segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20409: Notas de leitura (1242): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (4): “O Prazer da Leitura”; Teorema e FNAC, 2008 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
Consta que esta peça literária de Mário Cláudio terá dado polvorosa uns tempos atrás. Acontece que em todas as guerras há manifestações de horror, de práticas homicidas e até da sua exibição, servem para intimidar, de forma exemplar, outros desafiantes, revelam igualmente exibicionismo de quem entendeu que a crueldade ilimitada deve aparecer em ecrã gigante. É pesadelo universal, com mentiras de todas as espécies, basta pensar no genocídio arménio, negado pela Turquia, ou nos crimes japoneses, para os quais ainda não se pediu perdão.
O que Mário Cláudio revela aqui é a duplicidade de certo heroísmo, que é galardoado e posto em paralelo com aquele heroísmo de quem deu o peito às balas ou transportou, com destemor, um camarada ferido, no aceso de uma emboscada. O que aqui também se esconjura, estou em crer, é premiar o homicídio como se de heroísmo se tratasse. Impossível reabilitar, na sua plenitude, o heroísmo praticado nas nossas últimas guerras em África, sem trazer à colação os quadros de horror, que os houve.
O que me é dado ler, na documentação que consulto, do que se viveu a partir do segundo semestre de 1962, na Guiné, as monstruosidades praticadas de parte a parte precisam de ser reparadas, mostradas em ambas as histórias nacionais, para que haja entendimento que propicie a reconciliação e a retoma fraterna, sem cadáveres no armário, entre dois povos que se devem reconciliar falando a verdade e perdoarem-se.

Um abraço do
Mário



Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária:
Um notável escritor que é nosso camarada da Guiné (4)

Beja Santos

“O Prazer da Leitura”, foi editado em 2008 pela Teorema e pela FNAC, uma obra coletiva, além de Mário Cláudio participaram Francisco José Viegas, João Aguiar, Lídia Jorge, Luísa Costa Gomes, Manuel Jorge Marmelo, Maria Teresa Horta, Filipa Melo, Nuno Júdice e Rui Zink.
Pelo que me é dado saber, foi a primeira digressão de Mário Cláudio pelos teatros da guerra, escolheu o território do horror, da truculência, do poder arbitrário de despedaçar vidas. Não é terreno virgem. Para quem viu o filme “Apocalypse Now”, realizado por Francis Ford Coppola, nele surge um herói sanguinário, de que as Forças Armadas norte-americanas se querem libertar, magistralmente desempenhado por Marlon Brando. Acontece que a trama da história tem por detrás uma obra-prima de Joseph Conrad, “O Coração das Trevas”.

Mário Cláudio não escolhe a Guiné, fala em embondeiros, a Guiné tem algo de similar, são os poilões. O seu conto intitula-se “Para o Livro de Ouro do Capitão Garcez”, é um jogo entre o lugar e o tempo, um jogo entre o surreal, pois o escritor apresenta uma grande bandeja de cabeça de guerrilheiros ao Capitão Garcez, salta-se desse lugar para a visita a um bancário aposentado, ele conversa com o escritor, irá falar do Capitão Garcez, mostra-lhe lembranças, estão numa caixa de cartão, são fotografias de várias dimensões, o Capitão Garcez é facilmente identificável pelas orelhas de abano, de calções de caqui, entre dois camaradas. Garcez e o entrevistado estão na mesma fotografia. Garcez teve a projeção de um herói, as suas façanhas terão sido descritas em muitos aerogramas, seguramente que muitos desapareceram, é bem difusa a recordação deste herói tenebroso.
E Mário Cláudio escreve:
“Continuo a observar a foto dos idos da campanha, não tanto porque dela espere obter mais do que aquilo que deduzi já, o apagado fácies do Capitão Garcez, alferes na altura, debaixo do cabelo liso e ruço claro, e na palidez que o distingue dos companheiros. Vou meditando no que o meu informador depreende do jogo fisionómico que lhe proponho, tão relevante para ele como o dele para mim, e de idêntica forma à mercê de suspeitas e traições. Apercebe-se da curiosidade com que lhe persigo o desvio da vista, e da minúcia com que lhe inventario os bibelots expostos na biblioteca, babushkas alinhadas em progressão aritmética, e miniaturas de teares e caldeiras, óbvios momentos das peregrinações a Leste, promovidas pelo partido da esquerda bem-comportada de que foi militante. E não deixará de reparar ainda no modo como lhe expio o gesto de selecção dos clichês da caixinha (…). Desde a escuridão para além da vidraça, e o clarão da lâmpada denuncia com acrescida clareza quanto guardamos, ele e eu, nas algibeiras mais secretas das intenções que nos movem”.

E o texto continua:
“A peça televisiva, sobrevivente num preto e branco que as décadas foram zurzindo, oferece a deslocação lenta, um pouco rígida, do Capitão Garcez, subindo os degraus da tribuna no Terreiro do Paço, erguida para as comemorações do 10 de Junho. Transporta o rosto anódino de sempre, indeciso entre a melancolia e a austeridade, o que redunda na absoluta ausência de emoções. Avança para o Presidente do Conselho que lhe impõe a Torre e Espada, e que o abraça com a finura sinuosa de quem restringiu a paixão a um cálice, um cálice apenas, de porto tawny”.
Quem foi entrevistar é o autor e o que ele regista daqueles clichês é a dor de quem perdeu gente amada, é um espetáculo de sangue que se derramou com muita gente degolada e muitos corpos estraçalhados. No jogo do tempo e do lugar, o Capitão Garcez presta a justificação de que os atos praticados decorriam da guerra, se acaso celebrou a morte, não tem contas a prestar nem ao autor nem a qualquer cobardolas de merda. Prossegue esta marcha labiríntica entre o lugar e o tempo, alguém que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas mandou ao autor uma mensagem sobre o mito, ele era detestado, toda a gente fugia a confraternizar com aquele militar de gestos homicidas, as imagens que ficaram das cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, eram um aviso de solene advertência aos rebeldes de que não eram menos mortais do que aqueles que os combatiam.

O autor está agora no seu espaço, escrevinha, enfrentou o rosto do Capitão Garcez, apresenta-se restituído à amenidade do seu lugar, e disso nos dá conta:
“Junto a mim pousa a grande jarra de gerberas, arauta da Primavera que desponta, a projetar aquele macerado amarelo, tão caraterístico dos que retornam dos trópicos. A verdade é que, há muito, muito tempo, me não assalta o organismo de pretérito miliciano essa coloração dos surtos palúdicos, precipitando-me em convulsos pesadelos, atrelados a outros experimentados já. Serenamente afastaram-se de mim aqueles transes inexplicáveis, vividos por um soldado sonâmbulo que devagar conduz o Unimog através da povoação em labaredas, cruzada pelo balido das cabras espavoridas, e pelo guincho das fêmeas e crianças que ardem numa habitação esbarrondada. Apagado pela ventania que espanta o incêndio, o rosto do Capitão cristaliza em mim numa neutralidade de cera, de órbitas vazadas, tão frágil e tão efémero como a paisagem que o circunda”.
E neste jogo entre o real e o surreal, tudo culmina com o desaparecimento do vetusto Capitão Garcez, “levanta-se da poltrona, e as imensas asas negras, rompendo-lhe das espáduas, batem numa vibração, desplumam-se na treva, e desfazem-se em pó”.

A literatura tem fartas apresentações do horror que a guerra permite, há a sua banalidade, como Curzio Malaparte descreve na sua obra-prima, “Kaputt”, caso de um passeio noturno de Hans Frank, o Governador da Polónia nomeado por Hitler, num passeio a um gueto, a comitiva anda divertida com os tiros dados às crianças pelas forças de vigilância. E há a investigação histórica, como é o caso de “O massacre português de Wiriamu: Moçambique, 1972”, de Mustafah Dhada, acaba-se com a mentira montada no final do Estado Novo de que nada tinha acontecido, ouve-se o depoimento compungido de um antigo oficial dos Comandos que descreve o morticínio.
Não vale a pena os escrivães da puridade virem bater com a mão no peito, encolerizados por se desvelarem horrores da guerra, que os houve, do mesmo modo que houve atos de bravura daqueles que combateram heroicamente, e que tiveram de matar sem praticar o horror e muito menos de o exibir, como comprovam muitas fotografias que para aí circulam.
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Nota do editor

Poste anterior de 25 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20381: Notas de leitura (1240): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (3): “Tiago Veiga”; Publicações Dom Quixote, 2011 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20395: Notas de leitura (1241): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (34) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Um capitão Garcês inventado por Mário Cláudio, uma condecoração, e logo Torre e Espada, no peito do inventado capitão Garcês, colocada por Salazar, no Terreiro do Paço,as cabeças dos negros, despojos de guerra, espetadas pelo capitão Garcez em paus na berma das picadas.
Assim se vai dando o contributo (porque são quase só estas as imagens que ficam para as gerações futuras)para sermos considerados uma cambada de criminosos, militares ao serviço do exército colonial fascista.
Este "herói tenebroso", como o denomina Mário Beja Santos, fez, pós 25 de Abril, segundo as palavras de Mário Cláudio "peregrinações a Leste, promovidas pelo partido de esquerda bem comportada de que foi militante." Espantosa figura, o capitão Garcez terá ido, com o Partido Comunista, à União Soviética, talvez deixar no Kremlin uns cravos vermelhos de Abril.
As coisas que eu tenho aprendido neste blogue...
Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

è o que eu digo e penso.Eles não desistem.
Carlos Gaspar

Valdemar Silva disse...

É interessante que existe uma fotografia com semelhanças à descrição no texto 'condecoração de Torre e Espada, colocada por Salazar, no Terreiro do Paço'.
Quem a via comentava 'este é que é o tal olho por olho dente por dente'.
Lembram-se? Coitadas das criancinhas ver uma foto daquelas.
Teria o Mário Cláudio copiado a imagem para o Cap. Garcez?
O resto é politica partidária.
E atenção, rapaziada, eles andam aí e não desistem.

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Afinal Valdemar sempre há politica partidária!N não valia a pena o Valdemar desancar-me verbalmente a propósito do Mário B.Santos, como o fez à uns posts atrás.
Para o caso de não ter lido as minhas respostas, elas estão no poste 20361 e não guardo rancor nenhum pois penso, que no calor do assunto tenha respondido daquela maneira, de qualquer modo não gosto de aterrar aqui no blogue e ser recebido ao tiro, claro que falo em sentido figurado e para que não haja mais equívocos aqui fica um abraço com o meu nome próprio (e não um heterónimo como disse)
Carlos Gaspar FAP

Valdemar Silva disse...

Carlos Gaspar
Só agora fui ler o que está escrito no P20361.
Começo por responder que o ser contra o salazarismo e tudo o que foi o chamado estado novo que incluía a ideologia fascista da PIDE, MP e LP, não me merece nenhum elogio, principalmente por ter empurrado milhares e milhares de jovens para a guerra e para a emigração, que tanto úteis seriam no desenvolvimento do nosso país. Isto não é politica partidária. Que se saiba não há, nos nossos vários partidos políticos, nenhum partido salazarista/fascista, que até seriam proibidos, por isso não me referia a isso. Criticar o salazarismo não é fazer comentário de politica partidária, é um dever de todos nós relembramos o que foram décadas de obscurantismo a todos os níveis da sociedade portuguesa que nos criou atrasos no meio das nações europeias, que ainda hoje se verificam.
Quanto ao heterónimo, por que não temos no blogue ninguém de nome Carlos Gaspar, e normalmente quem deixa comentários é da 'nossa guerra', fez-me confusão aparecer alguém a dar palpites sobre o que Mário Beja Santos escreve ou não deveria escrever,
quando ele é um dos nossos habituais 'comentadores' com temas relacionados com a história da Guiné, principalmente a história de 500 anos da presença portuguesa na Guiné.
Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz