
Queridos amigos,
Aqui se põe termo a um relato edificante e esclarecedor do que era o Leste da Guiné entre 1965 e 1967.
A ver se para a semana vou ao CIDAC para ver se descubro mais literatura avulsa, pouco mais coisas tenho para ler, os nossos camaradas estão na retranca, não abrem mão do que guardam nas suas bibliotecas.
Paciência, que também é uma virtude.
Um abraço do
Mário
Notícias do Leste da Guiné, entre 1965 e 1967:
Um relato singular sobre a história do BCaç 1856
por Beja Santos
Outro relato importante é do capitão miliciano Jorge Monteiro que esteve em Madina do Boé. Ele confessa, depois de ter vivido em Madina durante 11 meses, a completa inutilidade de estar numa posição que não servia para nada, era um acampamento subterrâneo protegido por arame farpado e seteiras, um alvo apetecido para os ataques diários das forças do PAIGC. Pega no seu diário e cita alguns dados: no dia 1 de Dezembro de 1966, às 18:15 mandaram-nos 6 granadas de morteiro 82; às 19:30 mais 6; no dia 3, logo às 6 da manhã, mais 6; na tarde do dia 4, 9 granadas; no dia 6 puseram 2 morteiros e 2 canhões sem recuo a trabalhar e no dia 7 pelas 3 da manhã atiram-nos 15 granadas; no dia 8 às 6 da tarde 5 granadas e logo a seguir, às 7:30, 2 granadas de canhão sem recuo. Respeitaram o dia de Natal, mas acordámos a 26 logo às 6 da manhã. Entrevistado mais tarde, o capitão Monteiro não percebia como é que Madina do Boé, um pântano, um chão inútil, no meio de dezenas e dezenas de quilómetros de área inundada, um charco imenso onde só as rãs se sentiam bem, podia vir a ser a capital do PAIGC.
Há depoimentos sobre os quais devíamos reflectir com muita profundidade, até às últimas consequências. Vejamos o que escreve António Araújo da CCaç 1416:
“Fomos os primeiros a ser destacados para o mato, oito dias após a nossa chegada a Bissau. Éramos a companhia mais antiga, logo a que tinha mais prática de guerra.
Ainda hoje não consegui entender como um indivíduo entrando no mesmo dia, à mesma hora, no mesmo quartel, só porque entrou um passo atrás passou a ser o mais novo. Tal como uma companhia, só porque lhe foi atribuído um número mais baixo passou a ser a mais antiga.
Ficámos mal aquartelados num celeiro em Nova Lamego, com uma zona de intervenção enorme: Canquelifá, Buruntuma, Piche, Bajocunda, Pirada, Paúnca, Cabuca e Madina do Boé.
Passaram poucos meses e depois de vários combates travados com o inimigo sofríamos a primeira baixa. Um alferes ferido às primeiras horas da manhã. A evacuação pedida com o grau máximo de urgência, só é deita depois das 15 horas. O alferes já tinha morrido depois de ter sido transportado muitos quilómetros aos ombros em maca improvisada”.
Até o capelão, de nome Mota Tavares, andou metido em sarilhos, viu camaradas a morrer ao seu lado, interrompeu a celebração do culto durante o bombardeamento dos quartéis, seguiu com o cálice na mão para dentro dos abrigos. Vale a pena escutá-lo: “Nunca usei uma arma. Não estava lá para lutar ou defender a guerra, mas para ajudar em nome de Cristo os meus irmãos militares. Levava o terço, os Santos Óleos e o canivete de escuteiro. Um dia, em Buruntuma, um capitão obrigou-me a levantar uma pistola para levar no dia seguinte para uma operação. Obedeci ao meu superior mas de madrugada, ao sair à porta de armas dei a pistola ao sentinela: Eh pá! Guarda-me esta treta até logo e não digas nada a ninguém. O percurso foi muito cansativo. Como tinha boa resistência física, cheguei a carregar duas G3 às costas para aliviar soldados mais cansados”.
No epílogo, Manuel Domingues refere Óscar Baldé, um menino que eles tinham conhecido em Copá, no Norte do Gabu. Estudante brilhante, obteve uma bolsa do Governo brasileiro e depois do Banco Mundial, tendo chegado a ministro das pescas e do mar, já no século XXI. Sentia-se desapontado com a falta de democratização do país e com a corrupção que graça por toda a parte. Mas os combatentes do batalhão 1856 lembravam com saudade aquele menino que alguém tinha ensinado a ler e a escrever e que ficara amigo inseparável do furriel miliciano Fernando Pereira da CCaç 1417.
Estamos perante um relato que justificava plenamente ser reajustado para uma edição mais divulgada, dada a plenitude das suas mensagens.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6542: Notas de leitura (118): Uma Campanha na Guiné, 1965/67, de Manuel Domingues (1) (Mário Beja Santos)