terça-feira, 1 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6509: Controvérsias (81): As urnas de chumbo: "Os restos mortais do José António jazem finalmente na sua Terra Natal" (Alvorada, Lourinhã, 23/5/1965) (Luís Graça)



Notícia, que eu próprio elaborei (tinha 18 anos...) sobre a morte e o funeral do Sold Apont Morteiro José António Canoa Nogueira. E que vem a propósito das "urnas de cumbo com pedras e areia" (*)

Alvorada. (Lourinhã). 23 de Maio de 1965

Os restos mortais do José António jazem finalmente na sua Terra Natal.

Depois de transportados da Guiné para a Metrópole a expensas dos seus companheiros de campanha que lhe votavam particular estima e amizade, os restos mortais do soldado José António Canoa Nogueira repousam finalmente no cemitério da sua terra natal.

O funeral, realizado no segundo domingo do corrente, constituiu uma homenagem pública à memória daquele de cuja presença e convívio a morte irremediavelmente nos separou, e um testemunho de apreço pelo sacrifício da sua vida. Nele se incorporaram, além da multidão anónima e inumerável, o sr. Presidente do Conselho, outras autoridades civis e militares e os Bombeiros Voluntários.

À chegada do auto-fúnebre militar, com a urna, os clarins dos Soldados da Paz tocaram a silêncio. E o préstito atravessou a Vila, sob uma impressionante atmosfera de recolhimento e dor.

Antes da urna ser depositada no jazigo, os Bombeiros tocaram a continência, num último adeus e derradeiro tributo de homenagem ao Soldado e Jovem Lourinhanense.



O jornal publicava também, a seguir à notícia, uma carta, datada de 10 de Janeiro, endereçada ao  director, e que fazia parte do  espólio do malogrado José António  (o jornal não chegara a recebê-la, fora-me entregue pelo seu pai).

Em comentário introdutório dizia-se que a carta se revelava “a alma simples e transparente do José António, e da sua sensibilidade fina, delicada, capaz de descobrir motivos de beleza numa bandeira que flutua perdida no mato ou numa improvisada e fraterna refeição de campanha. Tinha razão o filósofo e ensaísta brasileiro Tristão de Ataíde quando disse: 'No fundo de cada homem dorme um poeta desconhecido'.

E acrescentava-se:

"Por ser , pois, a última ou uma das últimas cartas que escreveu para a Metrópole, e um apontamento breve mas sugestivo de expedicionário, aqui a publicamos"- acrescentava a notícia do jornal da terra.

Foto: © Luís Graça (2005). Direittos reservados


1. José António Canoa Nogueira, o primeiro combatente da guerra do ultramar, natural da Lourinhã, a morrer na Guiné. Em 23 de Janeiro de 1965.  Ia eu  fazer os meus dezoito anos e, por isso, já tinha dado (ou ia dar) o nome para as sortes.

A pacata vilória (naquele tempo)  do oeste estremenho foi sacudida pela notícia da morte do Nogueira.  Claro que ninguém soube  exactamente onde nem em que circunstâncias. Sabia-se apenas que tinha sido algures na Guiné. As Forças Armadas não davam explicações dessas. Um telegrama, seco e brutal, chegava normalmente a casa do pai e/ou mãe, uns dias depois, anunciando a funesta notícia: “As Forças Armadas cumprem o doloroso dever de o(a) informar que o seu filho morreu no campo da honra, servindo a Pátria”. Imagino que o teor do telegrama fosse esse...

Sei (ou melhor, vim a saber através da Internet, através da página sobre a Guerra do Ultramar, do nosso camarada António Pires) que o soldado Nogueira era apontador de morteiro, tinha o nº  2955/63, pertencia ao Pel Mort 942 / BCAÇ 619,  morreu em em combate. Sei também, por uma carta que publiquei a título póstumo, que ele estava em Ganjolá, Catió, SPM 2058.

O funeral do Nogueira,  quatro meses depois (em Maio de 1965), foi uma impressionante manifestação de dor. Lembro-me da urna, selada, em chumbo. Dos soldados fardados e aprumados, vindos de Mafra, da Escola Prática de Infantaria. Da salva de tiros. Do luto carregado. Da emoção no ar. De uma família destroçada. De uma comunidade comovida. Dos boatos: "Se calhar o caixão vem é cheio de pedras". Da estupefacção e do medo dos mancebos que estavam na lista para a tropa, como eu. Lembro-me sobretudo do silêncio do cemitério. Do calor,  abrasador, do dia.

Nasci e vivi os meus primeiros anos, a 100 metros de um cemitério. Era incapaz de lá passar à noite quando puto. A paz do cemitério num país em guerra... a milhares de quilómetros das portas de cada um de nós.

O Nogueira era meu primo, embora em 3º grau. Não tínhamos grande convívio, mas os nossos pais (o pai dele e a minha mãe) eram primos direitos. As nossas avós maternas eram irmãs. Todavia, a sua morte tocou-me. A morte aproxima sempre os grupos, as famílias. Fiz-lhe uma singela (e creio que sentida) homenagem no jornal da terra, com direito a caixa alta.  O seu pai nunca mais foi o mesmo. Passou a ser, doravante, um homem destroçado. Tinha uma irmã, líndissima, a Esmeralda, de olhos cor de esmeralda, que acabou por emigrar para o Canadá, se não me engano.

Na altura eu ainda era o chefe de redacção e o repórter principal do quinzenário regionalista "Alvorada".   Um facto, desconhecido e insólito para mim, mas ao tempo revelador da grande solidariedade entre os camaradas de guerra: na época os restos mortais dos nossos soldados não eram embarcados para a Metrópole, a expensas do Estado. No caso do Nogueira, foram os seus camaradas (do Pelotão de Morteiros e possivelmente também do Batalhã) que se quotizaram para pagar, do seu bolso, o transporte por via marítima da urna...(E, se calhar, a própria urna).  Creio que custava,. o transporte por via marítima,  qualquer coisa como 11 contos  (equivalente hoje a 55 euros...), o que era muito dinheiro para a época. De resto, entre a morte em Ganjola e o funeral na Lourinhã passaram-se  cerca de quatro meses...

Fica aqui a minha homenagem a esses bravos anónimos de Ganjolá. E mais uma vez aqui deixo também a saudosa recordação do meu conterrâneo e parente, reproduzindo uma das suas últimas cartas em que relatava, para os leitores do jornal da terra,  um pacato domingo no mato!

Não sei se foi depois disso (da notícia do funeral e dos meus comentários)  que o director, o Padre António Escudeiro, recebeu um ofício do Ministério do Interior a perguntar por que é que o jornal já não ia à censura há mais de um ano. Duas linhas, secas, burocráticas, impessoais. Em baixo, ocupando mais de metade da folha, a assinatura, em letra garrafal, mais arrogante e intimadatória que eu jamais vi em toda a minha vida… (Se o fascismo alguma vez existiu na minha terra, na nossa terra, então essa assinatura do censor-mor, ou de algum dos seus esbirros,  era fascismo, puro e duro).

2. Um domingo do mato
por José António Canoa Nogueira

Aqui, Ganjolá, Guiné, 10-1-1965

Mesmo no sul da Guiné, pequeno destacamento militar presta continência à Bandeira Verde-Rubra que sobre o mastro fica brilhando ao sol. E que linda que é a nossa bandeira; e é tão alegre, tão garrida, só olhá-la nos faz sentir alegria e também emoção; alegria de sermos portugueses e emoção por estarmos cá longe para a defender. Embora assim perdida no mato, a bandeira, brilhando, afirma que aqui também é Portugal.

Em volta, meia dúzia de barracas verdes, o nosso aquartelamento, a única nota de civilização nesta imensa planície. Muito ao longe, quase perdidas no mato e no capim, algumas palhotas indígenas; de resto, tudo é solidão. Somos soldados de Infantaria e por isso o nosso trabalho é fazer operações em qualquer parte do mato.

Aqui não há escolas e as igrejas não têm paredes; o tecto é o céu. Em toda a parte se reza e tudo nos incita à oração. Deus está em toda a parte e ouve-nos.

Hoje é domingo, dia de descanso, não se trabalha, mas distracções também não há. Alguns vão à pesca ou à caça; outros, deitados debaixo das enormes árvores, dormem e pensam nas suas terras e famílias distantes, mas pertinho do coração. Como são diferentes aqui os divertimentos nos domingos.

Dois soldados vão todos os dias à caça; por isso, fome não há. Temos carne com abundância, mas falta tanta coisa!... Ei-los que chegam com tenros cabritos e gazelas e logo enorme fogueira crepita alegremente. Esfolam-se os animais e lava-se a carne; a água não falta, embora para se beber seja preciso enorme cuidado. Prepara-se um espeto para se assar a carne. Espalha-se então o cheiro da carne assada pelo pequeno acampamento. Está a refeição preparada; troncos de árvores, caixotes vazios, servem de mesa e de cadeiras.

Todos se servem. A refeição é pouco variada: apenas carne assada e pão. O vinho também é pouco, mas dividido irmãmente dá para todos; que bem que sabe uma pinguita com este almoço!...

Bebi-se mais mas não há, paciência… O improvisado cozinheiro faz enormes quantidades de café. Todos enchemos os copos de alumínio e bebemos alegremente. Acaba a refeição; por fim, alguns macacos, meio domesticados, que por aqui andam, aproximam-se e reclamam a sua parte.

É assim um domingo no mato. Depois de explanar esta ideia, termino. Despeço-me com o mais ardente desejo de a todos vós abraçar brevemente, fazendo preces ao Senhor para que tenhais saúde e boa sorte. Vosso amigo que respeitosamente se subscreve, todo vosso.

José António Canoa Nogueira.
Soldado nº 2955/63
SPM 2058.

_______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (60): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)

(...) Comentário de Luís Graça:

Temos tendência para reagir "emocionalmente" (isto é, com o coração, não com a cabeça), quando se toca nos nossos mortos... Mas vamos por partes: também aqui deve respeitar-se o princípio "in dubio pro reo", isto é, o princípio da presunção de inocência...

Na maior parte das situações de morte no TO da Guiné (por combate, minas & armadilhas, acidente, doença...), os corpos recuperavam-se e eram identificáveis (mesmo mutilados, como eu próprio recuperei ou observei alguns)...

Nunca assisti à preparação de nenhum corpo para efeito de exéquias... Levei no entanto à sua tabanca natal o primeiro morto da CCAÇ 12, o Iero Jaló... Não me lembro se foi em caixão de chumbo. Sei que foi transportado, em Unimog, em caixão de madeira, coberto com a bandeira nacional, e que teve direito a honras militares (o que na altura me chocou)... A família acabou por fazer-lhe um enterro segundo os usos e costumes locais (tradição africana e muçulmana)...

A preparação do morto - se bem me lembro - deve ter sido entregue aos seus próprios camaradas, fulas...

No caso dos militares metropolitanos, vinha sempre um cangalheiro de Bissau... Não sei exactamente a que serviço pertencia.

Não há razões para pensar que as urnas, com os nossos mortos, transportadas para a metrópole, viessem por sistema cheias de areia e pedras... Casos como o que foi relatado nos jornais, passado no concelho de Peniche, devem ter sido raros ou excepcionais... No caso de afogamentos, quando não havia corpo, o militar era dado como "desaparecido"... Em caso do corpo ser levado pelo IN (houve casos), ou o militar ser feito prisioneiro, creio que se usava a expressão "retido pelo IN"... Devia haver legislação ou regulamentação clara sobre estas diversas situações... Talvez alguém nos possa esclarecer...

Em todo o caso o Exército (que deve ser visto como um pessoa de bem, como uma instituição) bem poderia fazer um relato mais circunstanciado e digno relativamente à morte dos nossos combatentes, em vez se limitar a mandar, à família, o telegrama seco e brutal com a funesta notícia... Não sei como se procede hoje. Mas, durante a guerra colonial, não havia essa sensibilidade, essa cultura... (É a minha percepção, também me assaltou a dúvida quando eu próprio, jovem jornalista, fiz a reportagem do 1º morto da guerra colonial na Guiné, natural da minha terra, e por sinal, meu primo). (...)

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Luís,

O Exército, enquanto instituição militar, cumpria o seu dever informando.

De uma forma brutal? Sem dúvida!

Mas também nomeava um militar de patente para assistir à família.

Era ao militar designado que competia suavizar e dar uma face mais humana à brutalidade do tal telegrama.

Essa assistência era, acredito, muito dolorosa para quem cumpria tão espinhosa missão. Falo por esperiência própria.

Na circunstância, tive que ser militar, camarada, amigo, ser humano e católico, perante uma mãe que perdera o seu único filho varão e amparo.



Cumpri a minha missão sem nunca a acabar. Talvez, um dia, se puder abraçar aquela mãe...

Um abraço,
José Câmara

Luís Graça disse...

Releia-se o que escreveu o Álvaro Basto, a propósito da dificuldade em identificar dois corpos no caso da tragédia do Quirafo:

"O esforço pela síntese da verdade na amálgama de tanta informação, alguma até contraditória, é merecedora do nosso mais vivo respeito e daqui quero expressar-lhe desde já os meus parabéns.

"Muito do que tenho procurado transmitir tem sido ventilado com o Dr. Pinheiro Azevedo com quem continuo a ter excelentes relações e que por diversas vezes tenho tentado trazer à liça com as suas informações obviamente credíveis e esclarecedoras.

"Adianto que irei uma vez mais insistir para que, também ele, dê o seu contributo esclarecendo e confirmando alguns dos aspectos mais relevantes desta tragédia especialmente no que concerne à identificação dos corpos.

"O horror dessa tarefa teve em mim duas acções contraditórias no tempo, por um lado nunca mais esqueci as suas imagens mais gerais e por outro (se calhar ditado pelo meu inconsciente), o de ter esquecido muitos dos pormenores.
Ficou-me com especial nitidez a imagem do Armandino que jazia inanimado em cima de um unimog e os corpos mutilados e carbonizados nas casas de banho. Recordo-me da dificuldade que reinava em reconhecer muitos deles.

"Recordo-me que dois deles estavam especialmente mal tratados e que não haveria concenso quanto a saber-se quem era quem. Acho que o Dr. Alfredo Pinheiro Azevedo se recusou mesmo a assinar as respectivas certidões de óbito desses dois tendo-me contado que, mais tarde, em Bissau de partida para férias, foi confrontado com a insistência do Capitão Lourenço e tanto quanto sei do primeiro sargento da companhia que queriam... arrumar aquela papelada... tendo-se no entanto este mantido firme e não tendo assinado...

"Mas para evitar mais especulações estou a mandar cópia deste mail ao Dr. Alfredo Viana Pinheiro Azevedo com um pedido solene aqui expresso de se pronunciar...

"Esperemos que ele se decida a faze-lo depois de ler a síntese do Miguéis no Post 4194 e no Post 4200! (...)

Fonte:

25 de Abril de 2009
Guiné 63/74 - P4248: Ainda e sempre a tragédia do Quirafo. Um depoimento do Dr. Pinheiro Azevedo seria relevante (Álvaro Basto)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2009/04/guine-6374-p4248-ainda-e-sempre.html

Anónimo disse...

"Em caso do corpo ser levado pelo IN (houve casos), ou o militar ser feito prisioneiro, creio que se usava a expressão "retido pelo IN"...

Relativamente a esta "passagem" do poste, recordo perfeitamente que sobre Jaliba Gomes, ja aqui referenciado como tendo sido feito prisioneiro pelo PAIGC, no decorrer da operacao Gema Opalina na regiao de Cobiana em Setembro de 1973 e que entretanto viria a falecer no periodo imediato a independencia da Guine, num incendio envolvendo o seu taxi e um bidao-deposito de gasolina, era versao corrente a existencia de duas campas daquele oficial dos comandos: uma no talhao militar e uma segunda, a do seu "verdadeiro" funeral, no talhao civil.

A "estoria" ficou conhecida na altura em Bissau, pela originalidade do mesmo (dizia-se) ter inclusive tido a oportunidade, com a entrada do PAIGC em Bissau, de visitar a sua propria sepultura no talhao militar.

Por conseguinte, a se confirmar esta versao dos factos, duas questoes se impoem:tera o tenente Jaliba Gomes,entretanto feito prisioneiro pelo PAIGC,tal como descreve Amadu Bailo Djalo, no seu livro, sido alvo da simulcao de um funeral, com direito a sepultura no talhao militar do Cemiterio Municipal de Bissau ? E mais, que intuitos teriam movido a uma tal encenacao ?

Sobre esta segunda indagacao, assim a surdina, alegava-se que entre a assumpcao da passagem daquele tenente dos comandos para a "trincheira" inimiga , com todo o seu eventual cortejo de impactos a nivel da moral dos seus companheiros de armas, era pois preferivel, uma segunda opcao: neste caso a encenacao de um funeral !

Sera ?

Nelson Herbert
USA