1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (7)
O abastecimento ao aquartelamento
Os militares que por essa altura viviam diariamente no
aquartelamento, eram entre cento e vinte e cento e
cinquenta, aproximadamente. Mais tarde, com o crescimento
da guerra, chegou a suportar à volta de quatrocentos,
com um movimento, bastante fora do normal, com chegadas e
saídas de militares, e equipamento bélico.
A sua localização permitia-lhe ser uma espécie de posto
avançado da fronteira. Daqui saíam para o verdadeiro interior
da província, onde a guerra se intensificava cada vez mais.
Aqui se organizavam operações de destruição de bases inimigas
que normalmente duravam um só dia, com saída pela madrugada e
chegada antes do anoitecer. Estava localizado num local
estratégico.
Neste momento viviam diariamente entre cento e vinte e
cento e cinquenta militares. O sistema de colheita de géneros
para a alimentação de todos os militares era suportado, na sua
maior parte, pelas aldeias à volta do aquartelamento.
Da capital da província chegava farinha, vinho, azeite,
óleo, batatas, feijão, sal e outras especiarias, latas de
conserva, cerveja e outros licores, e mais uns tantos produtos.
Alguns vegetais, alguma fruta, peixe e carne eram comprados aos
habitantes das aldeias, nas redondezas do aquartelamento.
Todos os contactos com os habitantes dessas aldeias era
processado através de um africano, em quem os militares
confiavam, e que vivia com a sua família na tal aldeia, com
casas cobertas de colmo que ficava próximo do aquartelamento.
Peixe não faltava. Pelo menos cinco a seis vezes por
semana a ementa era “peixe frito e arroz da bolanha”, que
queria dizer, do pântano, algum ainda com casca! Havia o típico
“rancho”, que era uma mistura de massa, batatas, chouriço, carne
de vaca, legumes, feijão, grão de bico, às vezes cenouras, e que
quando vinha o recipiente com a comida para a mesa, havia sempre
um conflito, pois uns só queriam feijão, outros só chouriça,
outros só carne de vaca e outros só massa e feijão.
Enfim, compreendia-se.
Uma, às vezes duas vezes por mês, também havia bifes e
batatas fritas. Nessa altura havia voluntários para trabalhar
na cozinha, entre os quais se encontrava o Cifra.
A carne de vaca que se consumia no aquartelamento era de
animais comprados nas aldeias das redondezas, como já se
explicou. Uma ou duas vezes por mês saía uma secção de combate
com alguns voluntários, acompanhados por esse tal africano, em
quem os militares confiavam. Iam a determinada área, onde havia
algumas pastagens, falavam com o dono ou quem estivesse
encarregue aos animais, acertava-se o preço e procedia-se ao
abate dos animais, que mesmo ali, eram esquartejados e só
traziam as partes que lhes interessava, já limpas.
A todo este processo chamava-se “Operação Vaca”!
Era uma operação a que o Cifra, sempre que estava de folga,
ia como voluntário. Compravam e bebiam aguardente de palma,
comiam fruta de caju, mangas, maduras e grandes. Alguns ficavam
sobre influência, e os companheiros vendo isso, logo lhe
tiravam a arma das mãos.
De uma certa vez, já depois de todo o serviço, quando se
preparavam para carregar as partes limpas dos animais, os
militares sofrem uma emboscada, com tiros de metralhadora,
vindos de um dos lados, onde havia algumas árvores rasteiras
com bastante capim. O tal africano em quem os militares confiavam, e que nesse
momento se encontrava um pouco distante dos militares, levou
vários tiros na região do peito e morreu instantaneamente. Mais dois militares ficaram feridos, um com uma bala alojada numa perna,
um pouco acima do joelho, e outro deitava bastante sangue de um
lado da anca, com uma bala que lhe passou a raspar essa área do
corpo, mas de raspão, só o feriu. Foi um ataque de uma fracção
de segundos, de alguém que estava à espreita, procurando a
ocasião certa para atacar. O chefe da secção de combate,
militar já com bastante experiência, flagela a área de onde
vieram os tiros com diversas rajadas de G-3, no que é seguido
por outros militares que disparam para o local.
Não havendo, tiros de resposta, e antes de inspecionar o
local de onde vieram os tiros, houve um soldado que para lá
queria mandar uma granada o que foi impedido de fazer pelo
chefe da secção, militar muito experiente, que disse:
- Eu conheço este tipo de ataques, foi só uma ou duas armas
que dispararam, creio que se não disparam mais é porque não
têm munições, fugiram pois já fizeram o que quiseram, ou
estão mortos, eu vou na frente e vamos inspecionar.
Aproxima-se, dispara mais uma rajada rente ao chão e em
circulo, e quando tocaram no capim, tentando afastá-lo com a
mão, viram dois guerrilheiros. Um já morto e o outro alvejado nas
pernas, acima dos joelhos, pois era daí que vinha um grande
rasto sangue, tentando mover-se em direcção oposta. Tinham duas
metralhadoras com os carregadores já vazios. O que estava vivo
barafustava numa linguagem que não se compreendia, mas pelos
gestos não estaria a desejar as boas festas a ninguém.
Um dos voluntários, o Banana, talvez sobre influência,
depois de ver o africano morto e os colegas lastimando-se com
dores dos ferimentos que tinham, avança para o guerrilheiro, com
uma faca em punho, gritando:
- Deixem-me matar este este filho da puta!
Tentando cortá-lo na região do estômago. O Cifra salta para
cima dele, tentando impedi-lo, foi ferido na mão e alguns
dedos, coisa sem importancia, pela faca do Banana.
Mas este gesto do Cifra não teve qualquer importância, pois
o guerrilheiro acabou por morrer, tinha mais ferimentos de
balas de um lado, nas costas.
O Banana, sem a faca, e vendo o Cifra a sangrar na mão,
começa a chorar e a gritar:
- Perdoa-me, oh Cifra, mas estava fora de mim.
O Cifra era amigo do Banana.
Regressados ao aquartelamento, os feridos foram evacuados
para o hospital da província. Mais tarde veio a saber-se que
os guerrilheiros já andavam a tentar matar o africano, amigo
dos militares há bastante tempo. O seu corpo creio que ficou
enterrado no cemitério da vila. Os corpos dos guerrilheiros
mortos ficaram a cargo do dono das pastagens, que disse num
português que quase não se compreendia, com uma voz bastante
firme que se encarregava deles.
Mais tarde esse homem, dono das pastagens, apresentou-se no
aquartelamento dizendo que alguns guerrilheiros vieram buscar
os corpos dos seus companheiros e que lhe levaram parte dos
seus animais, que todos os seus animais pertenciam
ao movimento de libertação e eram um contributo para a guerra
de independência. Este homem pediu alguma protecção para si,
para as suas três mulheres, duas filhas e um filho, dos quais
mostrou documentos de identificação passados pelos serviços da
tal repartição que funcionava como câmara municipal, que
existia na vila, e que já aqui falámos, e que era melhor que
não o procurassem mais, pois não podia vender mais animais, de
contrário iriam matá-lo.
O comando incluiu a área das pastagens nos patrulhamentos de
rotina, e passado uns dias, os militares passaram por essas
pastagens que já não existiam. Não viram nem um animal, nem o
dono nem a sua família, a casa de colmo estava abandonada e as
cercas do gado destruídas.
Alguns reportes com informações passaram pelas mãos do
Cifra, onde diziam que os guerrilheiros levaram os animais, o
homem, as suas três mulheres, as duas filhas e o filho, abateram
os animais e os consumiram nas suas diferentes bases, e tanto o
homem como a sua família, agora eram guerrilheiros e
desempenhavam diferentes tarefas em diferentes bases, o filho
que pouco mais era do que uma criança, até estava a receber
treino de guerrilha num país estrangeiro.
A partir dessa altura não houve mais bifes e batatas fritas,
a carne era considerada um luxo, havia muita dificuldade em
obtê-la e chegou a vir alguma da capital da província, mas
pouca que normalmente era consumida na messe dos oficiais
superiores, onde o Cifra ia roubar alguma comida, com o
consentimento do sargento da messe, que era seu amigo e a quem
o Cifra ajudava a fazer as contas no final de cada mês.
Para os restantes militares no aquartelamento a ementa era
“peixe frito e arroz da bolanha”, cinco ou seis dias por
semana, intervalada com o típico rancho, onde alguns só queriam,
chouriça, outros só feijão, outros só massa, outros só massa e
feijão! Alguns tinham alguma sorte, pois calhava-lhe um
bocadinho de carne de galinha.
Enfim, compreendia-se.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho d'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Camarigo CIFRA
Esse menu de má memória, em Mansoa chamávamos-lhe "peixe da bolanha com arroz" mas também poderia ser como dizes, os dois andavam na bolanha.
Um abraço, e vai contando.
César Dias
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