1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2019:
Queridos amigos,
Conclui-se a viagem de Tiago Veiga em terras guineenses. Curou-se do paludismo, acompanhou a missão da doença do sono até ao chão dos Felupes, deu-lhe asas à imaginação aquele povo e atirou-se a uma empreitada colossal, um canto heroico com reminiscências bíblicas, homéricas e talvez poemas mesopotâmicos, tudo em torno da criação do mundo até ao desfecho, bem clássico, da morte gloriosa do guerreiro.
Como tudo é fantasia, como Tiago Veiga não existiu e nunca se escreveu o Canto Felupe, diz o autor que restam uns versos dessa passagem por terras da Guiné.
E, de seguida, vamos para a última arremetida de Mário Cláudio na atmosfera guineense, pelo menos até agora.
Um abraço do
Mário
Mário Cláudio |
Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária:
Um notável escritor que é nosso camarada da Guiné (3)
Beja Santos
Em “Tiago Veiga, uma biografia”, Publicações D. Quixote, 2011, Mário Cláudio arquiteta, em completa fantasia, o percurso de um pretenso bisneto de Camilo Castelo Branco que calcorreou Ceca e Meca e olivais de Santarém, conheceu meio mundo, em sucessivas gerações. Inventa-se mesmo um crítico que sobre ele dirá:
“De facto, o que sabemos da biografia cultural de Tiago Veiga, dos interesses da sua inteligência e da formação do seu gosto, tem pontos de contato com o perfil e o trajeto de Fernando Pessoa e das suas tão variadas relações literárias […] No mentor da geração de Orpheu, conheceu Tiago Veiga o escritor que em Portugal corresponde a T. S. Eliot e que com este partilhava, entre o mais, a conceção intelectualista do processo de criação literária […] Faz sentido, em verdade, a atração que pela figura autoral e textual de Tiago Veiga sente Mário Cláudio”.
É nesta pura fantasia que Tiago Veiga arriba em abril de 1932 à colónia da Guiné, vai desportivamente numa equipa habilitada para estudar a doença do sono, e é neste entremez que fica palúdico.
Como se escreve:
“Logo a seguir sofreria Tiago Veiga uma forte investida de paludismo, experiência que retém não pouco do rito iniciático, e sem a qual se não realiza a completa aderência à africanidade. Atirado para a sua tarimba, o nosso poeta foi atravessando as intercadências de calor e frio, e feitos da febre quartã, as irregulares diarreias, e as variações respiratórias, tudo o que de súbito o tornava ansioso pelo cautério da morte, ou esperançado na exaltação da vida”.
Como o leitor recordará, entrou na vida de Tiago Veiga um pequerrucho, Baltasar, que não despegava da companhia daquele branco, “e fixava aqueles olhitos húmidos no homem que, arrendando com asco os lençóis, ou embrulhando-se avidamente neles, soprava e tiritava, estremecia e quedava-se imóvel”. Não há mal que sempre dure e “Na manhã em que recuperou a consciência viu Baltasar, sentado no chão da tenda, brincando com um sapo, coisa que simultaneamente lhe pareceu como execrável abominação, e sinal tranquilizador”. Um ajudante de Fontoura de Sequeira, o chefe da missão, explicou a Tiago Veiga a mezinha que o trouxera à vida: “foi o cozimento de folhas de quinquilibá que a avó do Baltasarzinho o obrigou a beber”.
Tiago Veiga irá embrenhar-se na cultura dos Felupes, cita-se um chefe do posto de Susana, António da Cunha Taborda, que os estudou em meados do século XX. “A recusa a cruzar-se com qualquer outra etnia, e bem assim a sua relutância a sair da área que, havia milhares de anos, lhes servia de solo, explicaria a ausência de indivíduos Felupes fora da sua região. Da independência de que dava mostras o povo Felupe, resulta que ‘só a força tinha conseguido impor-se-lhe, por vezes, tendo de vencer resistências teimosas e encarniçadas’”. Tiago Veiga chega a Varela e “Lançou os olhos àqueles homens altivos, e relapsos a conversas, e àquelas mulheres que sorriam sempre, mas que pareciam fazê-lo por estratégia de defesa de um segredo ancestral”. Sem nada que fazer no trabalho da missão conduzida por Fontoura de Sequeira, o poeta deu asas à sua imaginação e começou a escrever o seu Canto Felupe, uma espécie de epopeia de um povo sem registo literário. Familiarizou-se com a gente da região de Varela, estudou a figura do feiticeiro ou jambacós que o ajudou a esquematizar o poema, alinhou um conjunto de pontos em que se propunha tratar a marcha da existência humana e onde intervinham vários heróis, tudo começaria com a criação do mundo, a que se sucederia o dilúvio, com vários humanos de valor excecional, haveria mesmo casamento e morte, uma tragédia de arromba, com motivos bíblicos, outros que parecem tirados da Canção de Rolando, isto para já não falar na Ilíada e no teatro grego: guerreiros, danças rituais, jogos de sentido mágico, o cerimonial da circuncisão, enfim, Tiago Veiga versava entusiasmado, e apercebendo-se que a brigada estava de regresso à metrópole, meteu empenho para ficar mais uns tempos em Chão Felupe. Mergulhara na cultura africana mas sem desdenhar da matriz greco-latina, e daí o seu versejar meter tanto um Deus da Criação como uma estátua de Zeus da Olímpia.
Segundo o seu biógrafo, restam duzentos e trinta versos deste Canto Felupe, era um projeto imenso que se desdobrava em doze “Cantos”. O biógrafo dá explicação para esta organização poética, seria resultado do ataque palúdico, das beberragens ingeridas, pois tomara casca de bissilão. E o biógrafo desvela alguns versos do Canto VI e a seguir dá-nos conta que o poeta regressou em abril de 1933 a Lisboa, arrumada a bagagem no Hotel Bragança, desembocou numa tasca do Bairro Alto onde conheceu o poeta Carlos Queirós. Tomou conhecimento que Salazar proclamava a sua intenção de presidir ao primeiro governo constitucional, apercebeu-se que muita gente queria fazer chalaça com ele, perguntavam-lhe, caçoando, se tinha morto muitos elefantes lá na Guiné. O poeta não gostou. E depois tudo muda de agulha, parte para Londres, foi na companhia de António Ferro a uma certa conferência, Tiago Veiga divertiu-se à grande, a visita à National Gallery foi um deslumbramento.
Pingarão, ao longo destas oitocentas páginas, ainda algumas referências à Guiné, mas de pouco significado.
Falta-nos agora o último texto, ao que parece muitíssimo controverso, sobre o nefando Capitão Robles, na obra "Para o Livro de Oiro do Capitão Garcez".
(continua)
____________
Notas do editor
Poste anterior de 18 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20361: Notas de leitura (1237): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (2): “Tiago Veiga”; Publicações Dom Quixote, 2011 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 23 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20374: Notas de leitura (1239): "Um ranger na guerra colonial"..., de José Saúde, Edições Colibri, Lisboa, 2019. Prefácio de Luís Graça
Sem comentários:
Enviar um comentário