sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14307: (Ex)citações (263): Eu respondi à sondagem "4. Não, não mudei muito"... Mas acho que mudei, não sei se para melhor, se para pior (Hélder Sousa, ex-fur mil, trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72)

1. Comentário do nosso colaborador permanente Hélder Sousa, ao poste P14296 (*): 

 Caro Luís Graça e restantes camaradas

É claro que a passagem do tempo deixa as suas marcas. Todos nós mudámos fisionomicamente. Uns de forma mais acentuada, outros menos.

Para além dessa coisa irrefutável, acresce ainda que, de nós para os outros (e vice versa), se não houver contacto de proximidade que permita acompanhar a evolução haverá sempre mais dificuldade em reconhecimentos mútuos.

Isto, pelos aspectos físicos. Há também os aspectos psicológicos. Quanto a isso será mais prudente ser os outros a julgar. Costuma-se dizer que ninguém é bom juiz em causa própria. No entanto, também se disse e por aqui também dissemos, e eu concordo, que mudámos muito.

Chegava-se a África como meninos, mais ou menos crescidos, e rapidamente se transformavam em homens. Ora essa alegadas transformações, assim reconhecidas na generalidade, traduziram-se por reconhecidas mudanças 'de estado'. Psicológico? "De alma"? Comportamental?

Já não falo dos que foram directamente afectados pelos acontecimentos vividos, seja por ferimentos no corpo, seja pelo que se passou "ao lado", e temos muitos casos desses, alguns deles até já referidos aqui no blogue, que esses encontram-se muito mais enquadrados na tipificação dos casos enquadráveis no "stress pós-traumático", mesmo que não 'sejam praticantes'... Refiro-me à generalidade dos 'outros'.

Portanto, este aspecto, o da mudança psicológica, é de mais difícil resposta.


Guiné > Bissau > c. 1970/72 > O Hélder de Sousa, na avenida marginal,  junto ao cais. Foto do álbum de Hélder de Sousa, ex-fur mil de trms  TSF (Piche e Bissau, 1970/72), ribatejano, engenheiro técnico, residente em Setúbal, membro da Tabanca Grande desde abril de 2007 e nosso colaborador permanente.

Foto: © Hélder de Sousa (2007). Todos os direitos reservados

Cartaz do filme O Caçador (1978), do realizador
norte-americano Micael Cimino, com Robert
de Niro no principal papel.  Fonte: Wikipédia
 (com a devida vénia...) (***)
Eu acho que mudei. Mudei sim. Não sei se para melhor, se para pior. 

Quando regressei vinha ainda mais determinado a contribuir para a mudança da situação do poder vigente à data. Mas também havia uma grande contradição entre o que sentia e o ambiente geral, à grande bebedeira colectiva que me parecia haver.

Uma das formas mais notórias foi o silêncio quase total sobre o que se vivia, em meu entendimento, no pedaço de terra em guerra donde tinha vindo.

Alguns, mais empenhados, ainda procuravam saber para supostamente avaliar e 'teorizar' mas muitos
ficavam-se pela superficialidade, de meter nojo, de saber se 'tinha matado muitos pretos', 'se tinha feito muitos filhos'. Na realidade não queriam saber nada: tinham os seus preconceitos, metidos na cabeça pela propaganda governamental, um pouco à semelhança do que se passa agora com 'inevitabilidades', com aquela de 'os gregos (que gregos?) opuseram-se antes e agora também é bem feito que 'a gente' (cá está a colagem) lhes faça o mesmo', e no fundo só buscavam 'confirmações' para que a sua arquitectura mental não sofresse abalos...

Quantas e quantas vezes lhes respondi como o 'marine' do filme "O Caçador" na cena do bar na festa de despedida dos que iam para o Vietname....

Portanto, respondendo ao inquérito (já o fiz nos quadradinhos) (**),  acho que a resposta correcta e óbvia é, porque global,  "4.Não, não mudei muito", embora isso seja tudo relativo. (****)

Hélder Sousa
________________

Notas do editor:



(***) Um dos filmes de culto da guerra do Vietname. O filme ganhou 5 óscares em 1978: (i) Melhor Filme, (ii) Melhor Realizador, (iii) Melhor Actor Secundário (Christopher Walken), (iv) Melhor Montagem e (v) Melhor Som. Foi estreado em Potugal em outubro de 1979.

(...) "The Deer Hunter é um filme que nos fala de valores em desuso - a coragem, o companheirismo, o esforço, a amizade, a abnegação, a integridade - em tom de envolvente cumplicidade, sem sequer um fio de retórica, enquanto nos apresenta uma comunidade operária de origem eslava na vila de Clairton, Pensilvânia. É uma viagem à América profunda - à que produz riqueza e se integra num vasto esforço colectivo a partir de uma pequena comunidade. Não a América protestante de raiz anglo-saxónica, mas os verdadeiros Estados Unidos da América, nação enriquecida pela presença de imigrantes com o seu mosaico de crenças e culturas.

Poucos filmes como este, brindado com o rótulo de "reaccionário", nos mostraram de forma tão impressiva e convincente o quotidiano da classe trabalhadora. O Caçadorfoi também o filme que melhor soube mostrar - apenas três anos após a partida dos marines da Indochina - o absurdo da guerra do Vietname, bem ilustrado na metáfora da roleta russa, como corpo estranho e adverso ao incomparável sonho americano. Mike, Nick e Steven, os três amigos de infância que para lá partiram aureolados de heróis, regressam de modo muito diferente: a guerra marcou cada um deles de forma irremediável." (...)


Excerto reproduzido, com a devida vénia, do blogue Delito de Opinião >  Os filmes da minha vida (16)
por Pedro Correia, em 22.09.10.

6 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro Hélder, tens razão, somos "suspeitos": afinal, quem vemos quando nos vemos ao espelho...

Obrigado pelo teu depoimento e por trazeres à conversa o filme "O Caçador" que eu vi na altura, em finais de 1979, no circuito comercial, e me "perturbou" muito... Na época, ainda a Guiné andava "recalcada" mas sei que evitava ver "filmes de guerra"...

No filme há cenas, muito fortes, como o jogo da roleta russa, que ainda hoje estão bem gravadas na memória... Já a cena de despedida no bar, não me lembro..."

Escreves:

"Quantas e quantas vezes lhes respondi como o 'marine' do filme "O Caçador" na cena do bar na festa de despedida dos que iam para o Vietname"...

Ajuda-me a dizer a relembrar essa cena e o que diz o Roberto di Niro... Vou tentar rever o filme...

Anónimo disse...

Olá Camaradas ou Companheiros,

Não respondi nem vou responder ao inquérito, não sei como fazê-lo, mas ao ler este texto do Hélder achei por bem dizer que concordo na generalidade com o que ele escreve e esta pode também ser a minha resposta.

Ao Hélder agradeço ter-me facilitado a resposta, aos editores peço desculpa por não responder directamente como desejavam.

Para todos um abraço.
BS

Torcato Mendonca disse...

Olá Hélder,
Ainda pensei, depois de votar,em escrever algo.Quase uma justificação do voto feito. Deixei passar o tempo para ver os resultados.
Votei “ 1 – Sim,mudei muito! Digo-te porquê. Antes de ser militar fui estudante e, e nalguns intervalos fiz “diversos”. Caçado, sem esperar, pela tropa aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos e já mais na Guiné, o rapaz alegre e “bom-vivant” foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. Quando vim nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.Faria amanhã, 28 de Fevereiro,esse meu melhor Amigo, esse Homem que me deu o ser e muito saber. Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptsação correr- O meu mentor, o meu companheiro- amigo um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito. Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. Aguerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas. Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde ou falta dela a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrar normal na velhice. Seria assim? Talvez. Se fosse seria melhor ou pior?
Em nota de rodapé: O meu Velho serviu, como eu, no R A L 3 (ele RAL 1) em Évora, tenho aí fotos dele que já apareceram no Blog. Um ponto importante a minha entrada no Blog, o reviver, o desabafar, analisar, criar amigos etc. Este Blog é demasiado importante para os ex-combatentes. Longa conversa…para um dia…
Abraço, T

JD disse...

Caríssimo amigo,
Com a frontalidade e generosidade de argumentos das nossas trocas de impressões, ainda que auxiliadas por uns pontapés no cú, afirmo-te duas coisas:
1 - Tu estás pior, de certeza;
2 - Ainda bem, que é o resultado normal de uma evolução muna sociedade anormal.
Deixa-me acrescentar: vê com os teus olhos, continua inconformista e sem te zangares com amigos que pensem diferente.
Um grande abraço
JD

Anónimo disse...

Caro Hélder
Vieste mexer na minha memória, os sentimentos que vivi após o regresso.
Frases como : "este vem apanhado e nós agora é que o temos de aturar...
Não matam mas moem. O apoio só senti da familia.É por isso que me sinto tão bem, perto do pessoal da Guiné.
Um forte abraço,amigo Helder.
Jorge Rosales

Hélder Valério disse...

Caros amigos

Reparei que alguns dos vossos comentários foram recolocados em 'post' pelo que poderei comentar lá.

Em relação ao que pede o Luís, falta a bolinha vermelha mas a cena é mais ou menos, agora assim de cor, o seguinte: decorre uma festa de despedida (julgo que também de casamento de um deles) de um conjunto de jovens americanos, curiosamente oriundo de uma comunidade russa que, motivados pela exaltação 'patriótica' dos mobilizadores, aderem e dão corpo à iniciativa de se alistarem e incorporarem em breve alguma das forças de combate no esforço militar americano na guerra do Vietnam. No meio da euforia e da alegria geral chega um 'marine' que passa rapidamente e de forma despercebida pelo salão da festa e vai para o balcão do bar onde alguns desses jovens lhe vão fazer perguntas interessadas, evidentemente, mas perpassadas dos (pre)conceitos que os levaram a alistarem-se, querendo saber, "como é", se é "fácil", se 'aquilo' é 'rápido', etc, etc, e ele, de modo quase ausente e desinteressado 'esclarece-os' apenas com um "fuck you". Assim, seco.
A personagem interpretada pelo Robert de Niro ainda esboça uma tentativa de reacção mais ofensiva mas parece ter ficado a reflectir sobre o que realmente poderia significar aquela "não-resposta".

Abraço
Hélder S.