segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14064: Notas de leitura (659): “Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal”, por Fafali Koudawo, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
É sempre bom saborear um exercício de grande aplicação e de análise talentosa.
O doutor Fafali Koudawo é nome sonante na investigação guineense e devemos-lhe esta primorosa análise comparativa das primeiras eleições legislativas pluralistas em Cabo Verde, em 1991, e as que ocorreram em 1994, na Guiné. Nas primeiras, o PAICV perdeu-as, nas segundas, o PAIGC saiu vitorioso, obteve uma maioria absoluta no Parlamento.
Este minucioso estudo reflete dois percursos de liberalização política com dois desfechos radicalmente diferentes. E ponto curioso, podemos ver as raízes do mal que então, como hoje, a Guiné-Bissau enferma.

Um abraço do
Mário


Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal

Beja Santos

“Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal”, por Fafali Koudawo, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001, é um ensaio de leitura obrigatória para entender o que distinguiu as eleições ocorridas em 1991 em Cabo Verde das eleições guineenses de 1994. Fafali Koudawo, doutor em ciências políticas e diretor de pesquisa no INEP, dá-nos uma rigorosa e bem desenhada análise de dois percursos de liberalização política que tiveram desfechos radicalmente diferentes.

Primeiro, Cabo Verde e a abertura que pôs termo ao monolitismo. O PAICV começou muito cedo a mostrar os seus limites no contexto cabo-verdiano. Logo em 1979, a chamada “crise dos ministro trotskistas”, no ano seguinte, em Bissau, deu-se a rutura dos partidos chamados irmãos, e com ele o fim do projeto do Estado binacional. O PAICV nunca descurou a diáspora, foi-se adaptando aos diferentes contextos que enfrentava o país: a reforma agrária, a reforma da administração pública, a reforma do sistema económico, abrindo-se ao setor privado. Em janeiro de 1990, o primeiro-ministro Pedro Pires reconhece que havia uma evolução das mentalidades e vinha denunciar os aspetos, a seu ver negativos, de tais evoluções, sobretudo o egocentrismo. Extrai ensinamentos dos acontecimentos políticos da Europa de Leste, o PAICV decidira a abertura ao pluralismo político, curiosamente a posição mais conservadora veio dos jovens do partido, julgavam-se guardiães do templo da democracia nacional revolucionária. Tratava-se de um partido único que agia com realismo, não queria escapar a uma transição pacífica para o multipartidarismo, ao longo do ano foram aprovados os textos jurídicos que deram moldura à mudança de regime. Em janeiro de 1991, o Movimento para a Democracia, único partido da oposição legalizado, saiu vitorioso. Que explicação Fafali Koudawo veio a encontrar para esta evolução? A vontade de adaptação foi apoiada do topo, começou em Aristides Pereira. O PAICV confiava na liberalização para uma nova relação de forças sociais e confiava na fidelidade popular. Pedro Pires fazia o seguinte balanço: “Fizemos um percurso de pelo menos quinze anos. Desse percurso de quinze anos estão à vista os resultados. Resultados políticos, económicos e sociais. Nós pensamos que em Cabo Verde construímos coisas novas. Temos muito que perder se não fizermos as coisas de acordo com a lei e no quadro das instituições existentes no país”.
Um analista conceituado, José Vicente Lopes, escrevia ao tempo: “Quando se analisa, em última instância, o processo de construção, reformulação e por vezes destruição do Estado nos nossos cinco PALOP, conclui-se que Cabo Verde era, no início dos anos 90, o que não só conseguira preservar o que herdara, mas também fora capaz de acrescentar uma importante mais-valia ao património recebido da situação anterior, em termos de administração do Estado”. O PAICV não admitia o desgaste do poder, parecia insensível às manifestações da degradação do clima social durante a segunda metade dos anos 1980. Se bem que monolítico e paternalista, o PAICV possuía diálogo interno e capacidade para sanar esses mesmos conflitos. Para Fafali Koudawo havia uma causa mais longínqua para esta derrota, o facto do PAIGC se ter apoderado de Cabo Verde com um comportamento hegemónico, desconhecendo então as realidades de Cabo Verde, confrontando-se com a Igreja Católica, enfim, ingenuidades que deixaram sequelas e que levaram à fatura de 1991.

Segundo, a transição política na Guiné-Bissau é um enredo de equívocos ou pouco esclarecidos ou que deixaram rastos de rancor. Por detrás do Movimento Reajustador do 14 de novembro de 1980 estão lutas fratricidas entre a ala militar e a direção política do PAIGC; contradições entre guineenses e cabo-verdianos em relação ao projeto de Estado binacional; dificuldades nascidas da passagem da teoria do Estado revolucionária à prática administrativa num contexto mal preparado para tal experiência. Depois do 14 de novembro deu-se uma desagregação da herança do período de libertação, tornou-se claro que o PAIGC não se adaptava ao credo fundador: um Estado com dois países; uma economia estatizada eficiente; e uma democracia nacional revolucionária imbuída no sentimento das massas. Aos poucos tudo foi caindo no abandono. A viragem na política económica, timidamente, deu-se a partir de 1983, era só o reconhecimento de que o país estava numa crise económica profunda. Ademais, com o 14 de novembro, acendeu-se o poder pessoal a que alguém chamou o bonapartismo presidencial. O PAIGC fez tudo reactivamente para não perder o controlo de monolitismo mas o adensar da crise económica falou mais alto. E por etapas ziguezagueantes, ocorreu a transição. A carta dos 121, publicada em junho de 1991, para a pedir a democratização interna do PAIGC, acabou por exacerbar contradições no seio do partido, apareceu uma Comissão Multipartidária de Transição no ano seguinte e foi criada depois uma Comissão Nacional de Eleições. Mas surgiu areia na engrenagem, em 17 de março de 1993, morre o major Robalo de Pina, homem de confiança do presidente Nino Vieira, anos mais tarde, o antigo presidente Luís Cabral declarou numa entrevista à rádio Renascença que teria sido Nino Vieira quem abatera o major no gabinete presidencial, que dali saiu embrulhado num tapete. E teceram-se vários rumores acerca das razões desta execução. O acontecimento deu origem à prisão de dirigentes da oposição.

As primeiras eleições pluralistas tiveram lugar em julho e agosto de 1994. O PAIGC ganhou. O candidato presidencial Kumba Yala bem protestou: “No interior do país, o PAIGC aproveitou a miséria para distribuir géneros alimentares e materiais de construção, aliada a uma forte pressão dos militares e paramilitares”. Resultados ambíguos, tudo ficou na mesma até que soltou a tampa um conflito aparentemente anódino ou pouco relevante: o tráfico de armas no Casamansa e a destituição de Ansumane Mané. Levavam-se anos de uma questão mal resolvida dos antigos combatentes da guerra da libertação; tornara-se escandaloso o fosso entre uma categoria de antigos combatentes privilegiados próximos dos círculos do poder político e a grande maioria dos antigos combatentes proletarizados; anos perdidos numa contínua má governação, uma ineficiência crónica na utilização dos recursos, uma permanente opacidade na gestão dos bens públicos, etc., etc.

A guerra civil veio demonstrar o elevado sentido de respeito pela soberania, os guineenses pegaram em armas e puseram em fuga senegaleses e guineenses de Conacri. Mas a legitimidade do poder ficou profundamente abalada, Ansumane Mane parecia um novo candidato bonopartista e Kumba Yala revelou-se um populista que em pouco tempo descontentou tudo e todos.

Em jeito de síntese, o autor esmiuça com rigor e apuro as diferenças nestes dois processos de liberalização, deixa bem claro que houve dois contextos de transição com resultados dispares, faz uma leitura atenta do papel dos emigrantes, dos emergentes partidos oposicionistas e como houve um choque entre duas lógicas de poder e mesmo dois tipos de legitimidade: a legitimidade das armas e a legitimidade das urnas.

O ensaio incontornável que nenhum historiador poderá ignorar para o estudo daquele tempo… onde radicam os mesmos padecimentos de que continua a sofrer a Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14050: Notas de leitura (658): “A Enfermeira Chinesa”, de Rui Coelho e Campos, Sítio do Livro, 2014 (Mário Beja Santos)

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