domingo, 30 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6499: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (3): Quando Mandinga já não quer dizer turra, mas quando ainda não se esquecem os desmandos feitos pelas NT no início da guerra (J Armando F. Almeida / Luís Graça)



Fonte: História do Batalhão de Artilharia nº 2917 - De 15 de Novembro de 1969 a 15 de Março de 1972. (Versão em texto processado por Benjamim Durães)



[Continuação da publicação de excertos do Cap II da História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, segundo versão policopiada gentilmente ao nosso blogue pelo ex-Fur Mil Trms Inf, José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande] (*)

3. População > e. Aspecto político (...)

2 – OS ”MANDINGAS”

- Construtores de grandes impérios dos quais o maior foi o do Mali que durou do Século XI até ao Século XVII,  as suas relações com os Portugueses foram de tal modo intensas que o Rei D. João II, frente ao conflito ”Mandinga – Fula”,  enviou emissários ao Imperador do Mali e ao Chefe Fula Coli Tenguela, procurando servir como medianeiro nas disputas entre ambos.

Com o desmembramento do Império Mali,  inicia-se o enfraquecimento do poder Mandinga na Província em benefício do aumento de influência Fula, tendo a sua hegemonia política sido fortemente abalada a partir do Século XIX; a Batalha de Bere Colom (no ano 1850) em que os Mandingas são vencidos pelos Fulas,  atesta o seu declínio que se prolonga até 1866,  data da Batalha de Camsala Turubã,  em que os Mandingas foram totalmente desbaratados. 

Apesar de vencido,  a cultura deste povo impõe-se a quase todos os povos da Guiné e, difundindo o seu islamismo (do tipo africano,  revelando resíduos do antigo animismo),  criou, pelo contacto directo e contínuo com outras etnias, o fenómeno da aculturação destas, conhecido por “Mandinguização”.

Antes do terrorismo,  a etnia Mandinga mostrava-se em franca expansão por toda a Província invadindo áreas de outras etnias e competindo economicamente com elas sendo bem aceite por todos os povos da Guiné. 






"Era conhecida a separação entre fulas e mandingas. Estes pouco simpatizavam com as nossas tropas, eu tive essa ideia, os fulas, na generalidade, estavam do nosso lado. Esta rivalidade, e o não querer estar com os fulas, têm razões históricas: os mandingas tiveram um grande império no sudeste africano e foram senhores do reino do Gabú. Mas dum e doutro foram usupados pelos fulas...

"Nesta brochura, editada pela Editorial Cosmos (sem data) na sua colecção "Cadernos Coloniais" (é o N.º 13), António Carreira faz uma resenha histórica da islamização daquela zona de África e da lutas entre fulas e mandingas pelo seu domínio. São dados importantes para a história dos povos da Guiné e para a nossa commpreensão deles". [
António Barbosa Carreira nasceu em 1904, em São Filipe, Ilha do Figo, Cabo Verde. Morreu em 1988, em Lisboa].

Imagem e legenda: © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados


Nos últimos anos que antecederam o terrorismo,  o poder económico de alguns dos seus membros e o domínio cultural que exerciam tornaram-no um dos mais progressivos da Guiné, surto do progresso que a subversão veio quebrar levando grande parte a aderir ao PAIGC ou a refugiar-se nos Países limítrofes, nomeadamente no Senegal e Gâmbia.

A sua atitude perante o terrorismo deve ser interpretada com todo o bom senso, eles viram no PAIGC a oportunidade de reaver a sua independência política, em face aos Fulas, e vingar um Século de prepotências a que estiveram sujeitos pelos Fulas; depois, nos primeiros anos de terrorismo, Mandingas era sinónimo de terrorista e temos de ter a coragem para admitir os erros de procedimento que as NT e Autoridades tiveram perante os indivíduos que eram rotulados de “terroristas”.

Hoje os Mandingas estão convictos de que não é mais possível, no Sector, ser-se acusado pelas Autoridades de “terrorista” apenas porque se pertence a esta etnia ou, se denunciam erros de indivíduos ligados às Autoridades, Militares ou Civis, Europeus ou Africanos (embora ainda existem no Sector alguns residentes Europeus a assimilados que, por convicção ou interesse, propalam, especialmente a quem chega de novo, que todos os Mandingas são “terroristas”).

Tal convicção,  associada ao seu desencantamento em relação ao PAIGC,  onde “calcinhas e oportunistas” ocupam lugares de mando que os Mandingas julgam deveriam ser concedidos aos seus Chefes, criou uma brecha que, a curto prazo, pode levar, se bem explorada pelas NT,  ao divórcio total desta etnia com o PAIGC.

- No SECTOR L-1 a actividade dos Mandingas vivendo sobre o nosso controlo difere de Regulado para Regulado.

ENXALÉ

- Sobre a designação de Mandingas estão agrupados na povoação do Enxalé, Beafadas e Mandingas sob o Comando efectivo do Beafada, Alferes de 2ª Linha Quemó Nanqui; fortemente hipotecados na defesa da sua povoação, colaboram activamente com as NT na procura e destruição do IN. 

Até à preparação do Congresso do Povo da Guiné de 1971, toda a população daquela povoação obedecia a Quemó Nanqui, e não se notavam quaisquer diferenças na forte determinação com todos, independentemente de raças a que pertenciam, colaboravam na defesa da povoação e perseguiram o IN. Deu-se então a separação dos Balantas, que passaram a ser dirigidos por Biaia Nadum,  dos restantes cujo Chefe se manteve Quemó Nanqui.Tal divisão consciencializou os “Mandingas puros” que passaram também por ali, embora colaborando com as NT, a dar indícios de um crescente neutralismo em relação ao conflito. 

A criação do GEMIL 309 e 310 (Grupo Especial de Milícias) e a sua consequente actuação acarretará decerto uma maior acção do IN sobre o Enxalé e,  com ela, acreditamos a destruição de tal neutralismo.

CUOR

- Encontram-se reordenadas nas Auto Defesas de Finete e Missirá, onde são protegidos por Pelotões de Milícia na sua quase totalidade formados por Fulas do Regulado Badora. Estão profundamente hipotecados na defesa das suas povoações e seguem a forte determinação do seu Régulo, Malan Soncó, de não abandonar o que resta do Cuor seja qual for a pressão do IN. Mas ao procurar-se fazer o recompletamento dos seus Pelotões de Milícias com elementos Mandingas, encontram-se grandes dificuldades no seu recrutamento. Também ao procuraram-se guias para as diversas operações no Cuor,  se encontra fortes reservas por parte dos Mandingas em colaborar com as NT.

BADORA

- Concentraram-se neste Regulado a maioria dos Mandingas do Sector. Muitos são daqui naturais mas há um importante núcleo constituído por “refugiados” de outros Regulados, especialmente do Regulado do Cuor e Oio.

- Os naturais do Regulado de Badora têm queixas das prepotências antigas fulas com conveniência ou nãos das Autoridades Administrativas, não esqueceram ainda os desmandos feitos pelas NT no início do terrorismo em que Mandingas e terroristas era considerado sinónimo, confiam bastante no Régulo de Badoera – Tenente de 2ª Linha Mamadú Bonco Sanhá, que dizem ser Beafada, porque nos seus ascendentes há uma mulher desta etnia, ser justo, ser valente e ter espírito Mandinga. Pelas razões apontadas, porque muitos deles têm família no mato, e talvez e especialmente por ser essa a orientação dos seus Chefes Religiosos, assumem uma atitude de neutralismo em relação ao actual conflito.

- Os refugiados neste Regulado pensam em cada momento nas suas árvores de fruto, nas suas terras, e muitos deles desejariam ocupar povoações de onde a guerra os expulsou.
- Desde que lhes seja garantida uma certa segurança,  estão disposto a ocupar as suas antigas povoações e cooperarem na sua defesa, desde que recuperadas.

- Na sua actual situação de refugiados procuram empenhar-se o menos possível tendendo para um neutralismo total.








Fonte: História do Batalhão de Artilharia nº 2917 - De 15 de Novembro de 1969 a 15 de Março de 1972. pp 53/74 (Versão em texto processado por Benjamim Durães)

[Fixação / revisão de texto / bold / título: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 20 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6437: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (2): O Fula, a sua lealdade,o seu preço (José Armando F. de Almeida / Luís Graça

4 comentários:

Luís Graça disse...

Quais terão sido os "desmandos" perpretados pelas NT, no início da guerra, no regulado de Badora (Bambadinca) ? A expressão é "insuspeita", é da autoria do comando do BART 2917, a quem coube a elaboração ou a supervisão da história da unidade... Sabe-se que balantas, beafadas e mandingas não foram bem tratados pelas autoridades (administrativas e militares)nos primeiros anos da guerra, tanto no Sector L1 como noutros sítios...

Anónimo disse...

Pois é, Luís, "os desmandos das nossas tropas" que foram depois do "antes do terrorismo"...
Abraço
José Brás

Luís Graça disse...

Na época do BART 2917, 1970/72, em plena éopoca de euforia da política spinolista da "Guiné Melhor", há uma certa assumpção dos "erros", dos "desmandos", dos "abusos" do passado, por parte das "autoridades administrativas e militares"...

Isso transparece nos discursos e nos relatórios... Isto é, não se podia "branquear" o passado, até por que esses erros, abusos e desmandos aparecem, muitas vezes, como causa imediata da adesão de balantas, beafadas e mandingas à ideologia da "subversão"... Tratava-se agora de tirar o tapete ao PAIGC...

Anónimo disse...

Conheci bem o Quemó Nanqui em 66/67. Era então o chefe incontestado da tabanca do Enxalé. Foi o nosso guia em algumas operações. Henrique Matos