1. Em mensagem do dia 31 de Agosto de 2012 o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos mais um pouco da história da sua Unidade que é também a história da sua vivência enquanto combatente da Guiné:
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (52)
VIETNAM
Sentara-me sobre a mesa de ping-pong (ténis-de-mesa para os puristas) encostada à parede e à janela do meu quarto, sob o alpendre do edifício da messe, chinelinhos enfiados nos dedos dos pés, e tronco nu. Era ali que costumava aguardar pelo crepúsculo, pois tratava-se de um lugar privilegiado para ver o pôr-do-sol, numa direcção que a partir dali passava entre a saída para Pirada e o edifício do comando. Havia dias em que me regalava a ver riscos de luz amarela e rosa a salpicar o fundo azul do firmamento.
Tinha assistido à chegada da coluna,e ao habitual movimento de gente em torno das viaturas, que descarregavam civis e militares, aqueles atafulhados de sacos de pano ou alguidares coloridos, onde faziam transportar os seus bens adquiridos nos armazéns do Gabú, os militares que se sacudiam, e de armas a tiracolo, ou ao ombro, carregavam as cartucheiras e demandavam os abrigos para banhos merecidos. Afluíam outros militares à secretaria para a distribuição do correio, que, de tão desejado, se fazia antes que tudo. Do lado de fora do arame, sob as mangueiras, alguns civis faziam perguntas a quem chegava sobre amigos, familiares, condições de comércio, etc, e davam sonoras risadas que mostravam as cremalheiras de onde sobressaíam os dentes brancos, enquanto dobravam os corpos reflexamente, ou, perante algum regressado depois de longo tempo, ficavam de mãos dadas e conversavam afável e curiosamente.
Os meus camaradas, depois das saudações e aldrabices habituais, tinham ido para o interior, para o banho e preparação para a janta.
Sem me ter dado conta, aproximou-se um militar bem aprumado, da minha estatura, magro mas bem constituído e muito moreno, de nariz aquilino, algo rude, e olhar encovado, que perguntou por mim. Era eu, respondi. De imediato, o recém-chegado bateu o tacão, perfilou-se, levantou a perna direita esticada a noventa gaus, voltou a juntar os pés com novo batimento, e começou a apresentação, enquanto eu me colocara na posição de sentido em correspondência àquele cumprimento. Era o soldado Lapa, proveniente da 26.ª CComandos, que passava a integrar o segundo pelotão, o Foxtrot, inicial de muitos significados. Foi no dia 17JAN71.
Cumprimentei-o civilmente em seguida, perguntei-lhe se precisava de alguma coisa, pedi a um camarada para lhe providenciar uma cama num abrigo, e disse-lhe que de manhã iríamos à lenha, pelo que se não estivesse ocupado, poderia logo acompanhar-nos e começar a conhecer o pessoal. Ainda lhe acrescentei que o decorrer do tempo e o espírito do grupo, seria a melhor maneira de nos irmos conhecendo.
De facto, quando nos calhava ir à lenha pelas redondezas, metade do pelotão folgava. Montava uma segurança próxima de uns quatro elementos, enquanto os restantes faziam a colecta. Normalmente, eu não ia. Naquela vez, porém, talvez e em correspondência a comentários sobre a rica vida, e com o sentido acrescentado de avaliar a integração do novo elemento, de manhã estava pronto a seguir. E abalámos. Chegados ao local, designei os quatro para a segurança, e iniciámos a recolha e acondicionamento da madeira na viatura. A certa altura o Lapa aproximou-se bem disposto e comentou sobre a minha actividade, a que respondi, que nem aquilo era um trabalho pesado, nem me caíam os parentes. No Foxtrot o principal era o espírito de equipa e a solidariedade.
Pelas vias normais tive conhecimento de que o Lapa viera transferido por motivos disciplinares, mas não tive interesse e até hoje não sei dos motivos em concreto. Pela malta fiquei a saber que tínhamos então entre nós um tipo valente e alcunhado de "Vietname". Mais tarde vim a considerar que o próprio teria contribuído para a alcunha com alguma auto-promoção. Nos intervalos em que conversávamos, ele manifestava uma certa admiração pelas lendas, nomeadamente pelo Ché Guevara, na época muito em voga. De uma das vezes, senti que ele gostaria de ter mais protagonismo na guerra, provavelmente, também, no sentido de conquistar créditos, quiçá abalançar-se a níveis de projecção entre a guerrilha, e que fosse temido pela bravura. Tentei explicar-lhe que entre nós e o Ché não era possível estabelecermos qualquer comparação. Em primeiro lugar, porque éramos portugueses, mobilizados pelo governo, para actuarmos na defesa dos territórios ultramarinos, e fazíamos a guerra enquadrados numa qualquer estratégia do ComChefe a que éramos completamente alheios, enquanto o Ché, de nacionalidade argentina, era um licenciado em medicina, que tinha uma visão universalista e participava na luta pelo lado dos pobres e explorados contra o poderio dos estados. Por isso combatera em Cuba, e na ocasião deambulava pela América do Sul, onde era comandante de um grupo de guerrilheiros (só muitos anos mais tarde tive conhecimento de actos da sua responsabilidade, abafados pela informação e pelas autoridades cubanas, que me causaram uma negativa perplexidade).
Outra ocasião alongou-se numa conversa sobre as minhas capacidades, e achei que tinha de lhe perguntar, se queria andar à porrada comigo. Que não! Estávamos só a falar. Estas circunstâncias levaram-me à conclusão de que aquele Foxtrot andava meio perdido, que seria capaz do melhor, como do pior, e que aconselharia a prudência andar de olho nele para me antecipar a qualquer acto mais exagerado ou inconveniente.
Depois vim a saber, que no abrigo onde dormia o Lapa, com frequência havia petiscos de galinha, e que ele costumava atravessar o arame para ir a Amedalai, a coberto da noite, para as "controlar". Preferi não tomar conhecimento disso, pois teria que o proibir dessas saídas. O risco era relativíssimo, e estou convencido que se o proibisse, ele desobedeceria e teria que passar ao papel. Mas o ambiente em redor dele era bom, e a integração não levantava dúvidas, até que um dia, seguia eu à frente de uma patrulha de combate com a finalidade de interceptar eventuais travessias da fronteira entre Bajocunda e Pirada, ouviu-se um tiro. Parei. Atrás de mim todos pararam. Mantinha-se o silêncio. Um tiro sem motivo, no ambiente do Foxtrot era pecado. Movimentei-me ao longo do pessoal, olhando-os, sem dizer palavras, apenas a avaliar. Quando me aproximei do Lapa não tive dúvidas, o seu ar zombeteiro, o corpo arqueado e o olhar de viés, denunciaram-no. Para onde atiraste? - perguntei-lhe. Respondeu que para um pássaro. Onde está o pássaro? - voltei a perguntar. Respondeu secamente que não lhe tinha acertado. O tiro, o diálogo, e alguma insolência manifestada, já me impulsionavam. Em fracções de segundo teria que resolver a situação. Levantei a arma que estava suspensa da mão direita, e apontei-a para a cabeça, enquanto lhe disse, olhos nos olhos: Se voltas a atirar sem autorização, rebento-te a caximónia.
Escuso de referir que, quando me chateava, apresentava um ar bastante persuasivo. Olhámo-nos uns segundos, baixei a canhota, virei-lhe as costas e retomei o caminho.
A verdade é que resultou. Daí para diante o Lapa era um Foxtrot alegre e companheiro, e uma mais-valia relevante em caso de sofrermos alguma surpresa da banda do IN. Nenhum de nós ficou com ressentimentos, nem na história, e hoje pertencemos à massa anónima de cidadãos, dos que labutam para viver, e faço votos, dos que movidos pela solidariedade estarão sempre prontos para ajudar quem precise, afinal, uma das lições que ingénua e romanticamente retemos do Ché.
Nota triste: Vítima do bicho-mau, faleceu recentemente o Cabral, outro elemento Foxtrot que nos deixa mais pobres. À sua família apresento sinceros pêsames.
Um grupo Foxtrot no regresso da lenha. Da esquerda para a direita: Gonçalves, Rodrigues (Mama Sono), Santos, Faria, Pauleiro (de G-3), Zip-Zip (condutor fantástico), Dinis e França
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Pois é!
O amigo Zé Dinis mostra-se sempre pronto para enfrentar e resolver problemas ou situações difíceis utilizando a pedagogia do 'pontapé no cu".
No caso relatado parece que resultou e ainda bem, mas...
E depois admira-se de o Chico o 'enquadrar' na sua galeria de 'rambos'....
Já sei que agora vou 'sofrer' retaliação mas já estou habituado..
Abraço
Hélder S.
Viva Helder! Aí vai alho:
A pedagogia do pontapé no cú, não era, nem o exercício da disciplina militar, nem o exercício de uma espécie de paternalismo, era antes uma maneira camarada de corrigir certas situações de comportamento no mato, ou na picada.
DO que se tratou mesmo, foi de enquaddrar um novo elemento que procurava um lugar ao sol, uma aura de combatente. Daqueles que tinha recebido uma instrução que, ou foi ministrada de maneira algo alienante; ou terá sido assim percepcionada.
Na época (e por muitos meses)era o único graduado do Foxtrot, um grupo que tinha as suas regras e coesão. Um grupo que se impunha às partes, unindo-as. Calhava-me a mim, principalmente, porque era muito bem secundado por outros elementos, preservar o ambiente de eventuais influências devastadoras. Nunca os meus pontapés no cú foram contestados. Provavelmente, nunca aleijaram.
Ora, tu sabes, há pessoas que conversam sem ouvir, e alimentam conceitos ou comportamentos, que não corrigem por obstinação das suas ideias. Passe a comparação, precisam de desbaste.
Recorri por isso à linguagem que me pareceu adequada.
Nota final: o Foxtrot foi o grupo da Companhia com mais louvores e com menos porradas. Para além de, pelo menos por duas vezes, terem-me expressado grande admiração pelo grupo. Nunca entreguei uma participação em todo o percurso militar.
Na tua pessoa, que és amigo e abraço, saúdo aquele grupo de rapazes bons.
JD
Caro Zé Manel
Como previa, estava à espera de 'retaliação'. E veio sob a forma de 'cá vai alho!'.
Mas, desta vez, acho que foste bastante esclarecedor, foi um comentário didáctico, cheio de considerações que me satisfizeram.
Abraço
Hélder S.
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