quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10336: Do Ninho D'Águia até África (7): O abastecimento ao aquartelamento (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (7)

O abastecimento ao aquartelamento

Os militares que por essa altura viviam diariamente no aquartelamento, eram entre cento e vinte e cento e cinquenta, aproximadamente. Mais tarde, com o crescimento da guerra, chegou a suportar à volta de quatrocentos, com um movimento, bastante fora do normal, com chegadas e saídas de militares, e equipamento bélico.

A sua localização permitia-lhe ser uma espécie de posto avançado da fronteira. Daqui saíam para o verdadeiro interior da província, onde a guerra se intensificava cada vez mais. Aqui se organizavam operações de destruição de bases inimigas que normalmente duravam um só dia, com saída pela madrugada e chegada antes do anoitecer. Estava localizado num local estratégico.

Neste momento viviam diariamente entre cento e vinte e cento e cinquenta militares. O sistema de colheita de géneros para a alimentação de todos os militares era suportado, na sua maior parte, pelas aldeias à volta do aquartelamento.

Da capital da província chegava farinha, vinho, azeite, óleo, batatas, feijão, sal e outras especiarias, latas de conserva, cerveja e outros licores, e mais uns tantos produtos. Alguns vegetais, alguma fruta, peixe e carne eram comprados aos habitantes das aldeias, nas redondezas do aquartelamento.

Todos os contactos com os habitantes dessas aldeias era processado através de um africano, em quem os militares confiavam, e que vivia com a sua família na tal aldeia, com casas cobertas de colmo que ficava próximo do aquartelamento. Peixe não faltava. Pelo menos cinco a seis vezes por semana a ementa era “peixe frito e arroz da bolanha”, que queria dizer, do pântano, algum ainda com casca! Havia o típico “rancho”, que era uma mistura de massa, batatas, chouriço, carne de vaca, legumes, feijão, grão de bico, às vezes cenouras, e que quando vinha o recipiente com a comida para a mesa, havia sempre um conflito, pois uns só queriam feijão, outros só chouriça, outros só carne de vaca e outros só massa e feijão.

Enfim, compreendia-se.

Uma, às vezes duas vezes por mês, também havia bifes e batatas fritas. Nessa altura havia voluntários para trabalhar na cozinha, entre os quais se encontrava o Cifra.

A carne de vaca que se consumia no aquartelamento era de animais comprados nas aldeias das redondezas, como já se explicou. Uma ou duas vezes por mês saía uma secção de combate com alguns voluntários, acompanhados por esse tal africano, em quem os militares confiavam. Iam a determinada área, onde havia algumas pastagens, falavam com o dono ou quem estivesse encarregue aos animais, acertava-se o preço e procedia-se ao abate dos animais, que mesmo ali, eram esquartejados e só traziam as partes que lhes interessava, já limpas.

A todo este processo chamava-se “Operação Vaca”!

Era uma operação a que o Cifra, sempre que estava de folga, ia como voluntário. Compravam e bebiam aguardente de palma, comiam fruta de caju, mangas, maduras e grandes. Alguns ficavam sobre influência, e os companheiros vendo isso, logo lhe tiravam a arma das mãos.

De uma certa vez, já depois de todo o serviço, quando se preparavam para carregar as partes limpas dos animais, os militares sofrem uma emboscada, com tiros de metralhadora, vindos de um dos lados, onde havia algumas árvores rasteiras com bastante capim. O tal africano em quem os militares confiavam, e que nesse momento se encontrava um pouco distante dos militares, levou vários tiros na região do peito e morreu instantaneamente. Mais dois militares ficaram feridos, um com uma bala alojada numa perna, um pouco acima do joelho, e outro deitava bastante sangue de um lado da anca, com uma bala que lhe passou a raspar essa área do corpo, mas de raspão, só o feriu. Foi um ataque de uma fracção de segundos, de alguém que estava à espreita, procurando a ocasião certa para atacar. O chefe da secção de combate, militar já com bastante experiência, flagela a área de onde vieram os tiros com diversas rajadas de G-3, no que é seguido por outros militares que disparam para o local.

Não havendo, tiros de resposta, e antes de inspecionar o local de onde vieram os tiros, houve um soldado que para lá queria mandar uma granada o que foi impedido de fazer pelo chefe da secção, militar muito experiente, que disse:

- Eu conheço este tipo de ataques, foi só uma ou duas armas que dispararam, creio que se não disparam mais é porque não têm munições, fugiram pois já fizeram o que quiseram, ou estão mortos, eu vou na frente e vamos inspecionar.

Aproxima-se, dispara mais uma rajada rente ao chão e em circulo, e quando tocaram no capim, tentando afastá-lo com a mão, viram dois guerrilheiros. Um já morto e o outro alvejado nas pernas, acima dos joelhos, pois era daí que vinha um grande rasto sangue, tentando mover-se em direcção oposta. Tinham duas metralhadoras com os carregadores já vazios. O que estava vivo barafustava numa linguagem que não se compreendia, mas pelos gestos não estaria a desejar as boas festas a ninguém.

Um dos voluntários, o Banana, talvez sobre influência, depois de ver o africano morto e os colegas lastimando-se com dores dos ferimentos que tinham, avança para o guerrilheiro, com uma faca em punho, gritando:

- Deixem-me matar este este filho da puta!

Tentando cortá-lo na região do estômago. O Cifra salta para cima dele, tentando impedi-lo, foi ferido na mão e alguns dedos, coisa sem importancia, pela faca do Banana.

Mas este gesto do Cifra não teve qualquer importância, pois o guerrilheiro acabou por morrer, tinha mais ferimentos de balas de um lado, nas costas.

O Banana, sem a faca, e vendo o Cifra a sangrar na mão, começa a chorar e a gritar:

- Perdoa-me, oh Cifra, mas estava fora de mim.

O Cifra era amigo do Banana.

Regressados ao aquartelamento, os feridos foram evacuados para o hospital da província. Mais tarde veio a saber-se que os guerrilheiros já andavam a tentar matar o africano, amigo dos militares há bastante tempo. O seu corpo creio que ficou enterrado no cemitério da vila. Os corpos dos guerrilheiros mortos ficaram a cargo do dono das pastagens, que disse num português que quase não se compreendia, com uma voz bastante firme que se encarregava deles.

Mais tarde esse homem, dono das pastagens, apresentou-se no aquartelamento dizendo que alguns guerrilheiros vieram buscar os corpos dos seus companheiros e que lhe levaram parte dos seus animais, que todos os seus animais pertenciam ao movimento de libertação e eram um contributo para a guerra de independência. Este homem pediu alguma protecção para si, para as suas três mulheres, duas filhas e um filho, dos quais mostrou documentos de identificação passados pelos serviços da tal repartição que funcionava como câmara municipal, que existia na vila, e que já aqui falámos, e que era melhor que não o procurassem mais, pois não podia vender mais animais, de contrário iriam matá-lo.

O comando incluiu a área das pastagens nos patrulhamentos de rotina, e passado uns dias, os militares passaram por essas pastagens que já não existiam. Não viram nem um animal, nem o dono nem a sua família, a casa de colmo estava abandonada e as cercas do gado destruídas.

Alguns reportes com informações passaram pelas mãos do Cifra, onde diziam que os guerrilheiros levaram os animais, o homem, as suas três mulheres, as duas filhas e o filho, abateram os animais e os consumiram nas suas diferentes bases, e tanto o homem como a sua família, agora eram guerrilheiros e desempenhavam diferentes tarefas em diferentes bases, o filho que pouco mais era do que uma criança, até estava a receber treino de guerrilha num país estrangeiro.

A partir dessa altura não houve mais bifes e batatas fritas, a carne era considerada um luxo, havia muita dificuldade em obtê-la e chegou a vir alguma da capital da província, mas pouca que normalmente era consumida na messe dos oficiais superiores, onde o Cifra ia roubar alguma comida, com o consentimento do sargento da messe, que era seu amigo e a quem o Cifra ajudava a fazer as contas no final de cada mês.

Para os restantes militares no aquartelamento a ementa era “peixe frito e arroz da bolanha”, cinco ou seis dias por semana, intervalada com o típico rancho, onde alguns só queriam, chouriça, outros só feijão, outros só massa, outros só massa e feijão! Alguns tinham alguma sorte, pois calhava-lhe um bocadinho de carne de galinha.

Enfim, compreendia-se.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho d'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)

1 comentário:

Cesar Dias disse...

Camarigo CIFRA

Esse menu de má memória, em Mansoa chamávamos-lhe "peixe da bolanha com arroz" mas também poderia ser como dizes, os dois andavam na bolanha.
Um abraço, e vai contando.
César Dias