1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2019:
Queridos amigos,
Aproveitando a circunstância de o bardo se centrar em situações do quotidiano, desde acidentes de viação a caneladas com fratura, pretendeu-se dar o quadro ambiental daquele ano de 1964, turbilhonante, foi um doloroso separar de águas, gente em fuga para países limítrofes, gente a ser obrigada a tomar posição, como o régulo Malan Soncó, do Cuor, que resistiu a todas as ameaças e pediu proteção às tropas portuguesas.
Na área em que se movimentavam as unidades do BCAV 490 este relato do Leopoldo Amado parece rigoroso, minucioso, sobre tudo quanto aconteceu naquela convulsão territorial. Leopoldo Amado estudou aturadamente a documentação portuguesa, como demonstrou. Atribui a Schulz uma falta de estratégia e de conhecimentos para uma resposta firme, o que está longe de ser verdade, basta ler as suas diretivas e instruções. Quando ele chega à Guiné, em maio de 1964, está tudo num autêntico pé de guerra, ele tinha que responder à defesa das populações, foi a reboque do alastramento imprimido pelo ímpeto guerrilheiro. Veremos adiante que estas diretivas de Schulz estavam sustentadas por um conhecimento real da situação, fez previsões que bateram certo, importa não esquecer que não lhe deram os meios que aquela avalanche exigia, independentemente de todos os erros que terá cometido na implantação de destacamentos.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (35)
Beja Santos
“Setúbal teve grande azar,
sendo logo evacuado.
O Sadio, bom camarada,
ficou um pouco atrapalhado.
Como sempre acontecia,
e quando havia vagar,
o futebol íamos praticar
a qualquer hora do dia.
O Artur tudo vencia
com o seu modo de driblar.
O Ruas, a atrapalhar,
fez grande exibição
e o Rebelo ao jogar-se ao chão,
Setúbal teve grande azar.
O 1.º Cabo Clarim
de Setúbal é natural.
Ficou com a perna muito mal
ao jogar à bola em Farim.
A pouca sorte surgiu assim,
sem andar no mato cerrado:
este pobre desgraçado
a perna direita rachou
e a avioneta poisou,
sendo logo evacuado.
O nosso amigo Caixeiro
quis ser condutor na estrada.
Ia levando uma porrada
pelo nosso Comandante Cavaleiro.
Pagou grande conta em dinheiro,
ajudado pela rapaziada.
Numa árvore deu uma pancada
que o Unimog amolgou
e grande susto apanhou
o Sadio, bom camarada.
Rondas temos que fazer
aqui neste aquartelamento.
No mato em todo o momento
terroristas se estão a prender.
Aqui a Farim vieram ter
mas não tiraram resultado.
O Jacinto ficou assustado
atirando-se para o chão
e o Sargento Napoleão
ficou um pouco atrapalhado.”
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O bardo dá-nos notícias do quotidiano, onde não faltam acidentes mortificantes. De novo emerge a vontade de procurar entender um pouco melhor o que se vai passando nesse ano de 1964 por toda a Guiné, e assim perceber com mais clareza as tribulações em que vivem as unidades do BCAV 490. Vai-se fazer uso da tese de doutoramento de Leopoldo Amado publicada com o título “Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional, 1950-1974”, edição do IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, 2011, precisamente dando atenção ao que ele escreve sobre esse ano de 1964:
“Em todo o primeiro semestre o PAIGC despendeu esforços enormes para dispersar as tropas portuguesas, nomeadamente com a abertura de novas frentes de combate, com objetivos claros de provocar a diluição daquelas, apesar de concentrar o principal esforço de guerra ao Norte do Canal do Geba, de onde alastrou a Farim, na margem direita do rio Cacheu, e a toda a área circunvizinha, em especial para Leste e Nordeste. No final de Janeiro, aquele centro populacional, já importante, encontrava-se já isolado, pois as unidades guerrilheiras do PAIGC, destruindo pontes, montando emboscadas, colocando abatises e minas, procuraram cortar as estradas que ligavam a vila às povoações de Bigene, a Oeste, Bissorã, a Sudoeste, Mansabá, a Sul, e Cuntima, a Nordeste. Além disso, havia notícias de novas infiltrações de grupos do PAIGC pelas fronteiras Leste e Nordeste da Guiné, na direção de Farim. Estes grupos teriam o seu ponto de irradiação em Koundara, na República da Guiné.
Esta situação agravou-se ainda mais durante os meses de Fevereiro e Março, com as constantes flagelações a Farim e Binta, onde o PAIGC objetivava claramente a destruição de infraestruturas, a saber, pontes e pontões, ao mesmo tempo que fustigava as populações civis da área de Jumbembem – Canjambari – Cuntima, com o objetivo de as desequilibrar psicologicamente e de as ‘coagir’ a colocarem-se do seu lado. Esta atuação levou Fulas e Mandingas a fugirem para o Senegal e originou a paralisação quase completa das serrações locais e da atividade madeireira, de que Farim é um dos principais centros da Guiné.
Entre os rios Cacheu e Mansoa, a grande mancha florestal do Oio era a mais afetada, tendendo o PAIGC a alastrar a sua atuação para Oeste, na direção de Binar e Bula, e para Leste, tomando como eixo a estrada Mansabá – Bafatá. Por quase toda esta grande área, os guerrilheiros atacavam as forças militares portuguesas em operações que flagelavam aquartelamentos e povoações. Essas ações do PAIGC foram em geral caraterizadas por uma enorme agressividade, na área de Umpabá – Biambi (entre Binar e Bissorã) e no troço Bissorã – Olossato (que viria a deter o recorde de emboscadas entre todas as estradas da Guiné). Merece também referência especial a oposição do PAIGC à reabertura da estrada Mansabá – Bafatá, numa altura em que elementos do Exército Português estavam entregues às tarefas de limpeza de inúmeros abatises”.
Leopoldo Amado |
“Nesse ano, o PAIGC alarga a sua atuação para o Norte, a partir do Oio até à fronteira com o Senegal, criando assim condições para poder ser reabastecido a partir deste país. Iniciou também a atividade no extremo Noroeste da Guiné e na área do Boé, visando pressionar a etnia Fula, e surge pela primeira vez com o chamado Exército Popular, numa ação sobre Guilege. De notar ainda, neste princípio de 1964, as flagelações em Mansabá, a Binar, ao Olossato e às zonas suburbanas de Bissorã e de Mansoa, bem como a primeira atuação dos guerrilheiros na estrada Bula – São Vicente, única que permitia ligações seguras entre Bissau e toda a região fronteiriça a Norte do rio Cacheu.
Em Abril, a atividade do PAIGC agravou as já enormes dificuldades das atividades económicas coloniais, na medida em que, conjugada com a obstrução das estradas que, na margem Sul do Cacheu, dão acesso à região, a sua ação abrangeu o ataque às serrações madeireiras que restavam e a destruição das tabancas fulas da zona fronteiriça de Cuntima, povoação, aliás, alvejada mais do que uma vez, na noite de 27 para 28, por diversos grupos de guerrilheiros que nesses mesmos dias atacaram Farim. O trânsito nas estradas tornava-se dia a dia mais difícil e perigoso, pois o PAIGC não só continuava a destruir pontes e pontões, a colocar abatises e a montar emboscadas, como começava também a implantar minas.
A primeira colocação de minas foi assinalada a norte do rio Cacheu, em Maio de 1964, numa altura em que a atividade do PAIGC já atingira o porto de Binta e se aproximava de Bigene. Os ataques às tabancas de Genicó e Sansancutoto, respetivamente a oeste e noroeste daquele porto, e a destruição da ponte de Sambuiá indicavam que os guerrilheiros pretendiam interromper as ligações rodoviárias entre Bigene e Farim e tornar ainda mais precária a situação em toda a área, ao mesmo tempo que, no Senegal, se procedia a uma grande campanha de mobilização junto dos refugiados (…). Em Junho de 1964, grandes massas nativas indefesas refugiam-se quer no Senegal (a maioria), quer ainda em Bissau, procurando fugir a todo o custo das pressões exercidas sobre elas dos dois lados: guerrilheiros e exército português”.
E Leopoldo Amado acrescenta uma outra dimensão do alastramento da guerrilha:
“O alastramento para oeste do meridiano de Bula, realizado por grupos vindos do Senegal, foi feito em perfeita combinação com a progressão para leste de Farim e do Oio. Do mesmo modo, junto à fronteira senegalesa, o PAIGC começava a atuar na área de Canhamina, a sudeste de Cuntima. Um conjunto de ações e infiltrações desde Canhamina, ao norte até Cantacunda, Banjara e Badora, indicava claramente que o PAIGC pretendia alargar para leste a atividade que até então desenvolvera apenas nas regiões do Oio e de Farim”.
O historiador recorda também as atividades na chamada Região Centro-Leste, Enxalé, Xime, aliás foi no Xime a primeira localidade a usar-se o RPG, a bazuca soviética. No Corubal, em especial entre Margai e Ponta Varela, começaram os ataques aos navios comerciais ou de transporte pessoal. Ao norte de Bambadinca, em abril, a tabanca de Missirá foi assaltada. Outro aspeto que não se pode minimizar é o do uso de novos armamentos, metralhadoras, morteiros 82, o seu uso alastrou-se por muitas regiões e o uso de minas anticarro armadilhadas e detonadas à distância com a ajuda de um fio preso à cavilha de segurança. Pensa-se que ficou mais nítido o ambiente narrado pelo bardo a partir de Farim. Em Binta, como veremos adiante, a CCAÇ 675 reage com uma mentalidade ofensiva pouco comum, iremos ler algumas páginas do diário de JERO.
(continua)
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Notas do editor
Poste anterior de 29 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20395: Notas de leitura (1241): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (34) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 2 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20409: Notas de leitura (1242): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (4): “O Prazer da Leitura”; Teorema e FNAC, 2008 (Mário Beja Santos)
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