1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 5 de Julho de 2012:
Queridos amigos,
Trata-se de uma pequena incursão pelas publicações que abordam os acontecimentos pós-independência, não se pode escamotear a sua importância para a compreensão das história da Guiné-Bissau. Os lideres do PAIGC supunham que o capital de credibilidade auferido durante a luta armada era inesgotável. Dirigentes como Aristides Pereira irão mais tarde recriminarem-se por não terem estado atentos a tanto entusiasmo com a cooperação internacional, parecia que a Guiné-Bissau tinha direitos especiais em receber ajudas sem prestar contas. A nova classe política passeava-se por Bissau e adotava os estilos de vida que tinham censurado durante a luta armada. Cedo a casa ficou sem pão e todos passaram a ralhar, a praticar golpes de Estado e a engendrar inventonas.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau, três anos de independência
Beja Santos
Houve um embaixador português, Pinto da França, que lhe chamou tempo de inocência, é uma época de sonhos e promessas, ainda se acredita no trabalho das organizações de massas, na participação popular, mesmo em ziguezague as autoridades do novo Estado falam em grandes opções económico-sociais, idealizaram projetos para o sector agrícola, acreditam que o futuro está prenhe de sucessos na energia, na indústria, na educação e na saúde pública. A Guiné-Bissau tem uma política externa e anuncia-a ao mundo, baseada nos princípios da coexistência pacífica, do não alinhamento e anticolonialismo e anti-imperialismo. O CIDAC, em 1976, procede a uma reportagem a publica-a com o título “Guiné-Bissau, 3 anos de independência”. Está-se em vésperas do 3.º Congresso do PAIGC, aquele em que se detetaram profundas fissuras entre guineenses em cabo-verdianos e se fizeram críticas à deriva económica e financeira. Ao longo da reportagem afloram apreciações que já não disfarçam o emaranhado de contradições: os que vieram da luta instalam-se em Bissau e desfrutam o bem-estar, começam as incriminações à administração colonial como se não competisse ao partido revolucionário impor, por via do trabalho político, as novas linhas de rumo. Fala-se na camada social parasitária, na pequena burguesia citadina que seria obrigada a alterar os padrões de consumo e a reduzir os seus gastos supérfluos, mas irá descobrir-se, em 1976, que o novo poder adquiriu 8000 novos carros e metade do desequilíbrio das contas externas decorre da importação de alimentos destinados à velha e à nova burguesia citadina. Ao tempo, o PAIGC continua a recusar ser partido, insiste em apresentar-se como o movimento nacionalista de libertação. Nunca se fala em socialismo e muito menos em socialismo africano, fala-se em política para o povo com base na unidade nacional. E o PAIGC apresenta-se como a força dirigente da sociedade, a expressão suprema da vontade soberana do povo. A justiça baseia-se em tribunais que vieram do tempo da luta, fazem-se julgamentos populares mas reconhece-se a necessidade em mexer de cima a baixo no aparelho judicial. A unidade Guiné-Cabo Verde é dogma, está realizada no partido a seu tempo irá passar para as populações e diz-se repetidamente que a construção desta unidade é um inestimável contributo para a unidade africana.
Os novos políticos de Bissau mostram-se ambiciosos quando falam do futuro da agricultura, a terra tem boas condições para a produção agrícola e promete-se uma via progressista para a agricultura mas avultam outras medidas importantes, tudo ainda no campo das promessas: uma reforma fiscal que iria eliminar os impostos anteriores e veria surgir o imposto de reconstrução nacional; o controlo estatal dos principais circuitos do comércio interno através dos Armazéns do Povo; nacionalização do comércio externo. Na reportagem diz-se textualmente: “A Guiné-Bissau encaminha-se para um tipo de sociedade com as seguintes características: conquista da independência económica e rejeição do neocolonialismo, eliminação das distinções de classe e da divisão da cidade-campo, forte intervenção do Estado ao serviço de todo o povo, planificação da economia, nacionalização da terra, reforma fiscal, participação estatal nas empresas, descentralização regional”. Era assim que se pretendia a abolição da exploração do homem pelo homem.
O ministro do Plano, Vasco Cabral, refere as prioridades para o desenvolvimento: aumentar a produção agrícola, desenvolver o potencial energético do país e fomentar as comunicações, criar pequenas indústrias ligadas aos recursos locais, vencer o analfabetismo e melhorar as condições sanitárias da vida da população. Havia a promessa de investimentos estrangeiros. A Esso, empresa multinacional de petróleo, a quem tinha sido concedida a prospeção do petróleo, considerou que os estudos eram francamente desencorajadores e abandonou o país; o comissário da agricultura confiava nas novas formas de propriedade (granjas do Estado, cooperativas de produção agrícola) havia mesmo a intenção da concessão de crédito e distribuição de sementes, tinha sido decretado um substancial aumento dos preços dos produtos agrícolas; estava previsto o aproveito hidráulico do vale do Rio Geba; quanto à horticultura e fruticultura, falava-se com entusiasmo na mandioca, na batata e no feijão, nas leguminosas e no tomate e previa-se a plantação de árvores de fruto em todo o país; o mais ambicioso dos projetos agrícolas era o complexo açucareiro a instalar na zona do rio Gambiel, afluente do Geba (a Líbia seria o principal financiador) e essas grandes intenções estendiam-se à riqueza florestal, avicultura e pecuária e previa-se um grande surto da atividade pesqueira, a Argélia já tinha enviado 4 barcos e formara-se um grupo constituído pela Guiné-Bissau, a França e o Senegal destinado à pesca do camarão na região do Cacheu.
A industrialização era acalentada: complexo energético-industrial a instalar em Porto Gole, aproveitamento hidrelétrico do rio Corubal, havia uma infinidade de novas indústrias a instalar: fábricas de móveis de madeira, de sumos e conservas de fruta, de descasque e extração de óleo, um centro apícola, uma fábrica de tecidos de algodão, um serviço de eletrotecnia a frio, doadores estavam a apoiar os trabalhos de melhoramento do porto de Bissau e do aeroporto de Bissalanca, estava já em laboração uma fábrica de camisas, a Bambi.
A educação era outro desafio até porque durante a luta quem visitava as bases de guerrilha no interior do território admirava-se com a grande capacidade de instalar um ensino alternativo. Todas as declarações, ao longo da reportagem, apontam para uma educação nova, para um salto na alfabetização, previam-se jardins-de-infância e o método de Paulo Freire promete ser um sucesso. Também a saúde pública aparecia no topo das prioridades, o colonialismo português era acusado de ter concentrado em Bissau a quase totalidade das camas e mais de metade dos médicos, bem como o grosso do equipamento hospitalar. Os novos governantes queriam socorrer-se da experiência das regiões libertadas, as grandes orientações para a saúde iam nessa direção. E esperava-se muito da cooperação internacional para formar quadros com formação universitária e financiamento para muitos dos projetos com que se sonhava estar a abrir o desenvolvimento do novo Estado.
Os políticos de Bissau mostram-se ufanos com a sua política externa, depois de 11 anos de guerra só pensam na coexistência pacífica e na boa vizinhança, só não se entendem com a África do Sul e são aliados indefetíveis do MPLA. As relações com Portugal, no fim do PREC, não são muito boas, Lisboa deixara de ser o primeiro aliado. Em anexo, a reportagem pública os estatutos do PAIGC, a constituição da República da Guiné-Bissau, a composição do Conselho de Estado e as resoluções da Assembleia Nacional Popular.
Era o tempo de inocência, o desastre económico vai explodir em breve.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10296: Notas de leitura (395): Guiné-Bissau, Um Estudo de Mobilização Política, de Lars Rudebeck (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
A introdução do Mário é esclarecedora e constitui uma luz adicional sobre a tentação do poder.
Amilcar seria um caso àparte (tem o benefício da dúvida), de estudioso que se compromete com as razões da sua razão, que prescinde o bem-bom de um engenheiro do regime colonial, apesar de não ter empunhado em armas, e ter percorrido muitas milhas de avião e frequentado os mais diversos gabinetes presidenciais (alguns de má referência para os povos).
Seria Amilcar um homem só? Muito provavelmente, sim! E não teve capacidade para perceber que o futuro da nação "livre" ficaria irremediavelmente hipotecado? Esta questão remete-nos para os comportamentos de subserviência que esperam vir a obter vantagens pela concordância e sensibilização dos chefes. Por outro lado, já estaria tão comprometido com a iniciativa emancipalista, que só esperaria conter alguns desmandos daqueles que o seguiam.
São só especulações, a realidade foram os acontecimentos a dar-lhe conteúdo, pois até há testemunhos contraditórios sobre o personagem.
E o povo, o que esperaria o povo? O povo, apesar de todas as limitações, como todos se recordam, esperaria que os portugueses lá permanecessem mais algum tempo. E, como se sabe, não são os povos que fazem as suas histórias.
Abraços fraternos
JD
O povo da Guiné até teve muita sorte nos primeiros anos da independência.
Enquanto nas ex-colónias Angola e Moçambique, tiveram uma guerra fratricida de dezenas de anos, na Guiné o PAIGC "apenas" matou alguns Comandos e fez passar alguma "fomeca" ao povinho.
África teve azar com os (des)colonizadores europeus, e no caso da Guiné, Amilcar devia ser tão pacifista como era Mandela.
Nada justificava os processos que usou.
Com a independência sabia-se que ia ser tudo errado, mas quem sabia "tinha que ficar calado".
Calados lá e cá...chamavam reaccionários a quem pensava como eu.
Parece que passados estes anos, Angola está a acertar o passo.
Pode ser bom para todos.
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