1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Julho de 2012:
Queridos amigos,
Graças à disponibilidade e solicitude do Dr. António Duarte Silva, ando a ler documentos de incontestável interesse referentes ao período pós-independência. É o caso deste longuíssimo discurso de Luís Cabral, proferido em 1978, e que é uma grande angular sobre os atos de governação e as promessas de um mundo melhor que se estava a preparar.
Está aqui praticamente tudo, entre a fantasia e a realidade, os acenos a tempos melhores e a reprovação por comportamentos negligentes, até a denúncia de corrupção.
Obra indispensável para perceber o desbaratamento da credibilidade que o PAIGC trazia da luta armada.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau, o estado da Nação segundo Luís Cabral
Beja Santos
Consta no início do livro que se trata da versão integral do discurso proferido por Luís Cabral, secretário-geral adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, em 9 de Maio de 1978, durante a abertura da primeira sessão ordinária da II Legislatura da Assembleia Nacional Popular. Tem-se sérias dúvidas que realmente tenha sido assim, não se vê facilmente um discurso de 200 páginas, embora haja precedentes históricos eloquentes como os de Fidel de Castro e Samora Machel.
O importante é que Luís Cabral abordou os principais pontos da sua política e enquadrou as atividades governamentais com amplos detalhes. Por isso mesmo há que reconhecer que não é aceitável encarar o consulado de Luís Cabral sem dar atenção a este seu discurso tão amplificado.
O dirigente iniciou a sua comunicação falando de planeamento e destacou várias urgências: fazer-se o recenseamento da população (na altura já existia o anuário estatístico de 1977); foi feita referência à criação de empresas estatais nomeadamente, no comércio e na indústria e logo se reconheceu tais empresas tinham gente com pouca experiência de trabalho, nomeadamente na área da gestão; anunciou que já havia um projeto de criação de uma empresa de seguros, mas reconhecia estar-se numa fase de empasse e comentou a situação: “Não podemos pensar que qualquer cidadão pode ter um carro e não ter seguro nenhum. Há pessoas que andam na rua, correm o perigo de serem atropeladas e não têm nenhuma garantia. Principalmente nas coisas que prejudicam os interesses de terceiros, temos que obrigar as pessoas a fazer seguro”.
E passou o registo para o orçamento nacional, alertando a assistência para o problema do controlo dos impostos onde tinham sido detetadas inúmeras irregularidades: “Temos de ser capazes de levar o nosso povo a pagar impostos e de exigir que cada cidadão cumpra o seu dever perante o Estado. Não podemos pensar que o Estado vai pedir dinheiro a outros países para o Governo pode viver. Vamos tomar todas as medidas necessárias para conseguir o fundamental para as finanças do nosso Estado. O nosso Estado não pode continuar a viver como nestes anos que passaram, com encargos de 1 milhão de contos e com receitas de metade. Para o nosso Estado ter crédito no mundo, para os organismos internacionais nos ajudarem a sério, temos que ter uma vida financeira sã, temos de ser capazes de ter na nossa terra dinheiro nosso para pagar as nossas despesas”.
Mais adiante, teceu considerações sobre o Banco Nacional: “Sabemos quantas dificuldades temos com dinheiro estrangeiro, porque ainda não exportámos quase nada, o nível das nossas exportações ainda não permite importar muitas coisas. Mas não podemos pensar em deixar de importar. O Banco Nacional não pode ficar na posição de informar se há ou não há dinheiro para comprar coisas no estrangeiro. O banco tem que participar ativamente na busca de soluções que nos permitam viver estes próximos anos, que vão ser difíceis. O banco tem que ser capaz de garantir matéria-prima para as nossas indústrias. Não podemos fazer uma fábrica que depende de matéria-prima importada, como é o caso da fábrica de espuma, por exemplo, ou da fábrica de plásticos, e depois deixá-las paradas por falta de matéria-prima”. E sugeriu que era necessário avançar com um projeto de criação de um banco de crédito e desenvolvimento. Falando da melhoria das condições dos camponeses, chamou a atenção para as culturas industriais indispensáveis para obter divisas e para o equilíbrio da balança comercial. Referiu que estava em conclusão a elaboração de uma carta de vocação dos solos, instrumento indispensável para o desenvolvimento agrícola. Lembrou que era propósito do PAIGC fazer distribuição de sementes, tanto de mancarra como de arroz e passou em revista um conjunto de projetos: algodão e arroz, milho e hortaliças, tabaco, recuperação de bolanhas, voltou a insistir na fábrica de açúcar, tinham já sido feitos novos estudos pois inicialmente pensara-se num projeto desmesurado. Também o repovoamento florestal era dado como iniciativa prioritária, havia que não circunscrever a indústria da madeira ao bissilão, pau sangue e mogno, havia que ser capaz de plantar madeira mais barata para cofragens e caixotes, era um desperdício fazer essas cofragens com madeira de bissilão.
E daqui passou para a alimentação das populações. Fora criada uma empresa nacional de criação de aves, a Emavi. E lançou críticas: “Há coisas que não conseguimos compreender como, por exemplo, o caso do centro de Ilondé que destinámos à criação agrícola, para reprodutoras. Já nos deram as aves, mas aquela obra não avança. Há quase dois anos que se está a proceder a uma transformação simples. A Emavi tem grandes problemas com a venda de galinhas e de ovos. Há dois anos que oiço falar neste problema! Isto só serve para que as pessoas que querem favores, mesmo responsáveis ou dirigentes, vão lá perturbar a ordem, porque cada um acha que tem mais responsabilidades e que direito a mais ovos e mais galinhas. A Emavi tem de acabar com o problema dos que vão pedir favores”. Seguiram-se referências à criação de porcos e lançou novas críticas: “Não podemos permitir que nestes empreendimentos dos quais dependem a vida de centenas de animais haja desleixos. Lembro-me de que da primeira vez que visitei a criação de porcos, quando se chegava à porta da Veterinária, as rodas dos carros entravam dentro da água desinfetada. Pouco tempo depois quando voltei lá, já não havia água nem na porta nem no local dos porcos!”.
E o registo transferiu-se para o comércio, abordou complementarmente o comércio interno e o externo. A sua apreciação sobre os Armazéns do Povo foi lisonjeira e também dura, falou dos desvios e desfalques e até concretizou com um jovem que tinha tirado 600 contos dos armazéns do povo para os entregar a um vigarista que lhe tinha prometido multiplicar este dinheiro por três! Nessa altura a Socomi era uma empresa que só existia no papel, resultara da transformação da antiga Sociedade Comercial Ultramarina e tinha cerca de 1000 trabalhadores. Luís Cabral, face à importância social da Ultramarina, disse que havia que resolver este problema. E fez desfilar um conjunto de iniciativas, uma garagem Volvo, uma fábrica de bandas em Bolama, a criação da cooperativa de motoristas, o projeto da fábrica de automóveis Citroen, uma fábrica de montagem de carros em Bissau que seria o orgulho de todos os guineenses, o projeto de cerâmica de Plubá.
Parecia que a Guiné-Bissau depois de tantas dificuldades via abrirem-se as portas do progresso: a fábrica do Cumeré para o descasque da mancarra, a recuperação da Cicer, a Socotram, fábrica de parquetes, que já tinha nova direção, a fábrica de cerâmica de Bandim, há alguns anos em dificuldade de arranque, a fábrica de leite de Blufo, a fábrica de oxigénio e de acetileno, em Brá, mas o projeto do Cumeré era inegavelmente o mais ambicioso, iria permitir transformar toda a mancarra em óleo bruto. Lêem-se estas coisas escritas e mais de 30 anos depois procura-se as concretizações. E não pode haver desapontamento maior por tanto dinheiro deitado à rua, por tanta cooperação desviada dos seus interesses mais nobres, por tanto desalento que ficou entre aqueles que suspiravam e suspiram pelo desenvolvimento e pela dignidade da pessoa humana.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10335: Notas de leitura (397): A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial Que Não Se Apagam, de Mário Beja Santos (1) (Carlos Vinhal)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Obrigado Beja Santos.
Lembras-me a minha juventude dos 40 e poucos.
O Luís Cabral era uma pessoa simpática para os estrangeiros todos que trabalhavam na Guiné.
Eu pessoalmente vi-o em visitas a obras onde eu e colegas portugueses estavamos a fazer serviços e vinha ter connosco cheio de entusiasmo e simpatia a ver como andavam os trabalhos.
Para ele era tudo urgente porque estavam outros trabalhos à espera de nós.
Mário, embora resumas as tais 200 páginas, o espírito de Luís Cabral está lá.
Mas esse espírito de entusiasmo era geral e igual para todos os dirigentes nacionalistas do PAIGC, MPLA, e FRELIMO que durante 13 anos se ouvia nos rádios.
Mas mesmo aqueles africanos que labutavam ao lado do tuga na vida civil tinham esse entusiasmo com o futuro "da nossa terra".
Na Guiné quase tudo falhou mas não houve as guerras do MPLA e da FRELIMO de dezenas de anos, o que não foi mal de todo.
No caso de Angola, após a tal guerra, já estão executando as obras grandiosas que ouvi muitos anos.
Só que a ideia quem faria as grandes obras era os angolanos, não os "chineses".
Penso que Luís Cabral chegou a ver circular nas ruas esburacadas de Bissau um Citroen feito (montado) em Bissau.
Chamava-se esse carro NHAYE, penso que era uma palavra balanta.
Ainda vesti camisas da BAMBI e trabalhei na montagem da grande garagem da VOLVO para carros e máquinas.
Agora, 2012, penso que nem Luís Cabral nem Amilcar Cabral, chegaram a ser "assimiliados"
Hoje já se fala nesses termos (na África)ser ou não ser assimilado, sobre os que não pertencem a qualquer tribo.
Cumprimentos
Viva Rosinha!
Ainda bem que estás atento e dás-nos parte da tua experiência.
Angola e Moçambique, enquanto terras de potencial, não se comparam com a Guiné. Por isso, andam lá chineses, espanhóis, brasileiros, e outros.
A Guiné tem um problema grave para resolver, o da educação para reunir um escol de trabalhadores para os diferentes sectores. Os mais ilustrados emigraram. Outro grave problema, tão dramático quanto aquele, é o da falta de energia. Sem ela, não se podem garantir equipamentos modernos, nem mesmo os de fim de ciclo de produção (que por vezes concomem mais que as modernas unidades).
Mas o poder político ainda cometeu outras trapalhadas, como a de um negócio de arroz e caju com a China, que deixou a Guiné na condição de importadora de arroz, e o preço sobe cada vez mais.
Depois de todas essas experiências falhadas, do avanço da desertificação, da inconsciência política, do tráfico, e do esgotamento de créditos, a Guiné-Bissau sossobrou como projecto de independência, enquanto não encontrar dirigentes que mereçam a confiança, o estímulo e a solidariedade vinternacional. Solidariedade internacional também ela culpada pelo que aconteceu, e pelo actual estado de pobraza e atraso, pois não calculou, nem fiscalisou os investimentos efectuados.
A ver se nós aqui conseguimos evitar tal quadro.
Abraços fraternos
JD
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