1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 7 de Fevereiro de 2015:
A questão de afecto entre nós e o povo da Guiné-Bissau
Hoje as nossas relações com o povo da Guiné, leio-as à luz da saudade daquela terra e da juventude que tinha quando por lá passei.
Éramos homens simples que foram conviver com gente simples e, ao contrário de outras potências coloniais, nós não tínhamos conceitos racistas, nem estávamos espartilhados por proibições de relacionamento com autóctones, antes pelo contrário era promovida num são relacionamento ditado pela “psicola” base da política de Spínola por uma "Guiné Melhor" com que ele contava ganhar a guerra.
Essa política oficial tinha outras intenções que visavam atingir outros ganhos é verdade, mas na nossa educação nunca constou a palavra apartheid desde Afondo de Albuquerque, que promoveu a cruzamento dos portugueses das caravelas com as indígenas, dando origem ao termo que Deus criou o Homem e os portugueses criaram a mestiçagem da Índia, Ceilão, Brasil e África, bem sabemos que nem sempre pacifica.
Amizade ou necessidade.
Os guineenses guardam também muitas recordações e afectos agravados pelo falhanço das transformações políticas em que a independência se atolou na luta política, na corrupção e prepotência dos novos dirigentes, que rapidamente se esqueceram por que tinham feito a guerra e do bem-estar do seu povo e ao contrário disso, foram as vinganças sórdidas que tanto sangue fez correr. Mistura-se assim a necessidade com a amizade.
A esperança deu lugar à descrença. As infraestruturas que nós construímos bem como as que os países doadores puseram ao dispor dos novos governos, para a melhoria do nível de bem-estar das populações, deram lugar a elites e à sua destruição nos conflitos que após a independência eclodiram entre facções e etnias.
Depois do descalabro das instituições e a falência do estado pós-independência, os guineenses rapidamente se aperceberam do duríssimo caminho que tinham para percorrer sem a nossa economia de guerra, com milhares de soldados e milícias a receberem ordenado, a nossa assistência médica, e do comércio que era exercido juntos aos quartéis, bem como o apoio logístico que era dado às populações.
Os últimos dez anos da nossa soberania sobre os territórios tinham resultado num salto em frente, em praticamente todos os sectores, o que se acabou por perder.
Não era nem devia ter sido assim e era espectável ser diferente. Devia esse povo ter seguido em frente e alcançar o que não tinha conseguido, até ali governado por outros interesses que não os seus.
Não sabiam que tudo isso estava a custar demasiado a Portugal e que a nossa economia não podia suportar por muito mais tempo aquele estado de coisas, talvez devido à estreiteza da visão política e económica com que Lisboa olhou para os territórios ultramarinos durante décadas, onde praticamente se impediu o crescimento e a autossustentabilidade.
Apesar de tudo, as nossas relações hoje são pautadas pela a ajuda solidária a nível de organizações que vivem das contribuições de ex-militares e pouco ou nada a nível institucional. Ainda há dias li o que escreveu uma cooperante quanto às dificuldades em desbloquear equipamentos, bem como medicamentos, pelos serviços aduaneiros excessivamente “zelosos e burocráticos” da Guiné-Bissau.
Mas quando falamos da Guiné, o coração amolece logo pois é um país muito pobre. Rapidamente são esquecidos os maus bocados que lá passámos, bem como os desmandos e razões que levaram parte dos guineenses, na esteira de outros povos africanos e asiáticos, a exigirem as suas autodeterminações antes mesmo de pegarem em armas.
Em abono da verdade essas exigências foram mal recebidas praticamente por todas as potências administrantes, que como se sabe os obrigou a lançarem-se em guerras contra a ocupação, e não poucas as vezes fratricidas, que levaram a utilização de uma violência entre eles muitas vezes superior à que foi utilizada contra os ocupantes.
Talvez muitos se tenham arrependido, mas quem sabe quantas pedras e curvas tem o caminho, antes de lá passar?
Mas tudo passou e nós nunca fomos maus rapazes e como tal, numa relação de irmãos ricos e pobres, hoje só não damos mais porque não podemos. E essa é a grande verdade.
Paz para eles e para nós que bem precisamos.
JA
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Nota do editor
Vd. último poste da série de > 20 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14275: (Ex)citações (261): Uma coisa posso dizer com clareza: o povo guineense é um povo digno de admiração (Manuel Joaquim, membro da ONGD Ajuda Amiga)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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11 comentários:
Caro amigo Juvenal:
Bela análise da questão dos afectos entre nós e o povo da Guiné-Bissau.
De facto faz parte do nosso ADN deixar uma marca positiva por onde passámos. Os nossos antepassados são ainda hoje recordados pela presença em locais mais longínquos Foi assim em Africa, na América, na Oceania e na Ásia.
Ainda há poucos dias fomos surpreendidos de maneira elogiosa por um Digníssimo Cardeal da antiga Birmãnia, que após a sua coroação atribuiu a sua presença na cerimónia, à passagem de Portugal pela região, de maioria católica, há uns séculos atrás.
Um abraço para todos.
Manuel Reis
Olá Camaradas
Boa análise!
Nada a acrescentar neste breve resumo.
Mas vamos sempre ter ao mesmo: ganharam uma bandeira, com esforço, com sacrifícios múltiplos. Agora façam-se à vida e "dêem corda aos sapatos" porque o futuro é todos os dias.
Por mim limito-me a ver de longe sem paixões nem lamentos. Gostaria que vivessem bem? Sim. Não tomo como vingança (da História?) o facto de não viverem bem.
O Afecto é algo que alguém sente por alguém (ou alguma coisa) e não há afectos povo-a-povo.
Isso é mais uma forma de nacional-porreirismo a que nos têm vindo a impingir.
Um Ab.
António J. P. Costa
Camarada Juvenal,
Voltei a gostar de ler o que escreveste. Há depois uma pincelada do Manuel Reis que complementa a tua análise.
Contudo, o que é natural, tocas no periodo da Guerra Colonial (do Ultramar) e afloras ou tocas levemente no antes e vincas mais o pós independência. Concordo contigo pois temos vários periodos a partir da nossa ida a Ceuta. Desde o sec.XV que pelo mundo navegamos e por este mundo espalhamos o "nosso nome" Era assunto, mesmo o mais sintético possivel, a levat muita escrita. Quanto a mim houve vários periodos diferentes na nossa história de Povo expansionista, de povo tão pequeno em população e enorme no saber, na temeridade e na firme vontade de levar a nossa cultura e o nosso desejo de trazer riquezas (comerciar....). Temos o periodo inicial, mesmo englobando os sessenta anos filipinos,que o podemos estender até finais do sec XVIII,determinante este secXVIII para África e para o colonialismo europeu com a "partilha daquele continente" e saltarmos para as independencias do pós guerra, a 2ª claro. Saltamos sobre a escravatura, o colonialismo abjecto, a dfestruição da cultura africana, o racismo, o apartaid (assim escrito por mim)e muito mais. Falemos, como tu o fizeste,só da guerra colonial e da Guiné. Tem que ser ou deve ser separada das outras colónias que em África tivemos. A nosssa guerra na Guiné é ela mesmo sub-dividida em periodos.
Tanto mar Juvenal, tanto mar para falar, para analisar...e o pós-independencia? E a diferença desse periodo em Moçambique, Angola e Guiné etc.Não são iguais.
Não vou ler o que teclei ou não iria. Certo é que apesar da brutalidade daquela guerra o "Povo das Tabancas" e nós ainda sorrimos com fratenidade. Não sei se os combatentes do Paigc o farão, creio que não. Não morro de amores por eles e, não vou,mas gostava de visitar aqueles lugares por onde passei,as gentes com quem convivi.Impossivel. Portanto ...que sejam felizes como desejo para o meu País...Ab,T.
Juvenal,
Passei agora de atravessado pelo que escrevi: - não ia mesmo porque está baralhado. NÃO É SEC XVIII, QUE TEM QUE VER COM BRASIL, RECONSTRUÇÃO DE LISBOA E DO PAÍS, MARQUÊS ETC. É SEC XIX.Neste sec é que "entramos dentro de África, nós e outros exploradores etc. A cretina partilha de África foi também nesse século com a "Reunião" em Berlim...sempre a Alemanha...
Só faço esta correcção.
Tocas bem num ponto: o antes e o depois do General Spinola (conheci-o em Brigadeiro e terminou, por mérito próprio em Marechal).
Adeus e um abraço,T.
É verdade, há várias guerras coloniais porque há diferentes colónias e há, como diz e bem o Torcato, uma guerra antes e depois de Spínola. Somos diferentes nós os portugueses e fomos diferentes, ao longo dos séculos, em função de várias necessidades e das modas da história. Se era preciso gente para os engenhos de açúcar havia que comprar escravos nas costas da Guiné. Esta parte também é verdadeira, apesar de amarga.
Um abração
Carvalho de Mampatá
Caro Amigo
Assino por baixo
Abraço
AMM
A questão do afecto entre o povo de Portugal e o povo da Guiné Bissau.
Há pequenas sementes que germinam e crescem sem nós se aperceber-mos.
Eu no meu caso soldado posto mais raso na tropa poucas hipóteses tinha de fazer valer a minha solidariedade.
Mas quando por qualquer motivo havia uma fresta aberta numa porta eu tentava a minha solidariedade, cito por exemplo A noite em que fiz de Carcereiro.
QUINTA-FEIRA, 11 DE DEZEMBRO DE 2008
Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite.
E a Frase que o meu ex-comandante de pelotão o ex-alferes miliciano José Augusto Rocha publicou no blogue em título de comentário sobre o Colaço.
José Augusto Rocha
Três dias antes, a 19, tinnha-me mandado o seguinte mail, de que reproduzo alguns excertos:
Estimado Luís Graça,
Obrigado pela sua mensagem e desde já refiro que tenho muito gosto em que fique com o meu mail, para eventuais outros contactos.
Sim, lembro-me bem do Jorge Cabral e do José Colaço. O Colaço é um bom amigo, talvez o companheiro de armas que mais me marcou na CÇAÇ 557. Se todos fossem como ele, não havia guerras ao cima da terra! Gostaria de ter o mail dele para o contactar. O que ele conta sobre a PIDE, é verdade, mas mais houve… e contei sempre com a solidariedade do magnífico companheiro que foi o hoje coronel, João Luis Ares.
Por mim, desde já pode dispor do meu singelo depoimento, se achar que reveste algum interesse para o seu blog.
Um abraço
Colaço.
Amigo Juvenal:
Na verdade pouco mais se poderá acrescentar. Fazes uma análise perfeita das caracteristas e das relaçoes entre os dois povos. Esta tua análise não me surpreende porque já me habituei a ler com muito agrado as tuas análises precisas e objectivas.
Um grande abraço
Francisco Baptista
É o chamado baú das recordações a funcionar em pleno. Boa análise. Gostei. É pena é que a boyada da politica não leia estas recordações porque sempre podiam aprender alguuma coisa. Mas temos, todos, cada um dentro das suas possibilidades e conhehecimentos, que continuar a escrever porque um dia, quando eles tiverem a nossa idade, talvez se venham a arrepender de não nos terem ligado nenhuma.
E depois queixem-se se o Pélissier vos chamar "nostálgicos"...
Aqui até se fala no "baú das recordações".
Cada texto é um apelo à nostalgia!
Um Ab.
António J. P. Costa
Caríssimo Juvenal
Embora tarde em relação ao momento de ter sido dado à estampa este teu escrito, não quero deixar de te dizer que me parece teres conseguido ilustrar bem a mistura de sentimentos com que a generalidade de nós (e aqui refiro-me aos que se interessam de forma séria pelo que se passa à nossa volta e não sofrem de ressabiamentos) "olha" para os tempos da sua 'experiência africana'.
Os "afectos" podem ser esses que referes e também podem ser o resultado da procura de referências da juventude.
No nosso caso concreto, da Guiné, por todas as circunstâncias que conhecemos e que repetidamente vamos falando, de o território ser pequeno de, por via disso, julgarmos conhecer tudo de todo o lado, acabamos por projectar sentimentos, quase sempre de "afectos", mesmo daqueles que, pelas suas razões, se declaram avessos a essas 'lamechices'.
"Gostei", como se faz no "Face".
Hélder S.
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