sexta-feira, 11 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12964: Notas de leitura (580): "Os Portugueses Descobriram a Austrália? 100 Perguntas Sobre Factos, Dúvidas e Curiosidade dos Descobrimentos”, por Paulo Jorge de Sousa Pinto (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
Por uso e costume, não descambo dos temas da Guiné, esta é o eixo central do que aqui vos escrevo, em nome dos princípios do blogue. Acontece que este livro surpreendente sobre a História dos Descobrimentos ajuda a perceber mitos e preconceitos em que incorremos e até em que participamos. Tem uma organização prodigiosa este livro que não se destina a especialistas mas ao grande público. Questiona polémicas, confronta mistérios e controvérsias, põe os descobrimentos face aos espelhos da memória, engrandece o que foi verdadeiramente grande e faz risota dos chavões postos em voga a partir do liberalismo do século XIX.
Em termos de cultura geral sobre os Descobrimentos Portugueses não conheço nada de mais original nem de mais vibrante. E o autor até questiona problema doutrinários da guerra em que participamos.

Um abraço do
Mário


Os Descobrimentos Portugueses contados engenhosamente a leigos

Beja Santos

Chama-se “Os Portugueses descobriram a Austrália? 100 perguntas sobre factos, dúvidas e curiosidade dos Descobrimentos”, por Paulo Jorge de Sousa Pinto, A Esfera dos Livros, 2013. Não hesito em considerar um acontecimento editorial este livro em que o especialista em História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa desvela ao grande público a trama dos Descobrimentos sob o manto diáfano das curiosidades e aspetos intrigantes do conhecimento histórico para os quais queremos obter resposta. O especialista comunica com vivacidade e não foge às questões escaldantes, tormentosas e mesmo aquelas que, como soe dizer-se, são fraturantes. Um exemplo: a imagem que construímos sobre África e o africano. Vale a pena uma citação abundante.

Em 1935, a escritora Maria Archer escrevia que “os negros pertencem a raça indolente, são destituídos de arquitetura, não têm monumentos, vivem mesquinhos de arte, sem escrita, e parcos de desenho ou pintura” e também manifesta o seu consolo “de ter escrito uma obra que vem demonstrar quanto negro selvagem, o bárbaro nu, desprotegido, retardado em civilização, a mão-de-obra indígena das colónias – pensa e sente como um homem”. Isto está escrito em África Selvagem. Nestas frases está condensada uma da ideias-chave que marcaram o paternalismo europeu sobre os Africanos, e que ainda hoje ecoa nos estereótipos e nos preconceitos que guardamos sobre o seu passado e a sua cultura: a de que o continente negro viveu num caldeirão de História amorfa e vazia e que as suas populações viviam em estado natural, em sociedades tribais, de costumes selvagens e economias de subsistência e penúria, até à chegada dos Europeus. E não havia civilização porque não havia cidades como as nossas, nem estradas nem monumentos.

Mais adiante observa o autor. "A imagem do continente africano foi sempre construída à medida dos Europeus: primeiro foi um espaço desconhecido a Sul do Sahara, de onde provinham caravanas que traziam ouro, produtos exóticos e informações nebulosas que afluíam ao mundo mediterrânico. Depois, conhecidos os seus limites naturais por ação das viagens portuguesas, passou a ser uma espécie de grande ovo de que se conhecia a casca mas muito pouco do seu interior, que era tomado por um grande espaço de movimentação de povos selvagens que periodicamente invadiam os reinos e dizimavam as populações. Aliás, é muito curioso olhar para a cartografia até ao século XIX e constatar o quase total desconhecimento ou irrealidade dos mapas de África. De seguida, na segunda metade do século XIX, o continente passou de mistério a galinha dos ovos de ouro, fonte de recursos para economias e potências europeias em concorrência entre si pelo domínio mundial e a necessitar de matérias-primas e mercados, mão-de-obra e prestígio imperial; a reboque de tudo isto, a superioridade intelectual, civilizacional e rácica de uma Europa que considerava seu dever arrancar os pobres negros à barbárie e partilhar um pouco do seu progresso e da sua ciência”.

O historiador compartimenta com muito acerto esta história dos descobrimentos escrita à forma de um guião: o papel pioneiro dos portugueses nos descobrimentos; alguma da grande mitologia que por vezes arrasta tanta polémica, caso da Escola de Sagres; um esclarecimento muito bem urdido sobre protagonistas e o porquê de certas decisões políticas (porque razão recusou D. João II o projeto de Cristóvão Colombo? O que aconteceu a Pêro da Covilhã? Camões esteve em Macau?); mistérios e controvérsias que deliciam os eternos polemistas (por exemplo, que tem de extraordinário o mapa de Piri Reis?); onde e como se cruzou a expansão portuguesa com a expansão europeia (questões tão curiosas como porque sucumbiu o Estado da Índia aos assaltos holandeses?); o pano de fundo de políticas e tratados (matéria vastíssima onde cabe perguntar se houve inquisição no Oriente, porque motivo foi D. Sebastião a Alcácer-Quibir ou quais eram os planos de Afonso de Albuquerque); “e se mais mundo houvera, lá chegara”, aqui as questões passam por obstáculos naturais, como a frequência dos naufrágios, se houve portugueses no Tibete, ou onde ficava a Cochinchina; histórias de encontros e desencontros, em que se questiona se foram os portugueses que introduziram a espingarda no Japão e qual o interesse dos biombos Namban; dúvidas e curiosidades (porque eram as especiarias orientais tão caras na Europa? Por que razão começou tão tarde a colonização no Brasil?); e, por fim, descobrimentos e memória.

À despedida, Paulo Jorge Sousa Pinto, apresenta, um balanço desta grande epopeia, não esquecendo de nos alertar que em cada época há sempre uma outra coloração no registo com que revistamos a História. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril de 1974, era o passado recente que importava, havia que denunciar a guerra em África, as suas causas e raízes, expurgar fantasmas coloniais, estabeleceram-se ligações por vezes simplistas e caricatas: de heróis, os Portugueses passavam agora a vilões, e os descobrimentos, de gesta a maldição para Africanos, Ameríndios e Asiáticos. Veio depois a Comissão Nacional para a Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, a seguir à catarse colonial era chegado o momento de redescobrir o passado. A temática regressou aos manuais escolares. Malbaratou-se muito do espólio documental e fotográfico produzido pela Comissão das Comemorações. Também aqui se cometeram esbanjamentos criminosos, como lembra o autor: a ópera composta por Philip Glass para evocar a viagem de Vasco da Gama desapareceu; custou cerca de 1,5 milhões de euros, foi representada três vezes na Expo 98 e nunca foi gravada. E termina deixando-nos uma reflexão mais do que incómoda: “A relação dos Portugueses com o seu passado colonial – ou ultramarino – vagueia ainda por entre os velhos estereótipos, entre uma imagem de heroicidade e uma lenda negra, continuando a prevalecer alguma dicotomia entre um certo sentimento saudosista e pseudopatriótico e um complexo de culpa mal assumido, expresso, de um modo geral, de forma contraditória e nem sempre saudável”.

Escusado é dizer se classifico este lançamento como um evento editorial relevante, este livro é obrigatório nas nossas estantes, estou absolutamente seguro que os leitores se renderão a esta prosa fascinante e a esta arquitetura prodigiosa da obra.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12941: Notas de leitura (579): "A Literatura na Guiné-Bissau", de Aldónio Gomes e Fernanda Cavaca (Mário Beja Santos)

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