, feita à medida de relatos lisonjeiros, tão ao agrado de quem quer consultar memórias com o menor índice de perturbação. Equivoquei-me. Manuel Domingues, um dos oficiais do BCaç 1856, redigiu um dos mais conscienciosos documentos que até hoje me foi dado ler, não descura os dados convencionais, não ilude ou procura adoçar considerações do seu próprio punho, desce ao rigor de nos dar diferentes caracterizações tanto da actividade do inimigo, da região do Gabu e do evoluir da guerra com tal impressividade que seguramente os historiadores da guerra colonial encontrarão aqui filão para investigações mais detalhadas. E é igualmente de leitura absorvente o conjunto de memórias de guerra que Manuel Domingues recolheu junto de diferentes protagonistas, e que constituem a segunda parte do volume.
O autor afoitou-se a esta empreitada no intuito de deixar um testemunho às novas gerações sobre o esforço do que foi a intervenção daqueles militares que assistiram à degradação do esforço de guerra, à crescente capacidade ofensiva do PAIGC, designadamente na região do Boé, ressalvando as vivências de quem lá combateu e recordando os 12 camaradas que pagaram com a vida o cumprimento da missão na Guiné.
Formado na Amadora, o BCaç 1856 deslocou-se em Junho de 1965 para a Guarda onde realizou a instrução de aperfeiçoamento operacional. Teve uma formação acidentada esta fase constitutiva, com várias e importantes ausências, a improvisação impôs-se, houve falhas importantes de material e equipamento (penso que é uma história que qualquer um de nós podia contar) e lá embarcaram no final de Julho no Niassa, foram recolher mais elementos ao Funchal e instalaram-se em Brá em 6 de Agosto. Acabaram por render o BCav 490 no Leste, ficaram à ordem do Comando-chefe, as três companhias receberam treino operacional até marcharem para o sector L3, com a sede no Gabu.
Surpreende os cuidados de Manuel Domingues na apresentação de detalhes, a minúcia como caracteriza o contexto guineense e o teatro de operações do Leste. Uma das companhias seguiu para Madina do Boé, com um destacamento em Béli, outra foi para Bajocunda, com destacamento em Copá e a outra para Buruntuma com destacamento em Ponte Caiúm. Manuel Domingues refere o caso de Madina do Boé em que o local escolhido fora o menos indicado para estacionar uma unidade militar: situado a uma distância relativamente longa do Gabu, isolado na época das chuvas, em que só podia ser abastecido por via aérea. Todas as operações de reabastecimento eram um esforço desmedido com elevado desgaste do pessoal e da inutilização de material. E observa: “Merece referência o estrangulamento constituído pela travessia do rio Corubal no Che Che, no itinerário Nova Lamego-Boé, que é assegurada por uma jangada rudimentar, apenas com capacidade para duas viaturas fazendo com que a travessia do rio, numa operação de reabastecimento, possa demorar um dia, denunciando os intentos ao inimigo, que se movimenta facilmente na margem sul”. Medina do Boé e Béli eram o caso mais crítico de abastecimentos, não dispunham de condições locais de armazenamento e conservação. Já nessa altura os guerrilheiros se deslocavam com grande facilidade no Boé, armadilhando e minando os itinerários, não existiam populações fora dos destacamentos militares. O BCaç 1856 respondia por 13 estacionamentos, uns fronteiriços (Bajocunda, Canquelifá, Buruntuma, Cabuca, Madina do Boé e Béli), outros com interesse para a manutenção da segurança dos itinerários (caso de Piche, Ponte Caiúm, Canjadude e Che Che), impulsionava actividade operacional, assistência sanitárias às populações, dando-lhes apoio na defesa e transporte das colheitas, acções de patrulhamento, nomadizações, etc. Segundo Manuel Domingues, neste período o inimigo reforçou a sua presença na região, inclusivamente mudou de tácticas, como escreve: “Ao reforço do apoio aéreo por parte das nossas tropas, respondeu o inimigo com a alteração do horário dos ataques que passou a efectuar fundamentalmente ao fim da tarde ou durante a madrugada, períodos em que a aviação não podia actuar, passando a usar metralhadoras anti-aéreas e, já em 1967, foguetões. Notou-se uma melhoria da eficiência de utilização do morteiro 82, com tiro ajustado sobre os alvos pretendidos, nomeadamente instalações eléctricas, depósitos de combustíveis e viaturas, completando esta acção demolidora com canhões sem recuo. Verificou-se um quase total despovoamento do Boé, cujas populações se refugiaram em Nova Lamego e a restante nos países vizinhos”. O PAIGC pretendia apresentar à comunidade internacional uma “zona libertada”. O BCaç 1856 passou o testemunho em 14 de Abril de 1967.
Manuel Domingues conta as peripécias da sua incorporação, os seus estudos e as duas viagens subsequentes que fez à Guiné, em 1969 e 1981. Nesta última viagem assistimos a uma completa degradação das forças armadas, sobrevivendo graças a expedientes e corrupção. Depois publica um interessante “diário de um combatente”, de autor desconhecido. Começa em 21 de Abril de 1965 e vai até 27 de Janeiro de 1967. Retêm-se aqui algumas transcrições:
14/09/65 – Operação Ligação. Primeiro contacto com o inimigo. Um grupo de cubatas abandonadas recentemente pela aproximação dos soldados foi cuidadosamente inspeccionado. Inesperadamente todos iniciam uma louca correria. É o inimigo? Não, apenas algumas abelhas, os pequenos monstros alados, num zumbido aterrador atacam as vítimas apavoradas. Começa o fogo. Os projécteis ao sair do cano das armas provocam um estremecimento embriagador. O cheiro a pólvora altera os espíritos.
28/09/65 – Os corpos frios e encharcados; os pés martirizados; os olhos cansados... Calor, moscas e mosquitos, procuram penetrar nos olhos, boca e ouvidos. Do solo escaldante elevam-se nuvens de vapor de água. Os pés penetram no fundo fofo e lamacento das bolanhas. As bolhas produzidas pelas botas de borracha, fazem contorcer num rito doloroso o fácies dos eternos caminhantes. Uma grande extensão de terreno cultivado é indício da presença de seres humanos. Monta-se a segurança... duas cubatas ocultas pelo terreno... risos e conversas... os olhos brilhantes... o peito a arfar da excitação; passos felinos; corpos curvados.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de5 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6537: Notas de leitura (117): Álvaro Cunhal Sete Fôlegos do Combatente, de Carlos Brito e, Ombro Arma!, de José Manuel Mendes (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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