Quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Desde o tempo em que lutámos na Guiné,
quase todos os dias sentimos um certo tipo de “arrepio” a
picar-nos a pele, por vezes passamos dias de reflexão e
pensamentos dos amigos que por lá caíram. Homens
como o “Zargo”, o “Curvas, alto e refilão”, ou o “Bóia”,
como carinhosamente o chamávamos, que foi morto por
uma maldita carga explosiva, numa ponte armadilhada
que existia para os lados de Porto Gole.
Lembramo-nos daquele tempo escuro, mesmo depois da
guerra, que para nós durou vários anos, a nossa alma
parecia que tinha sido baleada, pelas coisas
que vimos, pelas coisas que cheirávamos, pelo
isolamento forçado e angustioso, pelas coisas que
fizemos e pelas coisas que nunca tivemos oportunidade
de fazer, mas que deviam ser feitas naquela idade tão
jovem. Lembramo-nos de como a vida se tornava de
alguma forma menor, à medida que nos isolávamos
sistematicamente daqueles que nós amávamos.
Enfim, “lembranças” de irmãos de guerra, que agora, anos
mais tarde, o nosso pensamento encontra todos os dias.
Há dias, o companheiro Hélder dizia que estas memórias
não são já do "Cifra", é verdade, pois do “Cifra” já só resta
talvez o pensamento, algum espírito aventureiro e o “C”
do “mister “C”, que é como aqui chamamos à doença
“cancêr”, pois somos um dos felizmente muitos
sobreviventes dessa maldita doença, que há uns anos
contraímos e que depois de um rigoroso tratamento,
recuperámos, vencemos e ainda por cá andamos.
Neste começo de ano as coisas estão a parecer-nos um
pouco diferentes, pois por alguns momentos vamos
retornar à personagem “Cifra” e, aquela personagem, que
naquele tempo se chamava “Zargo”, hoje é o nosso amigo
Jorge, que está a viver por aqui, na Florida, pelo menos
uns meses, portanto encontramo-nos, falando também de
guerra, mas raras vezes, pois a sua dedicada esposa,
assim que houve falar em guerra, logo nos diz, “please,
stop fighting with your thought”, que quer dizer mais ou
menos, “por favor, parem de lutar com o vosso
pensamento”.
Mas vamos à história, porque se não, o dedicado do
Carlos Vinhal, ainda vai dizer que o texto é longo. Portanto
cá vai.
Era manhã, havia que colocar um leve casaco nos
ombros, pois a temperatura assim o recomendava,
estávamos do outro lado da Flórida, na parte oeste, no
Golfo do México.
A “Europa” andava por lá, aliás, por aqui, de uma maneira
ou de outra, tudo nos mostra que as raízes vieram da
“Europa” e, as pessoas responsáveis pelos municípios
continuam a ter orgulho nessas raízes, admiram e fazem
de algumas personagens europeias, os seus heróis.
Em 1982, um armazém de marinha no centro da cidade
marítima de St. Petersburg, no estado da Florida, foi
reabilitado e um museu foi inaugurado. Eram umas
instalações frequentemente sujeitas a furacões de um
clima tropical, mas no ano de 2008, depois de uma
chamada de atenção quase a nível nacional,
Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech, 1.º
Marquês de Dalí de Púbol, conhecido no mundo das
artes, apenas como Salvador Dalí, que foi um importante
pintor catalão, conhecido pelo seu trabalho “surrealista”,
tinha finalmente o seu museu.
Mais de cinquenta anos depois, o “Zargo”, nome de
guerra do nosso companheiro de luta na Guiné, quando
nós éramos única e simplesmente o “Cifra”, dizia-me:
“Estas instalações são comparáveis a um forte antigo,
mas com linhas modernas e, algo surrealistas”.
Foi construído na margem da baía, próximo do Teatro
Mahaffey, na parte baixa da cidade, numa estrutura que
apresenta uma grande porta de entrada em vidro em
forma de triângulos, que por sua vez formam círculos por
onde entra a luz natural, feito de vidro de 1,5 polegadas
de espessura, a que deram o nome de "Enigma", pois
esta porta de entrada de vidro tem 75 metros de altura
que engloba uma escada em espiral, que nos conduz ao
tal “enigma”.
As restantes paredes são compostas de concreto de
espessura de 18 polegadas, projectado para proteger esta
valiosa colecção dos frequentes furacões que assolam a
baía, onde se inclui 96 pinturas a óleo, mais de 100
aguarelas e desenhos, 1300 ilustrações, fotografias,
esculturas e objectos de arte, e uma extensa biblioteca de
arquivo.
Entre outras pinturas, está “The Hallucinogenic
Toreador”, que é uma pintura a óleo que Salvador Dalí
em 1970, seguindo os cânones da sua interpretação
particular de pensamento surrealista, transmite o
desagrado de sua esposa para as touradas, através da
combinação de simbolismo com ilusões de ótica e
alienando ainda motivos familiares, ele cria a sua própria
linguagem visual, está lá a aplicação do método
paranóico-crítico, dentro desta pintura combina as
imagens versáteis como um exemplo elucidativo da sua
criação artística, onde uma poça de sangue se transforma
numa baía abrigada, na qual uma figura humana é uma
jangada amarela, vista no horizonte.
O “Zargo”, ria-se ao ouvir alguém ao nosso lado comentar,
“a lot of drugs”, que quer dizer mais ou menos “muita
droga”!.
As pinturas de Dalí chamam a atenção pela incrível
combinação de imagens bizarras, com excelente
qualidade artística e, tanto para nós, que era o “Cifra”, ou
para o Jorge, que era o “Zargo”, que muitas vezes estávamos
sobre influência em cenário de guerra, talvez
“deambulando” por outros horizontes, que nos ajudava a
viver aquela terrível guerra, apreciamos a arte de Dalí,
que dizem que foi influenciado pelos “mestres do
Renascimento”.
Dalí insistia na sua "linhagem árabe", alegando que os
seus antepassados eram descendentes de mouros, que
ocuparam parte da Península Ibérica por quase 800 anos,
afinal, tal como um qualquer “Zargo” ou “Cifra” e, atribuía
isso ao seu amor por tudo o que é desejado com alguma
fantasia, também tal como nós, que vivemos uma guerra
em África, fugindo depois para o continente Americano, na
procura do desejado, que muitos de nós nunca
encontrámos.
Voltando à guerra que nós vivemos, torna-se um pouco
claro que o seu custo é ainda maior do que
nós possamos imaginar, porque a guerra tem um apetite
insaciável pela morte, que ainda hoje, continua a matar, não só a quem nela participou
activamente, pois as pessoas começam com
sentimentos de confusão, depois move-as um longo
pensamento de raiva e, finalmente, vem a indiferença. Mas
aquele esgotamento escuro e emocional ainda se
encontra de pé, mesmo à beira de um abismo,
convidando-nos a saltar, pensando que com essa
estúpida atitude, todos os sentimentos vão acabar.
Já chega de guerra e de confusões, vamos fazer
como o Dalí, “viver o nosso mundo surrealista”. Quero lembrar que, com a excepção do Teatro-Museu
Dalí, criado pelo próprio Dalí na sua cidade natal de
Figueres, Catalunha, Espanha, o “Dalí Museum”, na
cidade de St. Petersburg, é no estado da Florida que estão as
maiores coleções do mundo, de Salvador Dalí.
Tony Borie, Fevereiro de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14259: Libertando-me (Tony Borié) (4): ...e o Lisboa rasgou o cartão
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Dizes, meu caro amigo:
A dedicada esposa, assim que houve falar em guerra, logo nos diz, “please, stop fighting with your thought”, que quer dizer mais ou menos, “por favor, parem de lutar com o vosso pensamento”.
Meu caro camarada, como eu conheço
estes entendimentos e palavras, mas em chinês, por parte da minha mulher chinesa que abomina a guerra e as sequelas da guerra, e passa a vida a dar-me na cabeça por causa da Guiné.
Quanto ao Museu Dali de S. Petersburgo, na Florida, tive a sorte, e um desbragado prazer de o visitar, há menos de um ano, em Março de 2014.
Aluguei um carro em Miami, viajei pela Florida durante seis dias(Everglades, crocodilos,astronautas, Cape Canaveral, Ferraris aos montes)a descoberta do universo, a ostentação dos ricos, made in America, o equilibrio dos pobres, made in Mexico. E mais os outros todos. America, fascínios do mundo.
O Museu norte americano de S. Petersburgo, (onde caí, por acaso, na ronda pela Florida) é excepcional,
maravilhas na obra de Salvador Dali. Pagas a peso de ouro (Dali gostava de ouro, quem é que não gosta, até os tipos gregos do Syriza gostam), por um magnata
americano das massas comestíveis, esparguetes e mais mil variedades, amigo de Dali, que ao morrer em 1991,
legou o seu espólio dos quadros de Salvador Dali, à cidade norte-americana que melhor o soubesse conservar e perservar.
E foi S. Petersburgo que avançou,
construindo este fabuloso museu Dali, na Florida,
um museu encantatório e mágico.
O que é que isto tem a ver com a nossa Guiné?
Tudo, porque estamos vivos, trazemos dentro de nós uma guerra que jamais esquecemos, mas somos cidadãos (os melhores!) do mundo.
Abraço,
António Graça de Abreu
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