sábado, 5 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6537: Notas de leitura (117): Álvaro Cunhal Sete Fôlegos do Combatente, de Carlos Brito e, Ombro Arma!, de José Manuel Mendes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2010:

Luís e Carlos,
Fiquei aparvalhado quando fui ao blogue.
Enviara a minha lembrança, o arranque do livro que tenho entre mãos, não me passava pela cabeça encontrar a mensagem da Glória, ela estava mesmo esplendorosa naquela fotografia.

Muito obrigado aos dois e a todos aqueles que, de modo tão tocante, me saudaram, dando-me ânimo para prosseguir nesta nossa sala de conversa. Como é meu hábito pedinchar, recordo, sem malícia, que a melhor prenda que me podem dar passa pelas informações de livros de inventário obrigatório.

O blogue presta inúmeros serviços, já se sabe.
Um deles, toleima minha, será o de facilitar aos historiadores a bibliografia constante da nossa guerra. É essa a ajuda que peço a todos.
Vamos continuar.

Um abraço do
Mário



A posição dos comunistas sobre a guerra colonial:

Uma obra paradigmática de José Manuel Mendes


por Beja Santos

Num livro recente de memórias sobre Álvaro Cunhal, o antigo dirigente do PCP Carlos Brito explica claramente qual o comportamento dos comunistas face à guerra colonial, as deserções e a subversão nos quartéis (Álvaro Cunhal, sete fôlegos do combatente, por Carlos Brito, Edições Nelson de Matos, 2010, a partir da página 32). Brito, como é do conhecimento de todos, foi resistente, conheceu a clandestinidade e as prisões e no dia 25 de Abril de 1974 era responsável pela organização do PCP em Lisboa; em 1975, foi eleito deputado e esteve em S. Bento até 1991, tendo desempenhado durante 15 anos as funções de presidente do grupo parlamentar do PCP. Viria, no dobrar do século, a entrar em dissidência com os órgãos de cúpula do PCP, que neste livro designa por conservadores.

Referindo-se concretamente à reunião do Comité Central de Julho de 1967, fala de importantes resoluções que tinham a ver com a filiação do PCP de portugueses residentes no estrangeiro, a obrigação de todo o militante não tomar a decisão de emigrar sem antes consultar o partido, e a intensificação do trabalho revolucionário nas Forças Armadas não havendo lugar a deserções por parte dos comunistas.

Assim, nessa reunião clandestina, definia-se como orientação geral: “Os militares comunistas devem trabalhar para estimularem e organizarem as deserções. Mas eles próprios não devem desertar senão quando tenham de acompanhar uma deserção colectiva ou corram iminente risco de serem presos em resultado da sua acção revolucionária”. E mais adiante: “Os militares comunistas devem continuar corajosamente o seu trabalho revolucionário das Forças Armadas, tanto em Portugal como nas colónias, esclarecendo os seus companheiros, organizando os militares mais decididos e combativos, estimulando e organizando deserções e outras formas de acção e protesto contra a guerra colonial, desde resistência passiva à sabotagem”.

Segundo Brito, a aprovação desta resolução foi tudo menos pacífica, havia o entendimento que a deserção era o melhor caminho para se mostrar o ideal comunista. Observa Brito que “Após o 25 de Abril esta resolução foi reconhecida como um importante contributo para a formação de uma consciência revolucionária dentro das forças armadas portuguesas. A partir dela, especialmente, e graças ao trabalho desenvolvido pelas organizações partidárias, um grande número de oficiais milicianos revolucionários (comunistas e outros) permaneceram nas fileiras e desenvolveram um intenso trabalho de esclarecimento junto dos oficiais do quadro permanente, orientando num sentido anti-fascista os sentimentos de revolta provocados por uma guerra injusta e sem saída”.


“Ombro, Arma!”, de José Manuel Mendes (Bertrand, 1978) fala da instrução em Mafra e da luta dos comunistas, já muito perto do 25 de Abril. Mendes passou alguns meses em Mafra até ser dado como inapto para todo o serviço. É um conhecido crítico literário e poeta, as narrativas de “Ombro, Arma!” tiveram o seu eco à data da publicação. Percebe-se porquê: um bom controlo da escrita, um uso bem doseado do jargão da caserna, uma atitude panfletária sacudida da luta dos comunistas na principal escola para a formação de oficiais milicianos. Vejamos: “Mandando nova bruta palada”, “ – Companhia! Firme! Sé... up!”. “Que o Viegas aceitasse o jugo (que não é jugo para ele) compreendia-se. Fascista convicto, fura-greves, delator, a tropa era a sua vaza, a possibilidade única, a curto prazo, de realizar os seus sonhos prepotentes. Comandar homens, sem a menor concessão, compensava-o da mediocridade de estudante”, são expressões que enfatizam o ambiente, que referenciam, em água-forte, o colaborador do regime, neste caso o Viegas.

Depois, temos o desenho seguro do local e dos requisitos da instrução. Como se pode ler: “Manhã gelada, de vento golpeando os poros. A malta faz movimentos com o corpo para aquecer. Esfregar as mãos é produzir um pequeno sol pessoal. Vem o aspirante, manda formar. É o terceiro dia de instrução. Mafra, o abjecto exílio. O cabo Jerónimo ajuda a perfilar pela direita. Estende o braço, alonga a mirada. Rogério, na ponte da segunda fila, lado esquerdo, forma, inconvicto, desatento. Ainda não conseguiu farda que lhe assentasse. Nem botas que não lhe ferissem os pés. Camisa clara, gravata vermelha, fato preto, é uma presença insólita naquela floresta de verde desmaiado.

– Descan-‘ar.”

Rogério anda ali como carta fora do baralho. Depois passou a ser mais um feijão verde. Aqui o instruendo escreve uma tirada panfletária: “Vestir a farda era, naquele momento, entrar no sujo mundo da guerra. Que éramos nós? A carne com que o colonialismo jogava os seus milhões de dólares. Era preciso resistir”. Rogério é asmático. Aparece como maltratado pelos médicos na tropa. Depois vai à consulta externa. Nos primeiros dias de Mafra não sente sintomas. E vai aderindo, contrafeito, à instrução: “Amanhã, a instrução nocturna. De acordo com o cabo Jerónimo, bem dura por sinal. Quilómetros a pé, sobre taludes e ravinas, pequenos caminhos, córregos barrentos, sem outra luz que é duma pilha, a bússola norteando os andarilhos. Os tipos criam, nestas alturas, uns prémios para as primeiras equipas a concluir o percurso, correctamente, com todos os controlos assinalados pelo gatafunho de um furriel. É o espírito de rivalidade que, não bastando para dividir, já tem provocado tensões”. Naquele Janeiro a parada de Mafra apareceu cheia de papéis com palavras clandestinas e, claro está “O Viegas, lívido de indignação, palestrava com dois comparsas. Ascoroso como um rato ao sair de um fosso”. As tiradas panfletárias sobem de tom, os discursos do oficialato são apresentados como histriónicos, a resistência dos instruendos torna-se mais densa. Rogério faz exames no hospital, encontra-se com outros camaradas, a resistência anda no ar. Por vezes, percebe-se que o panfleto é excessivo, rebuscado, que o autor se sobrepõe a todas as medidas do plausível para pôr a denúncia em movimento, como se houvesse uma monstruosidade generalizada, na instrução, na definição de inimigo, nas marchas finais. A cerimónia do juramento de bandeira aparece transformada como o grande momento da resistência. E depois Mafra chegou ao fim. O próprio edifício se transforma no grande teatro do sofrimento e da ignomínia da guerra colonial: “Mafra chegou ao fim, o escuro exílio. Mafra e o frio de Janeiro tiritando no corpo, a humidade viscosa nas paredes, os corredores soturnos onde moram presságios e maldições. Tudo ali é fugaz, mas a pedra secular, a alta abóbada dos tectos, o negrume dos claustros repassam os dias dum torpor longevo”. Acabara-se o pesadelo de Rogério que vai lutar noutros terrenos, ao lado de outros progressistas.

A narrativa de José Manuel Mendes, escusado é sublinhar, aparece hoje datada, um panfleto óbvio, um grito fora do tempo, uma catarse com pouco sentido, seja para quem combateu, seja para as novas gerações. Mas foi assim que os comunistas quiseram fazer passar a sua mensagem, a sua subversão.

Para que conste.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6526: Notas de leitura (116): Guiné-Bissau Três Vezes Vinte Cinco, de TCor Luís Ataíde Banazol (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Eram progressistas os comunistas que se opunham à guerra?
Eu sei que os tempos eram outros, mas em 197O, a União Soviética que Álvaro Cunhal considerava "o sol do nosso planeta" funcionava desde 1917, como uma feroz ditadura contra o povo, em nome do povo.
José Manuel Mendes, que até tem algumas qualidades de escritor, era um compagnon de route, militante comunista, incondicional admirador do sistema político da União Soviética. Ingénuos fomos quase todos, acreditámos no inacreditável. Mas não podemos ser ingénuos toda a vida.
Volto a transcrever parte do comentário que fiz no penúltimo poste do Mário Beja Santos.


"Ás vezes, no correr dos comentários, reconheço que sou um pouco cínico e não sínico (de Sinae, China) como devia.
Acontece que a minha decepção com o socialismo real -- vivi durante seis anos em Pequim e Xangai -- é enorme. Também conheci a Alemanha Oriental, em 1969, a Mongólia e a União Soviética em 1981,(com Brejnev no poder) além da China Popular por dentro de 1977 a 1983.
E, há já um ror de anos, fazem-me muita espécie os arautos do passado e do presente que continuam a falar nos "amanhãs que cantam", no "homem novo", na "sociedade socialista mais fraterna e mais justa", na "criação do mundo melhor".
Estes ideais, se praticáveis e possíveis, teriam na realidade transformado o mundo, para melhor.
Mas não transformaram nada. Em nome deles, e do povo, esses arautos chegados ao poder cometeram barbaridades contra esse mesmo povo, assassinaram milhões de pessoas, criaram infernos concentracionários ao lado dos quais a nossa obsoleta ditadura
salazarista e caetanista parecerá quase um paraíso.
Claro que o o socialismo africano é uma outra realidade. Mas sabemos qual a ideologia subjacente às mentes de Amílcar Cabral, Agostinho
Neto, Samora Machel e até da Fretilin, em Timor, 1974, e quais os países que os apoiavam.
Já escrevi aqui no blogue que não sou de esquerda nem de direita.São conceitos equívocos que não me dizem nada. Rejeito as passadeiras da esquerda e da direita para eu escolher e enfileirar.
Penso pela minha própria cabeça, faço o meu próprio caminho. "Caminante, no hay camiño, se hace el camiño al andar", cantava o Paxti Andión, nos versos do poeta António Machado, numa conhecida canção da nossa juventude.
Prezo muito a minha liberdade.
Porque a vi espezinhada, ultrajada, esmagada, em nome da direita e da esquerda".

Um abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

O Sonho de Alvaro Cunhal, realizou-se plenamente, no caso da Guiné Bissau.

Tive ocasião de ver esse sonho realizado na pátria de Amilcar Cabral.

Desde os tanque soviétcos e uma enorme embaixada, até ao racionamento do arroz, pão, pilhas e penicos e sabão...tudo ao pormenor se socializou.

Pelos vistos só em Portugal, o sonho de Cunhal foi interrompido com 25 de Novº, ainda vi no Brasil banqueiros refugiados, portanto já faltaria pouco.

Era pena, se as valas comuns da guiné fossem imitadas à volta do campo pequeno. Mas uma expriênciazinha (sem valas) seria a revolução completa...e merecida, penso eu.

Embora o sonho de Cunhal só se tenha realizado 6 anos após o botas cair da cadeira, na guiné durou até 1993, alguns anos após a perestroica.

Como vivi por dentro a experiência socialista na guiné, e fiz questão de, passivamente, "colaborar", penso que para a hitória de portugal, ter atrazado o 25 de Novº, uns 3 anitos, não seria mau.

Antº Rosinha