domingo, 30 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6494: Notas de leitura (115): A Flor e a Guerra, de Manuel Barão da Cunha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Faltava ainda a recensão deste livro dos anos 70.
O José Brás prometeu que vai procurar o livro do Álvaro Guerra “O Capitão Nemo e Eu”, cuja recensão é indispensável.
Como pedir não custa, volto a suplicar, a demandar, sempre sujeito aos vossos actos misericordiosos, que me emprestem as relíquias da vossas estantes, tudo o que tenha a ver com a literatura da guerra da Guiné e de que ainda não se fez recensão no blogue.
Gostava de só por encerrada esta empreitada quando tivermos o inventário acabado.

Um abraço do
Mário


A flor e a guerra

por Beja Santos

Manuel Barão da Cunha escreveu o livro “A Flor e a Guerra” entre 1970 e 1972 e publicou-o em 1974. Dedicou-o ao Movimento das Forças Armadas. Quando se começa a ler, pensa-se que o autor elaborou ( ou pretende simular) um guião de cinema, só lá faltam as imagens, aliás ao nosso alcance:

“Eles avançam em silêncio. Silêncio apenas quebrado pelo calcar das folhas, pelo tropeçar no mato. Pausas escassas que o cuidado é muito e o mato molhado.

Eles avançam em silêncio. Silêncio também na mata que rodeia o trilho onde se revolvem as nossas entranhas. Medo, angústia e desejo deste desconhecido que não quer revelar-se. Desta morte que tarda em chegar.

Flora e fauna emudeceram. O silêncio, a expectativa contemplam estes homens, estes pigmeus e a sua loucura. Estrondo. Folhas, ramos, terra, sangue, receios já vão pelo ar.

Eles avançam em silêncio, no meio da mata indiferente. Mas o silêncio e a indiferença foram quebrados.

Ramos, folhas, capim, jazem a par dos homens que avançavam. Já não é o estraçalhar do mato que corta a angústia. Há pólvora e gemidos no ar. Cheiro de sangue de árvores, se seiva humana.”

O leitor cedo se apercebe que são textos fragmentados, encadeados entre um antes e um durante a guerra, e talvez uma pausa para alguém que se restabelece dos efeitos da guerra numa atmosfera de paz, com a memória dorida e num sobressalto de afectos. Algo aconteceu para além do estrondo e da convalescença. Há frases pesporrentes, de caserna, há diálogos sincopados, entre um combatente e uma mulher que parece disposta a amar. Na cabeça do convalescente reorganiza-se uma operação de contra-guerrilha, percorrem-se trilhos, caminha-se para um objectivo, desfilam figurantes, a tensão é elevadíssima, o convalescente afinal parece estar em Londres, lança um olhar sobre uma sociedade de abundância, com arte pop e gente satisfeita, convivente, o confronto com aquela guerra de onde vem fá-lo pensar. Porém, aquela operação espeta-se-lhe no cérebro, é o ferro em brasa que atravessa toda a narrativa, enigmática. Sem dar tréguas, o autor cadencia a marcha da narrativa, interpolando os vários lugares e tempos, mas percebe-se que a espinha dorsal assenta na tal operação, o alfa e o ómega das relações que se construíram e desconstruíram na convalescença do combatente:

“À frente o guia-turra. Uma corda liga-o ao primeiro soldado. O 129 oferecera-se para aquele arriscado lugar. Aquela atitude contrastava com o seu aspecto ainda pouco viril. Necessidade de demonstrar aos outros? Ou a si próprio? Ou talvez nada disso, que nisto de coragem nos homens é como o comportamento feminino.

Logo atrás, o Manique com a arma pronta a disparar. Depois, todos os outros, perscrutando a mata que orlava o trilho. Sós, sós no meio verde. O verde das costas do camuflado da frente. O verde da mata que os rodeava. Sós com os seus próprios problemas”.

A coluna será detectada, haverá tiroteio, a força atacante procura dissimular-se ao anoitecer. Os do PAIGC estão-lhes no encalço. A lua desapareceu, estão imersos na escuridão total. Só que a floresta, de tempos a tempos, é sacudida por tiros e rajadas. É nisto que a força atacante, até aí silenciosa, descarrega a tensão acumulada. Terá sido um erro, o inimigo reagrupa-se, aperta o cerco. E surgem os feridos, um piloto de helicóptero aceita o risco, levanta ao amanhecer. Cá em baixo, um ataque de abelhas agrava a balbúrdia, quem está a ser cercado passa ao contra-ataque. O helicóptero acidenta-se, qual ave ferida estatela-se numa clareira, com vidros quebrados e ferros torcidos. O que exactamente se passou, o leitor nunca saberá, os textos fragmentados sucedem-se, há consultas no hospital, radiografias, cruzam-se as conversas, apercebemo-nos que há densos afectos que não poderão ser contextualizados. Deliberadamente, a narrativa paralisa-se, perde continuidade, o que é facto é que na mata os homens prosseguem com as entranhas revolvidas, tal o medo e a angústia com um inimigo escondido algures, emboscado, pronto a dizimar.

Como estamos longe do livro “Aquelas Longas Horas” em que Manuel Barão da Cunha exaltava o heroísmo dos soldados anónimos. “A Flor e a Guerra” é um livro carregado de desalento, inacabado como história de guerra e paz. Um eloquente testemunho dos novos tempos que se avizinham, o 25 de Abril está a caminho.

Manuel Barão da Cunha (primeiro à esquerda) na Guiné
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Nota de CV:

Vd último poste da série de 29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6491: Notas de leitura (114): Antologia do Conto Ultramarino, de Amândio César (Mário Beja Santos)

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