segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14286: Notas de leitura (684): “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, por Gomes Eanes da Zurara, adaptação de Frederico Alves, edição da Agência Geral das Colónias (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
A crónica de Zurara é um documento histórico-cultural ímpar em Portugal e na Guiné-Bissau. Trata-se de um panegírico, é verdade, este Infante D. Henrique é imaculado e intocável. Mas Zurara teve acesso aos eventos e falou com muitos dos protagonistas, escreveu com brilho e vibração, há para ali páginas que são gemas literárias, como a chegada dos cativos a Lagos, transmite ao leitor todo o sofrimento de quem se vê apartado da mulher, do filho ou do irmão.
Esta edição destinada a rapazes é uma originalidade e pergunta-se mesmo se não merecia a apropriada reedição, para proveito luso-guineense.

Um abraço do
Mário


O romance da conquista da Guiné contado a rapazes (1)

Beja Santos

Vai para 70 anos que a Agência Geral das Colónias publicou um documento assaz curioso, que vale a pena conhecer e, vamos lá, até se justifica uma reedição luso-guineense para um dos documentos matriciais da historiografia dos Descobrimentos. A adaptação, para rapazes, da “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, por Gomes Eanes da Zurara. A adaptação pertence a Frederico Alves que justifica a adaptação com os seguintes dizeres:  
“Os rapazes mostram, em geral, relutância pelas obras antigas. O jovem estudante (mesmo estudioso), de quinze, dezasseis, dezassete anos, fatigar-se-á, porventura, através das páginas quantas vezes deliciosas – mas para ele menos interessantes – de qualquer clássico.
Estes oferecem, na verdade, enigmas complicados; às vezes, mesmo, enigmas insolúveis, e, quando tal não aconteça, a linguagem que nós achamos tão bela, tão expressiva, tão rica, tão profunda, acham-na eles (…) Tentei dar aos rapazes uma Crónica da Guiné que seja como um texto antigo a vir ao encontro do adolescente moderno.
A Guiné, de que trata a crónica de Zurara, não equivale, apenas, à moderna Guiné portuguesa. Refere-se a um território muito mais vasto que se estendia ao longo da costa atlântica da África. Os heróis desta verídica história movem-se e atuam numa extensão que vai desde os Açores ao Cabo da Boa Esperança. Porém, insistem, numa faixa de costa mais reduzida, que termina, aproximadamente, por alturas do grande rio Níger.
Junto da Guiné vinha confundir-se a Etiópia, designação vaga dada a um território do Sul do Egipto que morria na costa do Atlântico”.

A crónica da Guiné, importa não esquecer, é um panegírico ao Infante D. Henrique, e daí começar pelo seu retrato: “A sua estatura era de bom tamanho, a sua carnadura grossa, os membros largos e fortes e a cabeleira levantada. A pele foi branca primeiro; porém, o sol do Algarve acabou por queimá-la. A sua presença, à primeira vista, amedrontava os tímidos. Rara lucidez de espírito e teimosia incomparável”.

Fala-se do empreendimento de Ceuta, depois de Tanger, a seguir da vila que o Infante mandou levantar no Cabo de São Vicente, Sagres. As caravelas vinham aportar a Lagos, daqui partiam para descer ao longo do continente africano. Zurara fala das razões que impeliram os descobrimentos henriquinos: o querer devassar o ministério do oceano, podia bem ser que, entre terras e povos desconhecidos, os mareantes achassem bons portos e excelentes mercadorias; importava conhecer até onde chegaria o poderio dos mouros nesta parte da África; pretendia saber se existiriam príncipes cristãos dispostos a arriscar a vida pela Fé; o desejo de chamar a Jesus todas as almas que se quisessem salvar.

Em 1433, Gil Eanes, escudeiro do Infante, foi até à Ilha Canária e no ano seguinte o mesmo Gil Eanes procurou dobrar o Bojador, e teve sucesso, trouxe-lhe rosas de Santa Maria. Escreve Zurara:
“Não tinham secado ainda as rosas de Santa Maria e já o Infante mandara armar um barinel, confiando-o a Gonçalves Baldaia, seu copeiro, ordenou-lhe que navegasse na esteira da barca de Gil Eanes. Chegado ao cabo, Baldaia mandou desembarcar dois mancebos de 17 anos, determinou que se internassem pela terra, descobriram gente, pelejaram e regressaram ao navio. No dia seguinte, os moços cavalgaram pela margem do rio, encontraram focas e carregaram as peles para a embarcação. Mas Baldaia queria à viva força cativar indígenas. E chegaram ao lugar a que se pôs o nome Porto da Galé.
Os anos seguintes foram dominados por questiúnculas pela regência do reino. Em 1441, o Infante designou Antão Gonçalves para armar um navio, tinha a incumbência de trazer a courama de lobos-marinhos. Tudo levava a crer que não trariam cativos. Mas surgiu uma surpresa, ancorou à vista de Antão Gonçalves uma caravela capitaneada por Nuno Tristão, trazia armas e ordem de passar para além do Porto da Galé. Foi assim que se veio a terra, voltou-se a pelejar e surgiu o primeiro cativo. Nuno Tristão armou Antão Gonçalves como o primeiro cavaleiro naquelas paragens. Por isso o lugar ficou conhecido por Porto do Cavaleiro.
Nuno Tristão singrou para diante, aportou no Cabo Branco e Antão Gonçalves rumou para Portugal. Quando o Infante viu o primeiro cativo encheu-se de júbilo. O cativo, de nome Adahu prometia dar em troca meia dúzia de negros se o enviassem para donde viera. E fez-se nova expedição, a caravela subiu pelo Rio do Ouro, aqui perto deu-se a troca".

A crónica de Zurara data os acontecimentos e precisa os intervenientes. Em 1943, Nuno Tristão vai numa caravela quer aproou ao Cabo Branco e depois se descobriu uma ilha, a Ilha das Garças. As operações sucedem-se e os mouros cativos vão chegar a Lagos e Zurara escreve páginas sublimes sobre o sofrimento dos escravos:
“Pai Celestial! Tu, com a tua mão omnipotente, governas os astros! Que as lágrimas vertidas não sejam em dano da minha consciência, mas o certo é que a triste condição dos prisioneiros me obriga, a mim, que sou homem, a chorar o seu destino! Pois se as próprias feras, por serem feras, não deixam, Senhor, de entender o sofrimento alheio, que hei de fazer eu, humano, ao recordar-me que todos somos filhos de Adão!?
Ao amanhecer do outro dia, o oitavo de agosto, os mestres das caravelas levaram os mouros que eram duzentos e mais trinta e cinco, ao campo de fora da vila. Antes disso, porém, conduziram-nos quase todos à pia batismal, e um menino, que depois se tornou franciscano, o remeteram a São Vicente do Cabo onde ficou assistindo na lei do Senhor.
Os outros juntaram-se no campo, coisa maravilhosa de ver, pois eram uns de alvura sem mácula e formosos, outros de cor parda, e outros, ainda negros como a noite, feios e mal-ajeitados de corpo. Meu Deus! E qual coração, por mais empedernido, se não comovera diante daquele triste rebanho?
Uns, de rostos baixos, lavavam as faces com pranto, outros trocavam olhares angustiados; gemiam alguns, dolorosamente, fitando as alturas do céu, gritando de rijo, como se rogassem ajuda ao Pai da Natureza; outros rasgavam com as unhas a pele da cara e arremessavam-se ao chão; outros, ainda, soltavam do peito um coro de lamentações à maneira dos cânticos da sua terra distante. E se os nossos não compreendiam as palavras, entendiam, ao menos, o grau de tamanha de tristeza!
E como se não bastasse a condição de escravos, aproximaram-se, então, os da partilha, que, para ajustarem os quinhões, muitas vezes tiveram de separar os filhos dos pais, e as mulheres dos maridos, e os irmãos entre si. O coração não mandava, mandava a sorte.
Oh! Fortuna cujas rodas andam e desandam e governam o mundo como lhes apraz! Mal apartavam um filho do seu pai, ambos se erguiam, terríveis, atirando-se aos braços um do outro; as mães apertavam ao peito os meninos, deitavam-se de bruços, por terra, com eles, e para que lhos não arrebatassem preferiam arriscar a carne do seu corpo.
Em volta do campo, comprimiam-se os vilãos e os homens dos lugares e comarcas dos arredores que, nesse dia, tinham deixado as terras desertas e as ferramentas abandonadas para virem contemplar, de perto, aquela novidade. E, entre eles, muitos de coração macio – choravam!”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14276: Notas de leitura (683): “De Passo Trocado ASP”, por Carlos Vale Ferraz, Bertrand Editora, Fevereiro de 1985 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...


A Guiné de que Zurara fala, eram todas as terras africanas recém descobertas para além do Bojador (Mauritânia, etc). Não se pode falar de Guiné-Bissau ou de Guiné Portuguesa porque em 1450 nada disso existia.
Mas é verdade que, para o bem o para o mal (tudo relativo!)andávamos a desbravar um continente desconhecido. Com as consequências que conhecemos e fazem parte de nós. Quinhentos anos depois levámos com uma guerra
no corpo, no coração, por causa dos Zuraras (e outros!) neste fantasmagórico e universal sortilégio de sermos portugueses.
Nosso destino, nossa sorte.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Certamente Zurara devia ser além do comandante, o único elemento da tripulação que sabia ler e escrever.

Sabendo hoje, que já antigamente ainda VIRIATO nem falava nem escrevia português, nem havia as escolas do centenário na terrinha, e já havia gente a falar e a escrever grego, como lhe deu na cabeça a esta meia dúzia de gatos pingados, serem eles a assumir tanta responsabilidade:

«Dar novos mundos ao mundo»

Vamos ver como acaba isto tudo!