sexta-feira, 4 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6532: Estórias do Juvenal Amado (26): Laura, ou as estórias da nossa terra

1. Mensagem de Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 30 de Maio de 2010, com mais uma das suas estórias, sempre do agrado da tertúlia:

Meus caros Luis, Carlos, Magalhães, Briote e restante camaradas da Tabanca Grande

Fui trabalhar para a Crisal (fábrica de vidros de Alcobça) com onze anos, acabado de sair da escola primária e como eu foram muitos ao longo da minha juventude.
Só lá estive uma ou duas horas.

O forno da Crisal foi dos sítios que conheci, onde o trabalho era da maior violência. Centenas de trabalhadores trabalhavam ao mesmo tempo com canas de aço, donde pendiam a ponta bolas de vidro incandescente e os meninos de 11 anos, levavam depois as peças já moldadas para as arcas de tempera (Chamava-se levar a cima).
O calor era insuportável e a grande concentração de trabalhadores, tornava o local perigoso com acidentes quase diários. Mais tarde a empresa foi modernizada e a temível secção do forno, foi dividida em turnos, construída em local mais arejado e foi assim reduzido em grande parte o perigo aos seus trabalhadores.

Durante esses anos, foi vê-los partir para a guerra e vê-los regressar os que regressaram.

Mais tarde com 14 anos, voltei para ingressar na pintura e por lá permaneci até 1980.

A estória que trago hoje é pois, uma memória de várias memórias. Os nomes são fictícios mas as situações não deixam de ser verdadeiras na sua essência.

Esta introdução vem um pouco na linha do excelente poste do Mário Pinto, sobre a falta de preparação que nós tivemos para enfrentar o IN.

Isto só para dizer que os furriéis e alferes não foram preparados convenientemente, o que se dirá dos soldados que embarcavam quase sem dar tiros. Marchávamos relativamente bem, mas não se enfrenta o IN com marchas. Foi a vida ruim das suas juventudes, onde muitos que lá trabalhavam comiam broa e usavam como conduto um pouco de pão alvo, ou uma mão cheia de azeitonas escaldadas, que permitiu suportar as dificuldades por que passaram.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


LAURA OU ESTÓRIAS DA NOSSA TERRA

Laura dormia com o semblante calmo. A carta esquecida enfim após ser lida várias vezes repousa aberta. De manhã voltará a lê-la, talvez à procura do que está escrito nas entrelinhas, ou talvez da realidade que lá não foi escrita.

Jorge partiu mas o seu cheiro ainda está pela casa toda.

Férias tinham passado rapidamente, aliás antes do fim, já elas se tinham esgotado nos longos silêncios dele.

São quase oito horas da manhã, corre para apanhar ainda aberto o portão da fábrica.

- Bom dia senhor Manuel - cumprimenta ela o porteiro, que abana a cabeça como quem diz:

- Mais um pouco e ficavas na rua. Vai… vai rapariga, que eu mudo-te a chapa de entrada.

Se tem deixado fechar a porta, teria que esperar por um dos patrões, para que ele lhe desse autorização para pegar ao serviço. Que chatice já não bastava o dinheiro que perdia, como ainda ter que ficar à espera para pedir para ir trabalhar. Já não seria a primeira vez.

- Já chegaste? Fez-te mal o casamento ou é a falta.

São os normais comentários jocosos das colegas. Laura sorri mas não responde habituada, que está à brejeirice normal das colegas mais velhas da secção.

Onde estará o Jorge neste momento? - Pouco ou nada se tinha falado da guerra mas notava, que ele nem sempre estava com ela, ainda que presente fisicamente. Qualquer coisa trazia bem no fundo do seus pensamentos.

Os suores, os sonhos agitados, as longas horas de olhar fixo no tecto falavam por si.

O tempo passa devagar. Ah, se ele estivesse à minha espera ao portão da fábrica. Tinha-se habituado a que ele a esperasse todos os dias. Ia ser difícil suportar a sua ausência.

Se lhe acontece alguma coisa? - Como vou viver sem ele?

Logo afastava esses pensamentos rezando entre dentes uma oração, prometendo ir a Fátima a pé, se nada lhe acontecesse. Nem por sombras queria pensar que também a Maria tinha feito a mesma promessa e de nada lhe tinha valido, pois o namorado lá tinha ficado. Como dizia o padre, ao contrário dos bens terrenos, só Deus era para todos.

E o Tó, genro do latoeiro, e o Valdemar, que perderam uma perna, um na Guiné, o outro em Angola. Ao menos voltaram vivos e trabalhavam já na lapidação do vidro, uma vez que o trabalho nos fornos estava fora causa, mercê das suas deficiências.

Também o Zé de Cós, lá tinha ficado na Guiné logo no princípio da guerra. Era um artista a gravar à roda. Gravava desenhos minúsculos em baixo relevo no vidro, com rodas pequeníssimas feitas de vários materiais. Tiraram-lhe o engenho de gravar arte e beleza, deram-lhe um de matar.

De tempos a tempos, falava-se que tinha voltado um soldado dado como morto. No coração daquela mulher, que o tinha dado à luz, acendia-se uma esperança e na casa para sempre de luto, voltava a entrar uma réstia de Sol.

Mas não, ele já tinha voltado dentro do caixão, o local onde repousa, seria para sempre lugar santo e de romaria para aquela mãe.

O engenho que criava beleza, foi depois ocupado por jovem soldado regressado de Moçambique, que tinha para lá ido em 66 e regressava agora com o rosto e espírito marcados por Sagal Mueda, em pleno território Maconde.

Mas nada disto vai acontecer - Espantava ela os maus pensamentos.

Ele virá mesmo com cicatrizes no corpo e na alma, mas virá.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 28 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6263: Ser solidário (65): Solidariedade não é caridadezinha (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5955: Estórias do Juvenal Amado (25): O Sertã e os companheiros da tenda de campanha

2 comentários:

Anónimo disse...

Boa-noite Amigo Juvenal!

Acabei de ler a estória da Laura, que poderia ser a de muitas raparigas daqueles tristes anos.
Gostei muito da sua forma de escrever: Clara, de fácil compreensão, e dando voz a tantas angústias, sofrimento e saudades indíziveis, de quem por cá ficou esperando, e temendo o pior, num sobressalto contínuo, que o arrastar dos dias, tornava cruel.
Se editar as suas estórias, espero ter conhecimento para adquirir a obra.
Sempre que a sua paz de espírito lho permita, conte-nos mais.
Gostei mesmo.
Um abraço da amiga

Felismina Costa

MANUELMAIA disse...

CARO JUVENAL,

INFELIZMENTE,FORAM MUITOS OS CASOS COMO OS DO TÓ E DO VALDEMAR QUE MAU GRADO LIMITADOS PELA CIRCUNSTÂNCIA,CONTINUARAM O SEU PERCURSO COM UM DESVIO NO CAMINHO...

OS PIORES FORAM AQUELES,COMO O DO ZÉ DE CÓS QUE,LAMENTÁELMENTE, NÃO TIVERAM REMÉDIO E DEIXARAM AS MÃES E AS MULHERES NUM PRANTO QUE AINDA HOJE SE SENTE SEM OUVIR
QUANDO COM ELAS CONVERSAMOS...

QUANTOS ARTISTAS TIVERAM UM FIM SIMILAR?
QUANTAS OBRAS FICARAM INACABADAS? QUANTAS TELAS PERDIDAS PARA A PINTURA?
QUANTOS LIVROS NÃO CHEGARAM AO PRELO?
QUANTOS FILHOS CONHECERAM A ORFANDADE NA PRIMEIRA INFÂNCIA?

QUANTOS?QUANTOS POR ESSE PAÍS FORA?

ABRAÇO
MANUELMAIA