
Caríssimo Carlos,
Aqui vai a recensão possível dos factos heróicos da Armada, envolvendo Alpoim Calvão.
Enfronhado no quase final do meu livro “Mulher Grande”, voltei à biblioteca da Sociedade de Geografia para consultar pacientemente o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa entre 1952 e 1962, época em que a minha heroína viveu na Guiné. Foi uma agradável surpresa encontrar no número de Janeiro de 1954 um artigo intitulado “Breves notas da razão de ser, objectivos e processo de execução do recenseamento agrícola da Guiné” assinado por Maria Helena Cabral e Amílcar Lopes Cabral*.
É uma bela peça de concisão e inteligência, a ver se os envio uma curta notícia.
A minha heroína conviveu com eles, apreciava muito a cultura e fulgor do Amílcar, um homem que nas noites paradas de Bissorã, no início dos anos 50, falava de Alexandre Dumas, Miguel Torga, Stendhal e Unamuno.
Um abraço do Mário
As operações no rio Inxanche, em 1964, 1969 e 1970
Por Beja Santos
O capitão-de-mar-e-guerra Armando da Silva Saturnino Monteiro, membro emérito da Academia de Marinha escreveu “Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa” em oito volumes (Livraria Sá da Costa Editora, 1997). No oitavo volume, que abarca acontecimentos entre 1808 e 1970, o historiador aborda duas operações de alto risco no rio Inxanche (fronteira da Guiné-Conacri) que envolveram a Armada, e que obtiveram o sucesso esperado, em 1964 e 1969.
Os navios que efectuavam o transporte do material de guerra utilizado pelo PAIGC tinham sido quase todos capturados aos portugueses no início da subversão, eram de pequenas dimensões. Diz o autor que “Navegavam de Conacri para o norte ao longo da costa até à ilha Tristão, que contornavam por leste até alcançarem o rio Caraxe, do qual passavam para o Inxanche, o que lhes permitia chegar a Kadigné com a máxima segurança. Dali o material era transportado em canoas para as bases do PAIGC, situadas tanto no território da Guiné-Conacri como na Guiné portuguesa (ver mapa).
Logo em 1964, o Comando da Defesa Marítima procurou entravar ou interromper esse tráfego. Logo em Fevereiro desse ano, uma LDM, sob o comando do capitão-tenente Paulo da Costa Santos, penetrou no rio Camexibó, onde travou uma violenta acção de fogo e destruiu quatro canoas. Ficava-se a saber que o PAIGC encontrava-se fortemente implantado na zona. Coube ao primeiro-tenente Alpoim Calvão montar uma emboscada nas imediações de Kadigné a fim de capturar embarcações. No dia 20 de Abril de 1964, largou de Bissau uma força naval que transportou uma força de fuzileiros especiais, força essa que se manteve emboscada durante 33 dias. A lancha que transportava o grupo montou a emboscada no interior do Camexibó onde travou intenso tiroteio com as posições inimigas, tendo ficado gravemente ferido o subtenente Machado Oliveira. O general Arnaldo Shultz entendeu que não se devia repetir este tipo de operações para evitar conflitos internacionais.
Em 1969, Alpoim Calvão regressa à Guiné e insiste com o brigadeiro Spínola para que se retomassem as operações destinadas a capturar os navios que andavam ao serviço do PAIGC. Spínola acede à realização dessa operação. Alpoim Calvão planeou a operação “Nebulosa”, que se iniciou em 15 de Agosto de 1969: Calvão era acompanhado pelo segundo-tenente Rebordão de Brito, dois sargentos e dez fuzileiros especiais e levavam quatro botes de borracha. A 27, quando se aproximou um navio, mais tarde identificado como sendo o Patrice Lumumba, os botes de borracha saíram do esconderijo e foram ao seu encontro. Como tivesse havido reacção, a força comandada por Calvão atacou com granadas lacrimogéneas e tiros de G-3, a que se seguiu um breve combate corpo a corpo. A bordo encontravam-se 24 pessoas, entre as quais 3 elementos do PAIGC (um deles morto durante o assalto), que foram aprisionadas. O Patrice Lumumba, muito danificado, teve de ser abandonado.
Não acabaram por aqui as andanças no rio Inxanche. Em princípios de Março de 1970, chegou a Bissau a informação de que um elemento importante do PAIGC iria deixar Kadigné de regresso a Conacri, no dia 7. Calvão foi encarregado de planear a operação “Gata Brava”, destinada a interceptar o navio. Calvão, o segundo-tenente Barbieri e 6 fuzileiros especiais eram o contingente para o golpe de mão. Emboscaram-se no ilhéu Calebe (ver mapa), e ao anoitecer do dia 6 apareceu o navio Bandim. A força deslocou-se em dois botes em direcção ao navio, entretanto, da ilha portuguesa de Canefaque, controlado pelo PAIGC, fazia fogo uma metralhadora pesada. O Bandim foi atingido em cheio por uma granada bazuca, encalhou num esteiro, toda a gente que ia a bordo fugiu. No convés do Bandim encontravam-se 6 homens mortos. O Bandim foi destruído. Observa Saturnino Monteiro que a perda destes dois navios, em resultado das operações “Nebulosa” e “Gata Brava” forçosamente que afectou, pelo menos temporariamente, as forças do PAIGC. Pelo seu desempenho, Alpoim Calvão recebeu uma segunda Cruz de Guerra e foi agraciado com a Torre e Espada.
Saturnino Monteiro comenta detalhadamente a operação “Mar Verde” (22 de Novembro de 1970), que tem sido profusamente referida aqui no blogue, pelo que se considera não haver mais menção a fazer-lhe. Diz o autor que se deve chamar à atenção para o facto de que o ataque a Conacri foi a única operação realizada pela nossa armada desde a batalha do cabo de São Vicente (1833) com implicações de ordem estratégica, isto é, com possibilidade de alterar o curso da guerra. Foi também a última acção que os portugueses tiraram partido do domínio do mar para tentar ganhar uma guerra.
Resta dizer que o historiador Saturnino Monteiro se revela totalmente crítico pelo regime de Salazar ter empenhado meios militares na defesa da Guiné cujo teatro de operações, escreve ele, apresentava graves desvantagens no campo da acção psicológica: “Durante toda a guerra do Ultramar, o teatro de operações da Guiné foi um cancro que corroeu material e psicologicamente as Forças Armadas Portuguesas até as levar à desagregação e à derrota”.
Este volume passa a ser propriedade do blogue.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 18 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5127: Historiografia da presença portuguesa (23): Aquela Guiné dos anos 50 (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5104: Notas de leitura (29): Um Amor em Tempos de Guerra, de Júlio Magalhães (Beja Santos)