1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2019:
Queridos amigos,
Depois de um quadro expositivo, marcadamente teórico sobre a evolução do racismo, caraterização e manifestações, era altura de entrar declaradamente na apreciação do colonialismo português. Charles Ralph Boxer (1904-2000) publicou este livro em 1969, caiu nos governantes do Estado Novo como uma bomba. Só não lhe chamaram comunista porque ele era visceralmente conservador. Era professor no King's College em Londres, Doutor Honoris causa em Utrecht e Lisboa, agraciado com a Ordem de Santiago de Espada. Ora Boxer ia desmontar, na sequência de outros trabalhos já publicados nessa década, a falácia do Portugal multirracial e luso-tropical, revelou, com documentação sólida na mão que o colonialismo português era categoricamente discriminador e com práticas raciais indesmentíveis, desde os primeiros séculos do império, como se verá também no texto seguinte.
Um abraço do
Mário
A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (5)
Beja Santos
Charles Boxer |
Em termos historiográficos, como salienta Ramada Curto, é de leitura indispensável. Boxer distanciara-se das teses de António Sérgio e de Jaime Cortesão, para quem a formação de Portugal estaria nas atividades marítimas, enfatizando que o Portugal medieval era uma sociedade cuja estratificação social e base económica eram determinadas pela agricultura, as atividades marítimas eram fragmentárias e intermitentes, a dinâmica da marinha comercial situa-se no fim do século XIV. Boxer irá sugerir um outro feixe de razões económicas para a expansão portuguesa, e detalha-as neste livro. É uma longa viagem, redigida numa escrita vibrante e acessível como só os grandes mestres possuem o dom, percorrer-se-á todo o Império Português desde a cristandade medieval, disseca-se o projeto henriquino, o ouro da Mina e a demanda do Preste João, a longa exploração em torno do litoral da costa africana, depois o fundamento do império militar no Oriente e a constituição da rota das especiarias nos mares da Ásia, a evangelização dos locais do Oriente onde se fixaram os portugueses, depois os escravos e o açúcar do Atlântico Sul, entre os séculos XVI e XVII, os renhidos combates contra os holandeses; depara-se-nos, entre os séculos XVII e XVIII o refluxo do I Império, dá-se a contração no Oriente, assiste-se nesse mesmo período a um renascimento económico de Portugal e do seu império ultramarino graças ao Brasil, não já o açúcar mas o ouro e as pedras preciosas; dar-se-á nota da carreira da Índia e das frotas do Brasil, em simultâneo disseca-se o que foi o Padroado da Coroa e as missões católicas, e é então que se chega à matéria mais explosiva que o autor designa por “pureza de sangue” e “raças infectas”.
E logo o primeiro período ameaça tempestade:
“Não faltam eminentes autoridades contemporâneas que afirmem que os Portugueses nunca tiveram quaisquer preconceitos raciais dignos de menção. O que essas autoridades não explicam é a razão pela qual, nesse caso, os Portugueses, durante séculos, puseram uma tal tónica no conceito de ‘limpeza’ ou ‘pureza de sangue’ não apenas de um ponto de vista classista mas também de um ponto de vista racial, nem a razão por que expressões como ‘raças infectas’ se encontram com tanta frequência em documentos oficiais e na correspondência privada até ao último quartel do século XVIII”.
E logo adianta que os cristãos-novos e os escravos negros não eram os únicos indivíduos em relação aos quais se fazia discriminação, nem todos os católicos apostólicos romanos eram, de modo algum, elegíveis para os cargos oficiais.
A abordagem não pode ser linear, tem matizes de complexidade, e Boxer dá exemplos que disparam em várias direções. Um congolês educado em Lisboa foi nomeado bispo titular de Útica em 1518. Um breve papal desse mesmo ano autorizava o capelão real de Lisboa a ordenar “etíopes, indianos e africanos” que pudessem ter atingido os padrões morais e educacionais exigidos para o sacerdócio. Em 1541, o Vigário-Geral de Goa convenceu as autoridades civis eclesiásticas a patrocinarem a fundação de um seminário para a educação e treino religioso de jovens asiáticos e africanos orientais, os jesuítas assenhorearam-se da instituição e associaram-na ao seu Colégio de São Paulo. Mas muitos religiosos eram céticos à experiência multirracial. São Francisco Xavier advogava a ideia de que noviços indianos não deviam ser admitidos na Companhia de Jesus. Boxer observa o desdenhoso desprezo manifestado pelos leigos portugueses face aos padres indianos e euroasiáticos.
E quando se fala em complexidade, tendo havido apenas um indiano que foi ordenado padre da Companhia de Jesus, tendo mesmo o grande reorganizador das missões jesuítas na Ásia, Alexandre Valignano, aberto uma exceção em favor da admissão de japoneses ao sacerdócio, alargando-a aos indochineses e coreanos, opôs-se determinantemente à admissão de indianos na Companhia de Jesus, e escreveu mesmo: “Tanto porque todas as raças escuras são muito estúpidas e viciosas, e espiritualmente do mais baixo nível que é possível, como também porque os portugueses as tratam com o maior dos desprezos, e ainda porque entre os habitantes da região são menos estimados do que os portugueses”. Mais tarde ou mais cedo, diz Boxer, todas as ordens religiosas que trabalhavam sob a alçada do padroado asiático adotaram o precedente estabelecido pelos Jesuítas.
Complexidade, os portugueses compreenderam que não podiam destruir o antiquíssimo sistema de castas hindu, teriam de viver em harmonia com ele: com os brâmanes, ou classe sacerdotal; os xátrias, ou classe militar; os vaixiás, de que faziam parte mercadores e camponeses; e os sudras, ou lacaios e servos. Tudo Boxer descreve minuciosamente, e com documentos na mão.
Referindo-se a África Ocidental, dirá que aqui predominou uma atitude muito mais liberal, tendo sido ordenados alguns congoleses educados em Lisboa logo no reinado de D. Manuel, precedente que foi seguido sucessivamente nas ilhas de Cabo Verde, em S. Tomé, e, depois de considerável hesitação, em Angola. E no Brasil nunca se pôs sequer o problema de ordenar ameríndios puros.
Como se irá ver seguidamente.
(continua)
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Nota do editor
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