sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14082: Notas de leitura (660): “Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
A trama desta obra literária centra-se no stresse pós-traumático. É uma escrita muito cortante, muito económica, situa dois camaradas da guerra e dois palcos onde terão havido excessos que irão pesar na mente de um deles, até o destruir.
Nelson Leal desenha o percurso da doença, numa atmosfera que vai da guerra, passa pelo regime democrático e finda numa celebração em dia de Natal, os protagonistas ajustam contas com a ideologia em que acreditaram e que agora abominam. Nessa vozearia, João Manilha revive todo as imagens fantasmáticas que o perseguem, que continuam vivas na sua cabeça.
Pode não ser uma obra exemplar, mas confronta-nos sem tibiezas sobre a dor que ainda persegue muitos dos nossos camaradas.

Um abraço do
Mário

Um romance sobre o stresse pós-traumático: Crepúsculo de sangue, de Nelson Leal

Beja Santos

“Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013, é um romance de um oficial da Armada, muito ligado ao jornalismo que resolveu centrar-se no stresse pós-traumático. O primeiro episódio impressivo passa-se com a coluna que avança para Nambuangongo. Os rebeldes ainda resistem, cada vez mais timidamente. E logo uma descrição truculenta, o cabo Meireles manda cortar a cabeça a um rebelde morto: “O Frinchas, de olhos marejados, retirou, a custo, a catana da mão do negro e, num guinchar de raiva, lançou-a sobre o pescoço do cadáver… A cabeça do negro, indiferente à dor do colono, sorria de troça. E foi com ar de troça que se manteve, espetada num pau, junto à picada. Um troféu que a nossa exibia aos bacongos, que acreditavam que o guerrilheiro morto ressuscitaria, desde que mantivesse a cabeça”. Estamos no Norte de Angola, na Terra dos Dembos, o BCAÇ 96, do tenente-coronel Maçanita, tivera a sua primeira baixa. A operação Viriato está no auge. O nome do alferes Toscano aparece pela primeira vez. Maçanita quer a tudo o custo ser o primeiro a entrar em Nambuangongo. As tropas movimentam-se. O furriel João Manilha a tudo assiste, em silêncio. Como numa recapitulação histórica, assiste-se ao desenvolvimento da operação: “Avançaram baterias de artilharia, armadas de obuses 8,8 e 10,5. Avançou o tenente-coronel Armando Maçanita, de pistola em punho, no seu jipe trepidante, a ignorar os sobressaltos do terreno, de peito alçado. A coluna avança, alguns militares matam indiscriminadamente, incendeia-se Quicangassala… Algumas cabeças decepadas ergueram-se em estacas, a celebrar a vitória”. João Manilha está em estado de choque. E assim entra em Nambuangongo, enquanto o corpo de paraquedistas foi lançado em Quipedro, base de guerrilha, próxima de Nambuangongo.

Toscano e Manilha fizeram amizade, estamos nos fins dos anos 60, em Coimbra, Toscano enamora-se de Carminda e João Manilha de Giesta Maria. A guerra para eles continua. Toscano é oficial dos comandos, Manilha também faz parte das forças especiais. Dá sinais de depressão, Giesta afasta-se, Manilha insiste, é demasiado tarde, Giesta deu coração a outro.

E passamos para o massacre de Wiriyamu, dezembro de 1972, 6.ª Companhia de Comandos, operação Marosca, procura-se à viva força capturar o guerrilheiro Raimundo que anda a incomodar a região de Tete. As hélices dos helis troam pela savana, frenéticos, os Comandos tomam posição: “Um sujo véu castanho ia cobrindo os soldados da 6.ª Companhia, que formigavam entre as naves, a despejar armas, cantis, mochilas, rações, lonas. E as ténues silhuetas dos Comandos, de G3 em riste, agachados, em passo de corrida, foram, pouco a pouco, desaparecendo, tragadas na poeira. Wiriyamu esperava-os”.

Entretanto Mário Toscano trabalha para Jorge Jardim, está no seu exército particular, o SEI. Fala-se dos ataques da FRELIMO à via-férrea de Tete e das sortidas na estrada de Zobué, cresce a inquietação à volta da cidade da Beira. Jorge Jardim confia no êxito da Marosca. Começa o ataque a Wiriyamu, os habitantes são metidos nas suas palhotas e queimados, algumas mulheres violadas e depois abatidas. E o autor explica como irá ter lugar a denúncia do massacre de Wiriyamu, os rolos fotográficos e o relato das barbaridades chegou às mãos do padre Hastings, que os recambiou para Londres, serão publicados no jornal The Times, em julho de 1973. Mais uma dor de cabeça na política diplomática de Marcello Caetano.

João Manilha adoece em Tete, a depressão aprofunda-se, Mário Toscano visita-o. Dorme mal, tem pesadelos tenebrosos, as imagens dos massacres regressam em força.

E passamos para um de maio de 1974. Toscano tornou-se revolucionário, vive com Carminda junto a Cacilhas, convidou Manilha para jantar. Manilha descobre que Giesta Maria perdeu o marido na guerra da Guiné. Irá a Coimbra bater-lhe à porta, os seus afetos recuperam-se. Na aldeia os pais de João Manilha empurram-no para Luísa do Monte, após peripécias que envolvem as duas famílias, chega-se ao acordo para o contrato nupcial. Só que João Manilha não selará o contrato, irá casar com Giesta Maria.

Toscano vive a febre revolucionária, é membro do PCP, é convidado a dar informação do que se passa no Regimento dos Comandos, recusa-se, começa a rutura.

Os anos passam, João Manilha está a ler o Diário de Notícias na praia, na companhia da enteada e do filho, lê e relê uma reportagem sobre a guerra de Angola, a guerra civil está ao rubro. O stresse pós-traumático eclode: “Já não é a praia que ele vê, é a selva imensa de África, é a guerra, é o João que tropeça, que cambaleia, que cai e que se levanta, regressam as hélices dos helis, ele sente as metralhadoras a matraquear, tem um desmaio".

Irá ser tratado no Hospital Militar Principal, vai a uma consulta de psiquiatria, e daqui partirá para uma Junta Médica, é considerado incapaz para todo o serviço. “Reformou-se numa quarta-feira de março de 1988. Vestiu-se de luto, porque percebeu que morrera, ainda novo. Perdeu amigos, perdeu companheiros, perdeu escalas, perdeu serviços, perdeu bares, perdeu noitadas, perdeu borgas, perdeu sonhos. Reformou-se com 45 anos e com 27 anos de serviço. Com uma miséria no bolso e com dois filhos ainda por criar”. E rumam para Águeda, Giesta arranjou colocação numa Escola Preparatória, João Manilha procura integrar-se. Caminhamos para a atualidade. Diogo Toscano enamora-se de Joana Palla, em agosto de 2000 teremos casamento de muita e uma cerca circunstância, Diogo quer singrar na vida, é simplesmente filho de um capitão, e Joana é filha de um responsável socialista, com muitas conexões, o autor dá-nos uma imagem de Diogo servil e estúpido, mas capaz de tudo para ter um lugar ao sol. João Manilha está em casa e a empregadita são-tomense ciranda por ali, crepita a chuva, um vento enfurecido não dá tréguas, ressoou um trovão, João atira-se à jovem. Mas ele já deixara de ser velho. Ele voltara a ser o Furriel João Manilha e ela era aquela negra de África. Puxou-lhe as roupas num frenesim, como se fosse um ritual, atirou-a para o sofá, como se fosse um fardo e olhou, com os olhos perdidos, aquele corpo por cumprir, aquele ventre de ébano e aquele púbis encaracolado. É desta que João Manilha tem um AVC.

Na boa tradição da literatura e do cinema, haverá um almoço onde toda esta gente se irá reencontrar. Mário Toscano está no campo ideológico oposto ao que tivera a seguir ao 25 de abril, tem o filho bem instalado, há por ali comentários insultos de vária ordem, há mesmo uma atmosfera de derrisão em que o Manifesto Anti Dantas, de Almada Negreiros transforma-se numa catilinária à geração dos coelhos. Manilha está presente mas ausente, tem reminiscência duma cacofonia de canhangulos e carabinas, em desconcerto, a acordar o matorral. As balas, desencontradas, a silvarem traços de morte à sua volta, ceifando o chão e cravejando o arvoredo. À mesa, todos discutem, entusiasmado. A enteada de João Manilha vê duas gotas a escorrerem nas faces de João Manilha. Este está sozinho na guerra, vai matando, vai incendiando, está em Nambuangongo e salta para Wiriyamu, a menina grita: “Acudam, que o pai está mal! Depressa! Ai, que ele ainda morre!”.

“Crepúsculo de Sangue” pode não ser uma jóia literária mas reconduz-nos ao inferno da doença não tratada, vai ao coração do trauma da guerra e alerta-nos para um sofrimento que ainda devasta muitos antigos combatentes.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14064: Notas de leitura (659): “Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal”, por Fafali Koudawo, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001 (Mário Beja Santos)

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

O Portugal dos coitadinhos, o Portugal dos pequeninos. Nunca chegaremos a lado nenhum com esta gente. E,foram quinhentos anos de História, para o bem e para o mal, e chegámos a todo o mundo.

Abraço,

António Graça de Abreu

manuel amaro disse...


Mais coitadinhos que pequeninos... mais do tipo... "foi muito mau, mas não fui eu, foram eles..."

Já testemunhei várias vezes em processos do maldito stress e lá estão, quase sempre as perguntas "coitadinhas"...

Não há pachorra...

Abraço

Manuel Amaro

Hélder Valério disse...

É verdade, sim senhor, falta a pachorra, mas o que se há-de fazer?

Hélder S.