quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15354: Manuscrito(s) (Luís Graça) (69): De Lisboa, para ti, Luanda, com um 'kandandu', 40 anos depois da 'dipanda'

De Lisboa, para ti, Luanda, com um kandandu

por Luís Graça



Fui revisitar, para os amigos, e a pretexto da "dipanda" [independência], de Angola,  há 40 anos,   um poema  meu, datado, escrito na ilha de Luanda, em julho de 2004. Tinha conhecido Luanda (mal e pela primeira vez,) nove meses antes.  

O poema tinha por título "Luanda (re)visitada"... Agora revisto,  vale pelo afeto  e pela amizade que nos une, aos dois povos. Simbolicamente, dedico esta versão (revista) a duas pessoas que me são queridas: 

(i) ao meu amigo angolano Raul Feio., que fez o curso de medicina em Portugal e que conheceu a prisão de Caxias, no final do Estado Novo,  pelo único crime de amar a sua terra; e (ii) a minha amiga Helena Rolim., corajosa empresária portuguesa, que vive e trabalha a maior parte do tempo em Luanda. 

Eles dão-me a honra de serem meus amigos e, sem ainda se conhecerem pessoalmente,  fazem muito bem a ponte Portugal-Angola e Angola-Portugal. Cada um no seu campo de atividade, que num caso como no noutro está ligado à saúde. Espero um dia poder juntá-los... Em todo o caso, se a minha pátria é a minha língua, também eu também sou angolano. (LG)


Não vi flores,
não vi acácias vermelhas,
dessas rubras acácias de Benguela,
no teu imenso musseque.

Não vi o esplendor tão celebrado da tua baía,
nem da tua baixa colonial,
nem senti o sortilégio da tua ilha dos amores,
ó cidade de Luanda, outrora tão bela,

dizia o cronista social dos "bons velhos tempos",
que a beleza também engana e fenece,
mesmo se a gente a memoriza 
e nunca a esquece.

Porém, no teu rosto (re)visitado pelas rugas velhas
da guerra, da pobreza e da malária,
descobri diamantes em estado puro
no teu olhar de criança,
perdida em viagem imaginária.

De modo nenhum te quereria (nem te sonhava)
em postal ilustrado, decadente e saudosista,
com carimbo de correio pós-colonial:
a restinga do Mussulo ao pôr-do-sol,
a laguna,  
o mangal,  a marginal,
e o estúpido turista em férias,
no Coconuts, na ilha, elitista,
ou na piscina do Hotel Tropical!

Não li sequer os grafitos do FMI,
gravados a duro pau de giz
nos muros dos palácios da Cidade Alta,
proclamando urbi et orbi
que doravante toda a malta,
do mais velho ao petiz,
iria ser rica e feliz!

Há muito que os kaluandas tinham partido,
deixando atrás de si,
com um misto de saudade e de glória,
o calor húmido e fraterno da grande nação crioula,
mais os imbondeiros que haviam resistido
à seca, à fome, ao inferno,
ao lixo, à sida, à história.

O cheiro fétido do humano
viajava nos candongueiros
que atravessavam de lés a lés
a tua rede de túneis-formigueiros,
as tuas entranhas,  
o teu tutano, a tua essência.


Alguém do hemisfério norte, 
gente sempre mais precavida, 
poderia achar essas correrias loucas,
se não soubesse quem tu eras, 
nem a tua resiliência,
mas tu tinhas o teu devido tempo e
 a tua exata medida,
ó cidade das mulheres empreendedoras,
peritas na arte da sobrevivência.

Um enorme exército de formigas obreiras,
com os jerricãs de plástico à cabeça,
levava o fio da água da vida,
tão preciosa quanto parca,
ao teu ventre de Jocasta,
mãe África, mãe de kixikila,
zungueiramatriarca,
moça reguila, parideira,
quitandeirakinguila.

Na praia dos pescadores
havia meninos, brancos e pretos,
pé descalço e calças rotas,
a chutar a bola às balizas da sorte.

Poderiam não vir a ser uns senhores,
e sorrir como o Mantorras,
o menino de ouro do Benfica,
o rosto então espalhado em outdoors pela cidade,
mas contariam, decerto, aos seus netos
como haviam sabido fintar a morte
desde a mais tenra idade.

Mãe África, 
mãe coragem,
para quem pouco te bastava,
mesmo se tu muito querias
daquilo a que tinhas pleno direito:
cidade revis(i)tada,
sem mapa 
nem roteiro, nem preconceito,
apenas com afeto.

Tomei boa nota desse lugar de passagem,
nessa já distante viagem:
um litro de gasolina,  imagina!,
custava então tanto quanto um pão, vinte kwanzas.

Prometi dizer em Lisboa, 
se tu mo consentisses,
que o melhor de ti, Luanda, 
terra quente,
era a tua gente,
gente boa, fazendo das fraquezas esperanças,
e a quem eu mandava chicorações  
e jindandu:
as tuas infatigáveis mulheres,
os teus jovens rappers e gingões,
as tuas ternas, eternas, alegres crianças.


Luanda, ilha de Luanda | Lisboa
julho de 2004 (*)
revisto, 11 mai 2023
____________________

Notas do autor:

(*) Glossário de termos do falar local [ L.G. - jul 2004]:

Conheço Luanda (não Angola) apenas desde setembro de 2003. E conheço mal, para ser masi honesti... Seria presunção minha dizer que conheço, só porque lá estive meia dúzia de vezes, se tanto... A sua dinâmica demográfica, social e económica refeflete-se também na língua (ou nas línguas)...

Candongueiros > Os endiabrados táxis colectivos de Luanda. Param um qualquer sítio e levam sempre mais um passageiro para além da sua lotação máxima. Cada viagem custa(va) 30 kwanzas. O termo vem de candonga (contrabando). Inicialmente, ao que parece, tratava-se apenas de contrabando... de peixe seco.  Muito mais tarde, o termo candongueiro passa a designar os contrabandistas de diamantes e,  mais recentemente, os novos taxistas luandenses do chamado "processo dos 500", sem alvará...

Imbondeiro > Também conhecido por n´bondo (Adansonia digitata, Lin.):

Kaluanda (ou calunand) > Nome antigo, colonial, dado ao habitante de Luanda, e que hoje já se usa...

Kandandu  (ou candando)> Abraço (plural: Jindandu). Ver outras expressões usadas nas saudações em kimbundu ou quimbundo.

Kimbundu  (ou quimbundo)> Considerado o maior grupo etnolinguístico de Angola (c. 25% da população na costa oeste e no norte), a seguir ao ovimbundu (c. 37%, a sul), mas à frente do bakongo (13%) (Estas são as três principais línguas de Angola, todas elas pertencentes ao grupo bantu).

A língua oficial é, como se sabe, o português. No Ciberdúvidas da Língua Portuguesa há uma interessantíssima nota de Rui Ramos sobre as relações nem sempre fáceis entre o português (colonial, dominante, a língua do poder) e o kimbundu (ou quimbundo, o falar das gentes de Luanda-Malanje). Termos usados hoje pelos nossos jovens, como cota (dikota, pessoa mais velha) são provenientes do kimbundu.

Sobre as questões de grafia (kimbundu ou quimbundo), ver igualmente a resposta do angolano Rui Ramos, especialista em línguas africanas, no mesmo sítio. Não se deve confundir, no entanto, o kimbundu com o calão de Luanda (caso de bué, e outras expressões que se ouvem na noite lisboeta).

Kinguila (ou quinguila) > Rapariga ou mulher que, no mercado paralelo, se dedica ao câmbio de moeda. Em geral, os maços de kwanzas e de dólares são guardados nos seios. Este negócio era tradicionalmente dos zairotas, habitantes do Zaire. Segundo li no portal Netangola, numa página com preciosas dicas para os homens de negócios estrangeiros em visita a Luanda, "one can often find in the streets of the city the typical Kinguila - the seller of money - who normally offers the best quotation. This practice is forbidden by the authorities and offers some risks".

Kixikila > Em kimbundu, quer dizer contribuição, em dinheiro, para um dado fim coletivo. Em África, em geral, e em Angola, em particular, é aquilo que se designa pela expressão inglesa Rotating Savings and Credit Associations (ROSCA), um sistema informal de poupança e crédito, um grupo de ajuda mútua, liderado em geral por uma mulher, a "mãe de kixikila". O pequeno grupo, de cinco a dez elementos, tende a ser constituído por pessoas que estão ligadas entre si por laços de amizade, parentesco, vizinhança, confissão religiosa  ou profissão. Cada elemento faz periodicamente uma determinada contribuição para um fundo comum que é depois utilizado rotativamente por cada um, com uma taxa de juro nula ou de valor reduzido.

Na ausência de sistemas de crédito bancário acessíveis à generalidade da população, o kixikila voltou aos hábitos dos luandenses como forma de atenuar ou reduzir o impacto da pobreza. O kixikila está hoje [2004]vulgarizado, não só entre as vendedeiras, quitandandeiras e kinguilas, mas também nos serviços públicos e nas empresas (vd. Neto, S. - Kixikila não é uma lotaria. Economia & Mercado. 19, maio-junho de 2004, pp. 40-42). Vd. também: Ducados, H.L.; Ferreira, M.E. (1998) - O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola : a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda). Lisboa: CESA - Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento. Instituto Superior de Economia e Gestão. Universidade Técnica de Lisboa. 1998 (Documentos de Trabalho, 53).

Kwanza (ou cuanza)> Moeda local, dividida em 100 cêntimos. 1 dólar equivalia a c. 85 kwanzas [em julho de 2004]. O cacete (tipo de pão) custava cerca de 20 kwanzas. Consultar também o sítio oficial da República de Angola.

Musseques > Bairros populares degradados de Luanda, fora da perímetro urbano de cimento e alcatrão...

Quitandeira > Vendedora de rua (ou de mercado), em geral de produtos hortofrutícolas. Vem de quitanda, um termo kimbundu que significa expor (determinados produtos para venda), e, por extensão, feira ou mercado. Há um belíssimo poema de Agostinho Neto sobre a quitandeira, que vem no seu livro Sagrada Esperança (1974): "A quitanda. Muito sol /e a quitandeira à sombra / da mulemba. /- Laranja, minha senhora, /laranjinha boa!"...

Zungueira > Vendedor ambulante, uma figura típica da economia paralela de Luanda. Em geral é do sexo feminino, mas também há cada mais jovens e crianças do sexo masculino. Estima-se que 70% da população de Luanda, em idade activa, seja zungueira. Ninguém sabe ao certo qual é a população actual da cidade e periferia: estima-se que possa chegar aos 4/5 milhões (a maior parte tenmdo origem nos deslocados de guerra), ou seja, mais de 1/4 da população angolana actual [, que é hoje, em 11/11/2015, estimada em 24 milhões,  40 anos depois da 'dipanda'). Zungueira vem do verbo zunguar (andar para cima e para baixo, circular tentando vender alguma coisa).

As zungueiras abastecem-se em mercados como o Roque Santeiro ou o Kikolo, onde não é aconselhável, por razões de segurança, a visita do turista estrangeiro. [Julgo que estes mercados entretanto desapareceram, 10 anos é muito ano na vida de uma jovem nação, que já nessa época e nos anos a seguir, e até a crise financeira internacional, Angola conhecia  um certo "boom" económico, ligado à alta do petróleo].

 Considerando a sua densidade populacional e o drama do seu quotidiano, Luanda era, então, e apesar de tudo,  uma cidade com uma baixa taxa de criminalidade. Sobre o comércio informal, a figura da zungueira e a arte de sobreviver em Luanda, veja-se uma excelente reportagem assinada pelo jornalista e sociólogo Paulo de Carvalho (paulodecarvalho@sociologist.com), na revista Economia & Mercado, nº  19, maio-junho de 2004, pp. 34-39.

PS - Entretanto,  muita coisa está a mudar... A última vez que lá fui, foi há dois anos...
____________

Nota do editor:

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

Faz agora 40 anos a independência de Angola, Novembro de 1975
A Guiné é mais velha um ano que Angola sem JUGO colonial português, Setembro de 1974.

Luís estava ler a tua poesia, que tens uma facilidade e imaginação admirável para tal, e ao relembrar-me daqueles termos angolanos que já me vou esquecendo, lembrei-me de Luandino Vieira e dos brancos que por lá andámos.

Ele escrevia numa espécie de crioulo, «angolês» em que aplicava esses termos dos musseques, mas com tanta intensidade ou mais do que os próprios jovens dos musseques, com quem brincou e viveu em criança e jovem.

Penso que ele pouco mais escreve, e também penso que para os angolanos actuais, a sua pessoa diz muito a pouco.

Luís ouvi hoje na TV um escritor a explicar que há uma certa xenofobia pelos jovens angolanos universitários, contra os portugueses que vão para Luanda roubar-lhe os empregos.

Parece mesmo que só com chineses é que África lá vai!

Com Retornados ainda se dava um jeito mas já estamos velhos.

Cumprimentos.

Luís Graça disse...

Com a devida chapelada ao génio de Fernando Pessoa e à oportunidade da reprodução deste excerto no Ciberdúvidas da língua portuguesa:

Ciberdúvidas da língua portuguesa | Antologia:

https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/minha-patria-e-a-lingua-portuguesa/2657


28 de janeiro de 2013

Minha pátria é a língua portuguesa

Por Bernardo Soares

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. [...]

Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.

Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Fonte

In Livro do Desassossego, fr. 259 (Texto publicado originalmente em "Descobrimento", revista de Cultura n.º 3, 1931, pp. 409-410, transcrito do "Livro do Desassossego", por Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa), numa recolha de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; ed. de Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982 vol. I, p. 16-17. Respeitou-se a ortografia da época de Fernando Pessoa.


Sobre o autor:

Bernardo Soares é um semi-heterónimo de Fernando Pessoa, autor do Livro do Desassossego, uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX. Há aspectos “biográficos” que o aproximam de Pessoa: é ajudante de guarda livros em Lisboa e trabalha em escritórios modestos na baixa pombalina.

Anónimo disse...



Amigo Luís:

Um belo poema com um registo muito pessoal, realista à tua maneira, feito de inteligência e alma.
Hoje finalmente vou às bruxas a Montalegre,a minha mulher que é fada ou feiticeira diz que já não tem medo das outras. Se quiseres algumas ervas milagrosas é só dizeres.
Um abraço. Francisco Baptista