terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

1. Vigésimo segundo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (22)

Uma história de Amor, em pleno conflito

Já era a segunda vez que desembarcava na província com um camuflado novo. Sabia quase todos os pormenores, falava algumas palavras em “crioulo”, embora não exercesse uma conversação prolongada, sabia que não havia alojamento para todos os militares, que no princípio iriam ter muitas dificuldades, alguns iriam chorar, outros iriam revoltar-se, mas depois tudo se arranjaria, e até, iriam gostar da província. Era isto que esta personagem, baptizado com o nome de “Gascidla”, dizia.

Era oriundo do Alentejo, mais propriamente de uma aldeia próximo de Borba, tinha cumprido uma primeira comissão de serviço militar na província da Guiné, dizia que era cifra, depois com as modernices, chamavam-lhe operador cripto, esteve estacionado no arquipélago dos Bijagós, onde só havia paz e bom clima, não tinha nada a dizer da comida, falava com as raparigas e passava quase todo o tempo a bronzear-se nas praias quase desertas, e dizia:
- Eu tinha uma ilha e uma praia para onde só os locais iam, portanto não havia estranhos, e para onde levava as minhas namoradas.

Acabou a sua comissão de serviço e regressou à Metrópole, como então se dizia. Regressa à sua aldeia, não quis mais pegar em qualquer alfaia agrícola, andava por ali, fazia uns biscates que não envolvessem muito esforço físico, era cliente assíduo do café da aldeia, onde numa pequena esplanada, que havia em frente, se sentava numa cadeira, debaixo de um enorme guarda sol, com reclame a determinado refrigerante, cigarro na boca, a chávena do café, um copo com água, o maço de cigarros e o isqueiro em cima da mesa, cruzava a perna, às vezes em posição provocativa, principalmente para pessoas do sexo feminino, e ele sabia isso, e olhava as pessoas que passavam.

Já lá ia algum tempo e, vendo a cor bronzeada do seu corpo a desaparecer, com algum desespero, começa a procurar emprego. Na lavoura havia muito trabalho, mas o “Gascidla” dizia:
- Eu sei conduzir, embora não tenha carta de condução, sei ler e escrever, não vou pegar numa enxada como antes, agora quero um trabalho limpo, que me dê algum dinheiro.

Por fim arranja emprego na distribuição de garrafas de gás “Gascidla”, que na época estava muito em voga, num agente que havia na vila. Nunca ninguém chegou a saber, pois ele falava, mas nunca dizia a verdade, qual o motivo que o levou a ir ao quartel general de Évora e meter requerimento para regressar ao seu paraíso que era o arquipélago dos Bijagós, onde tinha passado dois anos de felicidade. Alguns que eram oriundos da área da sua aldeia diziam que foi motivado pelo contacto com algumas clientes, que eram casadas, e não resistiam à cor do seu bronzeado e que alguns maridos ciumentos, principalmente ciganos, estavam prontos a matá-lo, com uma navalha, entre outras coisas. Mas continuando com a história, o “Gascidla”, pois era assim que ficou baptizado, apresenta-se um dia na unidade militar onde se estava a formar o comando de que o Cifra fazia parte, para juntos irem para a então província do ultramar, e muito contente diz:
- Finalmente vou regressar ao lugar de onde nunca devia de ter saído!

O Cifra, muito admirado, diz-lhe:
- Mas a guerra está lá à nossa espera, pois existe um grande conflito, há um movimento organizado e armado que quer a independência!

E ele respondia, com ar de quem sabe o que diz:
- Isso é encostado à fronteira, mas para onde nós vamos, e onde eu meti requerimento para ir, é um paraíso, tu vais ver!

Desembarcados na província, passou por todas as agruras que o Cifra passou. A princípio dizia que já sabia que era assim, mas passado uns meses, maldizia a sua sorte e afirmava que tinha sido enganado. Tinha dificuldade em comer, não executava o seu trabalho com eficiência, pois trocava as palavras ao decifrar uma mensagem e dizia que não tinha sido treinado para este trabalho, que antigamente a cifra era mais simples. Também dizia que lhe prometeram uma promoção na altura em que se alistou de novo no exército, mas continuava primeiro cabo sendo mais velho do que alguns sargentos e furriéis. Quando ia para a aldeia, que existia próximo do aquartelamento, procurava falar o seu crioulo, mas como era uma zona de etnia “Balanta”, as raparigas não o compreendiam, andava revoltado.

O “Gascidla” fumava muito, comia pouco, só gostava de feijão e grão de bico e os colegas sabendo isso, sempre lhe enchiam o prato, quando a ementa era “rancho”, bebia alguma água, não gostava de vinho, às vezes bebia uma cerveja, mas café negro, era a sua bebida preferida. Pedia ao Cifra para lhe decifrar as suas mensagens, pois era o Cifra que entrava de serviço a seguir a ele e tinha sempre umas tantas mensagens já antigas para decifrar, que depois entravam no comando com um substancial atraso, o que levava o comando a questionar, caindo as culpas no “Gascidla”, pois havia uma folha de entregas, com a hora do seu recebimento, ele não se importava e respondia:
- Promovam-me, como me prometeram e mandem-me embora daqui.

O comando, fazia “vista grossa”, pois o trabalho, embora atrasado, continuava, até que passado mais ou menos um ano, o “Gascidla”, pede um mês de férias para ir gozar no arquipélago dos Bijagós.

Aí possivelmente, encontrou uma das suas antigas namoradas, convive com ela e no final das férias decide trazê-la para a vila onde estava estacionado. Aluga um quarto na casa de uma família Libanesa, onde a namorada fica instalada. A rapariga, que era bastante bonita, de etnia “Bijagó”, tinha marcas na pele do corpo, da tribo a que pertencia, com que os pais a marcaram à nascença, diversos colares no pescoço, que com os anos lhe fizeram prolongar esse mesmo pescoço, a sua roupa era primitiva, andava descalça, com algumas argolas na parte inferior das pernas, portanto não era bem vista em território “Balanta”, e como não falava português, era muito difícil de se fazer compreender, só mesmo com a ajuda do “Gascidla”, que a acarinhava e fazia tudo para que a rapariga sentisse menos a falta da sua família, da sua praia e do ambiente natural a que estava acostumada. Entre outras coisas, o “Gascidla” levava comida do aquartelamento para a sua companheira.

Para lhe ajudar a passar o tempo, com tiras de folha de palmeira, bananeira, e de outras plantas, fazia cestos e outros utensílios, alguns em miniaturas, que eram autênticas obras de arte e também, sempre sobre a guarda e protecção do “Gascidla”, pescava camarão com uma rede, encostada à ponte do rio, metida na lama. Algum desse camarão, era vendido aos militares. Quando questionado pelo Cifra, se era feliz no que estava a fazer, ele dizia:
- Nunca fui tão feliz em toda a minha vida, ela é a mulher com que sempre sonhei, ela é real, nada nela é falso, contenta-se com aquilo que o mundo lhe deu, não tem ganância, não tem inveja, adora o sol e quando se ri para mim, só eu existo no seu pensamento. Sou feliz, Cifra, e vai ser ela que me vai dar muitos filhos.

Pelo menos nas palavras, tinha toda a razão. O tempo foi passando e quando faltavam dois meses para acabar a sua segunda comissão, com a ajuda dessa família Libanesa e do comando a que o Cifra pertencia, o “Gascidla” arranja trabalho numa sucursal da companhia ultramarina, no arquipélago dos Bijagós e como falava algum crioulo aí ficou a viver com a sua companheira.

Isto demonstra que o amor pode sobreviver no meio de uma guerra. O que se passou depois, com a continuação dessa mesma guerra, o Cifra nunca soube, mas concerteza que devia de haver algumas crianças Bijagós, a brincarem na tal praia a que só os locais iam e que não precisavam do calor do sol para ficarem com a pele do seu corpo bronzeada, pois já nasceram com essa tonalidade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10578: Do Ninho D'Águia até África (21): O Tabaco, para alguns (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10593: Blogpoesia (310); Enquanto ouvir um piano a tocar Schubert ou Beethoven... (J. L. Mendes Gomes, Steglitz, Berlim, Alemanha)

Dois poemas, sem título, da autoria do nosso camarada J. L. Mendes Gomes, acabados de publicar na sua página do Facebook, e reproduzidos aqui com a devida vénia.

Recorde-se que o J. L. Mendes Gomes foi alf mil na CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), e depois da tropa jurista na Caixa Geral de Depósitos, hoje reformado.

Para ele, a viver na Alemanha [, Steglitz, Berlim,] com os seus queridos netos, aqui vai um abraço de apreço, camaradagem, e amizade e esperança, dos editores e demais grã-tabanqueiros:


1. Enquanto ouvir um piano 
A tocar a serenata de Schubert,
Ou o lago dos cisnes,
Não me vou deitar
Nem deixar de viver.

Mesmo que venha a tristeza
E me afogue,
Hei-de sobreviver,

Agarrado às notas do piano,
Mesmo calado e afogado….

Hei-de voar, mesmo perdido,
Noite e dia,
Até encontrar alguém
Que também ande perdido como eu.


Ambos daremos as mãos,
Perdidos,
Algum caminho havemos de encontrar.
Até que nossas forças se apaguem…


Steglitz, 28 de Outubro de 2012
10h24m
Ouvindo Beethoven- Mondschein sonate










2. Tomara eu poder saltar um século à frente,
Com este meu tempo conturbado,
Que faz no planeta Terra!…

Ir pelo universo fora
Encontrar um cantinho,
- Podia ser um oásis - ,
Onde só coubesse
A paz e a concórdia…
Onde, nunca se tivesse ouvido falar de guerra
E a justiç a e a fé,
Num Deus uno e universal,
Fosse a bandeira da Terra inteira.

Não houvessem hospitais,
Presídios civis ou militares,
Nem campos relvados
Para toda a ordem de futebóis...

Tudo fosse
Praia, campo
E mar azul…

Só houvesse a combustão do sol,
Oculta e limpa,
Para fazer girar tudo,
Em vez do alcatrão e
Do petróleo pestilento
Que tornou a Terra irrespirável...

Não queria mais Têvês nem aviões.
Só queria as asas
E a propulsão
Do nosso coração imenso,
Que comanda cada um,

Para voar feliz
Pelo mundo todo
E firmamento.

Infelizmente..
É só um sonho!...


Steglitz, 29 de Outubro de 2012
8h8m
Joaquim Luís M. Mendes Gomes
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10591: Blogpoesia (309): Francisco Santos, o poeta popular da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10592: História da CCAÇ 2679 (55): A mina do acaso - Pauleiro, o feeling do combatente (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Outubro de 2012:

Olá Carlos,
Hoje envio-te outro pedaço da história da CCaç 2679, uma ocasião de grande felicidade para mim.
É uma estória sobre esses engenhos traiçoeiros, que constituem verdadeiros riscos. Daqueles que dois camaradas, embora em circunstâncias muito diferentes, já aqui deram muitos testemunhos de fazer arrepiar; e a quem dedico o presente texto. Refiro-me ao António Matos e ao Luís Faria.
Para o Foxtrot, um excelente grupo de combate, vai a minha admiração e apreço.

Para ti e para o Tabancal envio um grande abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (55)

A mina do acaso
Pauleiro, o feeling do combatente

A época seca já durava há muito, corria lenta e escaldante, às vezes sentia-se uma brisa quente do deserto. Nós entráramos no segundo ano de permanência e de hábitos em relação ao clima e ao relevo. As reservas físicas compensavam as assaduras do sol, mas os cantis eram indispensáveis nas bagagens individuais. Naquele dia saímos cedo para uma coluna a Copá.

Tratava-se de uma acção vulgar, apesar de termos a "obrigação" de picar um pouco mais além do que meio caminho. A picada arenosa, levantava uma escassa e fina poeira à nossa passagem, por meio de uma vegetação de capim amarelado e seco, e algumas árvores de pequeno e médio porte, umas vezes espaçadas, outras em definhada mata, marginavam a "estrada" durante quase todo o percurso. O chão evidenciava uma vegetação rala, quase limpo sob as copas das árvores. Agradava-me o calor matinal.

A coluna alongava-se pelos vagares da caminhada. e acompanhava as ligeiras curvas que desviavam a picada de árvores mais volumosas, que não apaziguavam os calores de cada um, porque, naquela região, a luz solar incidia na vertical. Caminhei durante algum tempo, mas depois de iniciar uma conversa com o condutor da Mercedes que seguia após os picadores, decidi subir e sentar-me a seu lado. Distraía-me do que estava a fazer, e o ramerrão daquelas viagens dava "confiança" para descurar. Mas não vou contar-vos nada que se possa imputar a uma distração, além de que outros cumpriam as suas funções, e eu não tinha lugar certo no dispositivo, andava por onde achava que devia andar.

Picadores em acção. Foto: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.

A velocidade da deslocação seria de uns cinco/seis quilómetros por hora, conforme as pernas permitiam e a determinação do momento. Não se ouvia mais do que o suave ruído dos motores, uma ou outra pica bater em solo mais rijo, um ou outro chamamento das aves. De súbito, ligeiramente à frente e a partir da orla da mata, ouviu-se com estrondo. Há minas!

As reacções eram as que tínhamos treinado e intuído. Não havendo tiros, cada um dos que seguiam na frente aguardava no lugar pela minha aproximação, que de pica, e lentamente, descobria caminhos da saída. Depois de uma olhada pelas bermas, verificou-se que não havia cordões detonantes. A mata apresentava-se serena, não havia turras emboscados. O Pauleiro permanecia no local de onde soltara o brado. Aproximei-me: - Por que é que há minas? Respondeu-me apontando para uma porção de terra seca, que eu achei que seria o resto de algum pequeno baga-baga. Mas o Pauleiro estava determinado de que se tratava de terra removida da picada. Mexi na terra quase solta e a dúvida estava instalada.

Andei em frente da Mercedes a avaliar a situação. Depois pedi aos picadores para picarem densamente e com toda a atenção desde a viatura. Eles fizeram-no sem resultados. No entanto, dei-me conta de que havia um espaço entre a roda e o extremo do pára-choques onde as picas não iam. Pedi ao condutor para engatar a marcha-atrás, mantendo a direcção, e que movimentasse a viatura cerca de um metro. Sem alteração da trajectória, não aconteceu nada. Voltei a pedir aos picadores para usarem as picas desde as rodas a cobrir aquela zona onde nada víramos. Agachei-me a olhar atentamente para o trabalho que desenvolviam. A um dos picadores pedi para recomeçar, porque andara depressa em relação aos outros e tinha-me distraído. Reiniciou-se a operação. O resto do pessoal estava disposto ao longo da estrada e fazia segurança. Ouvia-se o silêncio, apenas quebrado pelo picar o chão.

Ao bater de uma das picas, fiquei com a sensação de se ter projectado um pedacinho de madeira. Alto, fiz sinal. Não via qualquer pedaço de madeira, mas sabia de onde o imaginava ter partido. Saquei da faca e actuei. As primeiras tentativas revelaram um solo duríssimo, mas, de repente, novo indicio de madeira. Mais uns movimentos de remoção e a mina estava identificada, talvez a escassos quinze centímetros da roda da Mercedes sobre a qual eu seguia sentado. Com a faca fiz uma avaliação do terreno envolvente e não havia outros engenhos. Os picadores foram avaliar a situação em redor da viatura e até à terceira.

Eu esgravatava no solo, pedi ajuda a alguém para remover a terra de um lado, enquanto eu o fazia do outro, mas os progressos eram lentos, pois o chão afigurava-se rijo, rijo demais para um terreno argiloso. No entanto, a tampa do caixote já estava a descoberto. A transpiração escorria e os olhos acusavam o salitre com grande incómodo. Quase me esfarrapei para cavar até à dobra inferior do caixote. Talvez uma hora depois, limpei as zonas envolventes, o braço direito a acusar o esforço, e a mina apresentava-se esplendorosa e exercia o magnetismo de atracção. Apesar de cansado, apesar da ajuda, estava tranquilo do que devia a fazer.

Nunca me tinha acontecido uma tarefa tão difícil. Os turras estavam a evoluir na técnica, e fora um milagre que o Pauleiro se tivesse deslocado da picada para uma mijinha, tivesse olhado para a terra removida e suspeitado do que vira. Era um militar com faro e com muitas provas dadas de excelentes capacidades. Concluí que ao colocarem a mina terão feito uma massa de argila e água, que depois serviu para a cobrir. Em seguida cobriram-na com uma camada de areia fina, e depois o sol e o calor completaram a intenção de dissimulação. Aquela devia estar armadilhada, a avaliar pelos cuidados, desconfiei.

Uma equipa de minas e armadilhas neutralizando uma mina AC. 
Foto: © Carlos Vinhal (2012). Direitos reservados.

Pronto, só faltava retirar a mina. Mandei a todos que se afastassem e deitassem no terreno, quando fiz um laço em torno do caixote, pelas faces laterais. e puxei, puxei com força por mais duas ou três vezes, movimentando-a. Do meu conhecimento só havia um disparador por descompressão - o célebre rato, que funcionava subitamente quando era aliviado do peso. Aproximei-me do buraco levantei a corda, e pedi para a puxarem pela extremidade, o que conferia novo ângulo de movimentação. A mina deslocou-se sem que dali viessem indesejáveis barulhos. Não estava armadilhada.

Foi um dia de muita sorte para mim, seguramente dos mais afortunados. Aquele engenho tinha sido astutamente instalado, com recurso a nova técnica, que consistia no recurso à lama que cose ao sol e fica como cimento, mas o grupo de combate, mais uma vez conseguiu dar a resposta adequada. Prosseguimos viajem e imaginava a decepção do artista que colocou o minão. Seguia a pé junto dos picadores, mas aquela era uma mina solitária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10530: História da CCAÇ 2679 (54): Quatro tiros para o Pedro (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P10591: Blogpoesia (309): Francisco Santos, o poeta popular da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)


Benavente > Restaurante O Miradouro > 27/10/2012 > Foto do pessoal CCaç 557, reunidos com filhos e netos, a comemorar o seu vigésimo quinto almoço de convívio e o quadragésimo sétimo ano do seu regresso.  Este ano os bravos do Como que pertenceram à  valorosa CCAÇ 557 foi "reforçada" por dois elementos do nosso blogu: na primeira fila,  o Fernando Chapouto [cercadura a amarelo], de camisola branca com a mão esquerda no ombro direito do José Colaço (, cercadura a verde]; na fila de trás o Jorge Rosales [, cercadura a azul], com uma folha de palmeira a tapar-lhe o queixo. Quanto ao nosso poeta popular Francisco dos Santos,  ele é o que está na última fila,  ao centro,  de blusão escuro, camisa branca e pulôver azul [, cercadura a vermelho].


Foto da família CCaç 557 com filhos e netos reunida no dia 27/10/2012 em Benavente.



1. Mensagem do José Colaço, o nosso bravo da ilha do Como, ex-Soldado Trms da CCAÇ 557 (, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), e organizador do convívio deste ano:


Assunto: Poesia popular

Como o nosso administrador é um admirador da poesia popular (e não só, ou não fosse ele um poeta com todas as letras), envio em anexo os versos que o nosso camarada Francisco dos Santos, poeta popular dedicou à CCAÇ 557 no almoço de convívio em Benavente, em 27/10/2012.

Um abraço, Colaço.



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 557 (1963/65) > Cachil > Os trabalhos na construção da paliçada.

Fotos (e legendas): © José Colaço (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.













O Franisco Santos, de 70 anos, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, da CCAÇ 557,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65, poeta popular,  residente no Montijo. É membro da nossa Tabanca Grande desde 12 de maio de 2009.
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10590: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (6): 7.º episódio: O quotidiano no K3

1. Em mensagem do dia 27 de Outubro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), mandou-nos mais um episódio da sua passagem pela vida militar, correspondente aos melhores 40 meses da sua vida; diz ele e nós acreditamos piamente.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

7.º episódio - Quotidiano no K3 (Saliquinhedim)

Localização de Saliquinhedim - K3 por se situar a 3Km de Farim. Vd. Carta de Farim.
Convém esclarecer que as referências, na carta, a Bafatá e Olossato não são a localização real daquelas importantes povoações da Guiné. Vd. cartas de Bafatá e Binta, respectivamente.

E era assim, o dia a dia no K3, mas também emboscando..., sendo emboscado..., patrulhando..., escoltando..., vigiando..., descansando... e lerpando.

No bar, tínhamos cervejolas de 6 dcl, semi arrefecidas naquele velho frigorífico a petróleo e até o whisky jorrava a rodos. O "barman" preparava um petit dejeuner daqueles de se lhe tirar o bivaque e que consistia em bocadinhos de pão, ainda não em pedra mas quase, a que juntava ovos inteiros, sem casca, claro, mais umas sagres e açucar... tudo misturado era um acepipe que deslizava suave e gulosamente pelos nossos sequiosos gorgomilos. Para alegrar o espírito beberrão, emborcávamos então, um Vat 69 e pronto até ao almoço, ficávamos "porreiros mesmo pá".

Este (o almoço) era óptimo e variado quanto baste: às 2.ªs, 4.ªs e 6.ªs: dobrada liofilizada com feijão branco; às 3.ªs, 5.ªs, Sab e Dom: feijão branco com dobrada liofilizada. De quando em vez, porém, comíamos uns bifitos de vaca tuberculosa, que comprávamos, sem falar com os donos, por ali nos matos próximos, mas raramente, pois que o perigo também lá morava e só arriscávamos quando gostávamos de parecer gente fina.

A maior carência tinha que ver com o ingerir "frescos", nome que davam aos produtos hortícolas. Raramente chegavam lá ao fim da linha, já que antes passavam por vários "esfomeados", distribuídos desde Bissau, até nós. Compensávamos tal falta, em Farim e aquando do aprovisionamento diário da água para uso da Companhia.

Aqueles chóriços assados na brasa e bem regados com um tinto especial da marca "Água de Lisboa", substituíam com vantagem evidente, a falta das vitaminas, proteínas, sais minerais e outros que tais. Por fim e com a barriguita quase aconchegada e já do lado de lá do rio, atirávamos (DE PÉ) uma granada (DE MÃO), a fim de afugentar algum empecilhoso crocodilo dundee, que por ali andasse e tomávamos uma banhoca, coisa recomendável e saudável, dado o volume da comida... bebida.

A tarde era destinada a algum descanso para que à noite pudéssemos aparecer, aos habituais encontros, com alguma compostura e pontaria afinadas, não sem que antes se houvessem limpo as maquinetas G3 e até nisso tive azar que a minha tinha mais um bocadinho para polir, pois era de bipé.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10579: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (5): 6.º episódio: Pela primeira vez o quartel foi atacado

Guiné 63/74 - P10589: Notas de leitura (423): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
No exato momento em que me preparo para o estatuto de funcionário público reformado, vou limpando as gavetas da secretária e as toneladas de papel nas estantes.
Abri um envelope e encontrei todo o correio destinado à família, havia ali de tudo, desde notícias sobre o andamento do trabalho até mensagens às filhas. Trata-se de um testemunho insignificante de uma cooperação que não teve seguimento, vinha cheio de entusiasmo e não perdi a esperança até tudo se ter desmoronado. Antes de rasgar tudo, dou-vos em síntese conhecimento desta experiência profissional e pessoal.

Um abraço do
Mário


O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1)

Beja Santos

O relato sumário destes acontecimentos aparece em “A Viagem do Tangomau”, o porquê e o como aterrei em Bissalanca nos inícios de Outubro de 1991, naquele tempo problemático da Guerra do Golfo, da assunção do multipartidarismo na sociedade guineense e dos preparativos da Cimeira da Terra. Tudo começou quando Portugal convocou os ministros do ambiente da CPLP para definir posições conjuntas quanto aos dossiês que iriam ser discutidos no Rio de Janeiro, em 1992. Nessas conversações o ministro dos Recursos Naturais e da Indústria da Guiné-Bissau, invocando um protocolo de cooperação em vigor entre os dois países, solicitou um apoio técnico para instituir as bases de uma política de consumidores no país. A escolha para tal missão recaiu em mim, andei lá uma semana em 1990 a apurar o que se pretendia e o que se pretendia era, surpreendentemente, montar um serviço que capacitasse a administração pública local a intervir a favor das melhores condições de vida dos guineenses. Ficou estipulado que eu viria passar o último trimestre de 1991, ao dispor do CITA – Centro de Investigação e Tecnologia Aplicada, unidade dependente do referido ministério, por acaso instalado num sítio conhecido de todos os que ali combateram: estava em pleno Quartel-General, no rés-do-chão à direita, onde recebíamos guia de marcha para os nossos aquartelamentos. Foi exatamente neste ponto que um sargento me informou, sem nenhuma preparação, que Missirá tinha ardido na véspera, na noite de 19 de Março de 1969.

O que ali se passou consta de uma informação pormenorizada que redigi já em Lisboa, em Janeiro seguinte, dos relatórios semanais que enviava à Vice-Presidente do Instituto do Consumidor e das cartas que enviava para casa, duas vezes por semana, não me esquecendo de ir aborrecendo quem me lia com uma floresta de trivialidades, algumas delas associadas a tempos idos. A caminho da reforma, a entregar no Centro de Documentação do meu local de trabalho toneladas de papéis, a embalar aquilo que é mesmo meu, vou enchendo sem desfalecimento o caixote do lixo com tudo aquilo que está definitivamente arquivado ou é inútil. E soube-me bem reler as cartas que seguiram para Lisboa e que vão orientar este relato que vale o que vale.

Cheguei a Bissalanca com resmas de documentação destinada a ser oferecida aos interlocutores da administração interessados em saber por onde se começa qualquer planeamento para a organização de uma política de consumidores. Fui recebido por dois técnicos no meio de uma tarde da época das chuvas (plúmbea e com sinais de tornado à vista) que logo me disseram à queima-roupa que não devia ter vindo, havia muita gente fora, vivia-se afanosamente a formação de partidos. Apeteceu-me brincar, declarei solenemente que não vinha apoiar a formação de nenhum partido, toda a documentação que trazia não era material para comícios. Os meus mal-humorados anfitriões conduziram-me aos aposentos, um quarto na empresa CICER, um espaço interessante, com condições de trabalho e vigilância permanente. Ficava a cerca de 2 km da cidade, só havia o inconveniente de nas noites sem lua vir aos tombos por aquela extensa bolanha, ficaram gratas recordações desses passeios à noite, vindo do jantar na Pensão Central, às vezes quem tinha por mim comiseração era o Dr. Delfim Silva, mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros.


Atirei-me aos contactos, identifiquei os organismos mais motivados (saúde pública, serviços de inspeção de alimentos e do comércio interno), ao fim de alguns dias já estávamos a preparar um esboço para um despacho presidencial de um Conselho Interministerial de Defesa do Consumidor, órgão de consulta do Governo, que possuiria o seu programa autónomo de atividades e a capacidade para emitir recomendações. Inevitavelmente, o seu funcionamento ficaria na órbita do projeto de cooperação com as autoridades portuguesas. E escrevo para casa: “A situação económica e financeira do país excedeu todos os limites críticos e nesta altura não há quadro nenhum que não volte as costas à situação caótica, andam todos eufóricos com a formação de partidos, só aparentados com os sociais-democratas já ouvi referências a três, informaram-me que tudo anda acompanhado de perseguições expurgos e demissões, os quadros mais competentes dizem em voz alta que querem ir ganhar a vida a quem os trate com dignidade”.

Pedi uma entrevista aos sociólogos e economistas do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa para ouvir a sua opinião quanto às perspetivas do consumo na Guiné. Durante a reunião, um deles perguntou-me se eu tinha consciência de que os padrões nutricionais não estavam tão degradados como noutros pontos de África devido ao modo como a FAO geria a distribuição de alimentos, uma parte significativa da população tinha acesso a produtos agrícolas e a peixe da bolanha. Outro questionou-me se eu já tinha entrado numa farmácia, valia a pena lá ir para perceber como de farmácia para farmácia os medicamentos se podiam vender 20 vezes mais caros. E quando a reunião acabou fiquei a saber que o país estava paupérrimo mas tinha 39 ministros e em quase todos os ministérios recebia-se o vencimento com fartos meses de atraso, como é que eu julgava ser possível criar equipas motivadas para os primeiros programas de sensibilização. Deu para pensar, havia que moderar a fé que me trouxera de Lisboa.

No meu espaço na CICER era bem agradável trabalhar à noite mesmo com as repetidas faltas de energia, levara trabalho do Instituto para acabar e tinha sobretudo que alimentar a minha colaboração no Jornal de Notícias e no Comércio de Víveres.


Havia pausas no trabalho, pois claro. Nas errâncias de contactos, conheci o nosso compatriota Paulo Salgado [, e hoje membro da nossa Tabanca Grande,] que me levou ao Cumeré, é uma história fácil de contar. Quando estava em Missirá, de vez em quando recebia uns bilhetes impertinentes de um tal Mamadu Jaquité que me tratava invariavelmente por “Alferes da Merda, se fores vivo para o teu país será um grande desgosto e vergonha para mim”. Logo em 1990, bati à porta na fortaleza da Amura, um oficial de boina vermelha (Ansumane Mané) informou-me que Mamadu Jaquité estava colocado no Cumeré. Pois o Paulo Salgado, nosso confrade, ofereceu-se para me levar lá, foi um passeio agradável, viajaram connosco igualmente a mulher e a filha [, a Conceição e a Paula, igualmente membros da nossa Tabanca Grande].

No Cumeré apresentei-me ao coronel, um homem de estatura meã e olhos intranquilos, disse-lhe que era o tal alferes da merda que vinha abraçá-lo, trazia ali uma caixa isotérmica com umas bebidas com e sem teor alcoólico. Estávamos no meio de uma atmosfera descontraída quando disse ao coronel que ele quase me tinha liquidado na mina anticarro de 16 de Outubro, foi por um triz que não cumpriu as suas promessas. Ele refutou, tinha de facto pensado em desfazer-se de mim mas naquele dia quem montara a mina e ficara emboscado fora o tenente Armando Correia, e lá o chamou, convinha esclarecer o assunto. O tenente entrou de sorriso aberto e desfazia-se em desculpas, minutos depois estávamos todos às gargalhadas. O pior de tudo foi quando ele me pediu, à despedida, meia dúzia de pesos para comprar arroz, óleo e sabão, fui-me mesmo abaixo, voltei a cara para ver Bissau iluminada, parecia querer esquecer que aquele homem, seguramente um bravo militar, pedinchava uma ajuda ao antigo inimigo, a que ultraje um ser humano se tem que sujeitar para estender as mãos à caridade. E escrevo para Lisboa: “Vivem na mais confrangedora das misérias e interrogo-me o que vai no íntimo destes homens que deram a sua juventude para ter um país independente e vivem no maior caos económico”. Mais tarde o Paulo Salgado levou-me a Olossato, que me lembrou Sintra, ressalvadas as distâncias, era uma povoação frondosa com um enorme mangal e muitos laranjais.

Voltando ao trabalho, foi-me apresentado um jornalista da televisão local que se mostrou disponível a fazer um pequeno programa de sensibilização. Garanti-lhe todo o apoio. Foi assim que nasceu o programa televisivo “1 Milhão de Consumidores”, que viveu várias semanas e que foi uma das minhas fontes de alegria enquanto lá estive.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 DE OUTUBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10574: Notas de leitura (422): "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", de Manuel Luís Lomba (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 28 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10588: O Alenquer retoma o contacto (7): Texto sobre a vida de um soldado (Armando Fonseca)

1. Mensagem de Armando Fonseca (ex-Soldado Condutor do Pel Rec Fox 42, Guileje e Aldeia Formosa, 1962/64), com data de 17 de Outubro de 2012:

Caro camarada Vinhal e restantes participantes da tabanca grande, um bem haja a todos.
No ano letivo de 2011, frequentava a minha neta o 9.º ano, foi incumbida de fazer um trabalho em conjunto com três colegas sobre a guerra do ex-ultramar sobre regime de Portugal, e, então ela pediu-me para lhes falar sobre isso, visto eu ter estado envolvido nessa guerra.
Então elaborei um texto para depois recitar para gravação em vídeo, ao qual elas juntariam fotografias a ilustrar o texto.
Assim foi e, o trabalho embora um pouco adulterado saiu bom.

Vou enviar esse texto, e se os digníssimos editores acharem por bem publicá-lo muito bem, caso contrário tudo bem.
Não envio o próprio trabalho porque devido aos meus fracos conhecimentos de informática não me será possível fazê-lo.


O Alenquer retoma o contacto (7)

Texto sobre a vida de um soldado

"Chamo-me Armando Fonseca, tenho 70 anos, cumpri o serviço militar desde Abril 1961 até Julho 1964. Durante esse período 26 meses foram passados na Guiné, desde Maio de 1962 até Julho de 1964.

Quando em Janeiro de 1962 fui mobilizado para ir para essa província já havia guerra em Angola e os Guineenses pela mão do PAIGC davam os primeiros passos para o mesmo fim.

Durante o período que antecedeu o embarque, houve alguma preparação para o fim em vista e eu fazendo parte de uma secção de Auto-metralhadoras, como condutor, fui enviado juntamente com os restantes companheiros da secção para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém a fim de aí recebermos instrução de operação e manutenção do carro e do respectivo armamento que o compunha.
Terminada esta instrução regressamos para Castelo Branco para nos juntarmos aos restantes camaradas do Pelotão para aí continuarmos com a preparação, nem sempre a adequada, para os fins que nos esperavam.

Assim chegou o dia 20 de Maio de 1962 dia em que o navio "António Carlos" nos esperava no cais de Alcântara para nos transportar até à Guiné. Nesse dia, lá estavam os meus entes mais queridos para se despedirem de mim, meus pais, irmão, namorada e mais alguns familiares e amigos. Depois das despedidas embarquei no navio e quando da largada do mesmo ele emitia alguns apitos que faziam cortar o coração, esses silvos despertaram em mim tal angústia que ainda hoje me causa arrepios recordar a partida.

O navio de carga ANTÓNIO CARLOS fotografado no Norte da Europa com as cores da Sociedade Geral (Imagem da Skyfotos – colecção de L. M. Correia) In: Dicionário de Navios Portugueses, com a devida vénia.

A viagem que durou sete dias decorreu de forma normal, mas quando cheguei o ambiente era totalmente diferente ao que estava habituado, um calor abrasador, um cheiro próprio daquele ambiente local, enfim tudo coisas a que me fui habituando.

O meu pelotão ficou instalado nos arredores de Bissau, no Quartel General numa caserna onde só existiam os ferros das camas e os colchões, a roupa de cama estava ainda embarcada no navio e só nos foi distribuída uma manta para ornamentar a cama e nos cobrirmos. Com o calor intenso que se fazia sentir era impossível suportar a manta, por outro lado destapados, os mosquitos atacavam em força, era insuportável aquela situação.
Passados três dias apareceram então as roupas de cama e cada um a seu belo prazer foi na cidade mandar fazer mosquiteiros que colocados sobre as camas evitavam assim sermos comidos pelos mosquitos durante a noite.
Havia pouca higiene, visto a agua ser muito pouca e de muito má qualidade. Havia um período do dia em que havia água nos balneários para se tomar banho mas fora desse período já não era possível tomar banho, por falta de água.
A água para se beber tinha que ser filtrada em equipamentos próprios e tratada quimicamente com comprimidos a fim de evitar a propagação de doenças, tais como a malária e o paludismo.

Nesta altura a guerra ainda estava muito no começo, havia aqui e ali algumas escaramuças e nós ficamos a fazer a segurança da cidade e do aeroporto. Então, fazia serviço durante 24 horas no aeroporto de Bissalanca, passando inspecções à pista e mantendo a segurança nas aterragens e nas descolagens dos aviões tanto civis como militares. Durante essas inspecções por vezes eram avistadas cobras que atravessavam a pista e nas cercanias junto do arame farpado viam-se também hienas e onças que procuravam o seu meio de subsistência.
Nos restantes dias estávamos às ordens para qualquer imprevisto a que tivéssemos que acorrer. Às vezes, muito raras, tinha um dia de folga que aproveitava para ir até à cidade, para ir ao cinema ou fazer algumas compras de certos artigos que não me eram fornecidos.

Assim decorreram os primeiros dezasseis meses, até que o Batalhão que se encontrava em Mansoa e tinha distribuídas companhias por Mansabá e Bissorã as quais tinha que abastecer de géneros alimentícios e outros já estava com dificuldade em se movimentar devido aos ataques inimigos e então pediu a Bissau um carro de Cavalaria para apoio às colunas que tinha que fazer deslocar para o abastecimento dos seus homens e, calhou à guarnição do meu carro essa missão.
Fui então deslocado para essa região para apoio a essas colunas que diariamente se tinham que deslocar a Mansabá ou a Bissorã. Aqui os perigos aumentaram porque a guerra já estava a tomar outras proporções, havia emboscadas, com as quais se tinha que lidar especialmente nas deslocações a Mansabá e começavam a aparecer minas anti-carro aqui e ali montadas nos caminhos.

Numa das minhas deslocações com destino a Mansabá, mais ao menos a meio do percurso, rebentou uma mina centésimos de segundo antes do carro estar sobre o local onde ela estava montada, abriu uma grande cratera sobre a qual o carro passou pelo ar mas nada de mal nos aconteceu. Para os restantes carros da coluna passarem teve que ser aberta uma picada ao lado da estrada porque a cratera era maior que a largura dos rodados dos carros.

Certa madrugada foi recebida informação de que uma pequena povoação, denominada Porto Gole, situada numa das margens do rio Geba estava a ser atacada, lá fomos de imediato em socorro do chefe de posto e dos cipaios que mantinham ali vigilância, visto o rio ser um meio importante de comunicação entre Bissau e o interior Norte. Ao chegarmos encontravam-se queimadas várias moranças, dois cipaios mortos e o chefe de posto e parte da população tinha sido raptada pelo inimigo. Permaneci aí alguns dias até ser montado com segurança um destacamento militar que passava agora a garantir a segurança dos barcos que circulavam no rio.
O percurso para essa povoação era muito sinuoso tinha que se atravessar bolanhas em que dificilmente se via a estrada por onde se podia passar, visto estar cercada de água e até submersa nalguns pontos. Numa dessas deslocações, devido ao acidentado do terreno, magoei um dedo da mão direita que me deixou inapto durante algum tempo, assim foi nomeado outro condutor para me substituir durante esse período, só que, na primeira deslocação que fez a Bissorã, rebentou uma mina debaixo do carro que o deixou totalmente inutilizado, uma das rodas da frente foi ficar em cima de uma árvore e por lá permaneceu muito tempo, visto ter ficado de modo que era muito difícil retirá-la. O condutor foi o único que sofreu algumas escoriações, a restante tripulação não sofreu nada devido à boa blindagem que compunha aquelas auto-metralhadoras.

Sem carro já nada fazia naquelas paragens e regressei a Bissau substituído por outra guarnição com outro carro. O período de permanência em Mansoa decorreu entre 28 de Agosto e 18 de Novembro de 1963. Chegado a Bissau continuei com os piquetes ao aeroporto e outras missões similares, só que, a 21 de Janeiro de 1964 é o pelotão destacado para o Sul para reforçar as tropas ali existentes, visto a situação ali já estar muito difícil e lá vamos nós a caminho de Aldeia Formosa, hoje chamada de Quebo.
Para fazermos esse percurso que em condições normais durava algumas horas, demoramos dois dias porque a estrada nalguns locais tinha que ser toda picada a fim de detectar se havia minas montadas. A certa altura do percurso fomos atacados por milhares de abelhas que deixaram toda a coluna em alvoroço, esses ataques eram tão ou mais perigosos que os provocados pelo inimigo e às vezes surgiam em simultâneo.

Ao chegarmos a Aldeia Formosa instalamo-nos aí, mas a nossa missão era fazer escolta a uma operação que ia ser desencadeada para desobstruir a estrada que se dirigia para Cacine, a qual tinha centenas de árvores derrubadas que não permitiam o movimento por terra a fim de comunicar com alguns destacamentos que assim permaneciam isolados. Então começamos a montar destacamentos ao longo dessa estrada após a sua desobstrução a fim de garantir que não voltaria a suceder o mesmo.

O primeiro destacamento a ser montado foi o de Guileje, que anos depois teve que ser abandonado devido à intensidade dos ataques inimigos. Seguiu-se Ganturé que ficava a três escassos quilómetros de Gadamael onde se encontrava uma companhia totalmente isolada por terra, a única comunicação que tinha era pelo rio e mesmo assim só quando das marés vivas, uma vez por mês os barcos lá conseguiam chegar.
Seguiram-se os destacamentos de Sangonhá e Cacoca e até aqui embora tenham havido várias emboscadas, e tenham sido descobertas várias minas anti-carro, do meu pelotão só eu tinha sido ferido na cara por duas vezes, sempre coisa de pouca gravidade, mas, no dia 2 de Julho foi montada pelo inimigo uma emboscada, onde rebentaram duas minas destruindo por completo uma auto-metralhadora e um granadeiro, matando dois camaradas e ferindo com muita gravidade mais três, os quais levaram algum tempo para reconstruir os órgãos afectados e ainda hoje sofrem dessas maleitas.

A partir desta data nós ficamos totalmente desanimados e já não fizemos mais nada, até porque já tínhamos ultrapassado o tempo previsto para a nossa comissão. Regressamos então para Bissau numa lancha da marinha a fim de aguardar o regresso que teve lugar no dia 21 no Paquete Índia, chegando a Lisboa a 30 de Julho.

Navio Índia. Foto Navios Mercantes Portugueses, com a devida vénia

À chegada esperavam-me os meus familiares que me receberam com toda a alegria e eu mais alegre estava porque em determinadas alturas pensava que já não regressava para os tornar a ver.
Nesse dia não pude seguir com eles visto que ainda tive que ir a Castelo Branco fazer o espólio dos fardamentos que trazia e receber as guias que permitiam passar à vida civil e só no dia 30 regressei.
Nesse dia tinha então todos os meus familiares e amigos à minha espera e começou aí uma nova vida".

Despeço-me com um grande abraço
Armando Fonseca (O Alenquer)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8331: O Alenquer retoma o contacto (6): Velhas recordações (Armando Fonseca)

Guiné 63/74 - P10587: Memórias de Manuel Joaquim (8): Bissau, 1965: Pourri avant d’être mûri

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 25 de Outubro de 2012:

Meus caros editor e coeditores, esforçados trabalhadores do blogue a quem agradeço toda a vossa dedicação:
Aqui vai para "postar" mais um naco das minhas memórias de combatente.
O assunto poderá ter um cariz muito pessoal e ter reduzido interesse para a maioria dos habitantes e outros frequentadores desta Tabanca Grande. Falo por mim, que gosto dele.
Ao vosso critério.

Um grande abraço do
Manuel Joaquim


Bissau, 1965: Pourri avant d’être mûri
[Apodrecido antes de ficar maduro]

A razão de Henry Miller ser para aqui chamado com o seu “Trópico de Capricórnio” assenta num cantinho bem vivo das minhas memórias de Bissau.

Começo por apresentar o livro com uma transcrição:

«Estou-me tornando eu mesmo? Penso que não. Sou uma pessoa desgraçada, desconsolada, miserável. Pareço ter perdido tudo. De facto, mal sou uma pessoa, assemelho-me mais a um animal. (…) Não tenho pensamentos, nem sonhos, nem desejos. Sou completamente sadio e vazio. Sou uma nulidade. Sou tão vivo e sadio que me assemelho ao fruto suculento e enganador que pende das árvores (…). Mais um raio de sol e estarei podre. “Pourri avant d’être mûri! ». Henry Miller, “Trópico de Capricórnio”

Não foram estas frases, foi o livro de onde saíram que me levou a gostar (muito) de Henry Miller, escritor norte-americano muitas vezes atirado abusivamente para o lote de autores de literatura pornográfica. Considerado “maldito” no seu país durante a primeira metade do séc. XX, é hoje tido por muitos como um dos seus grandes escritores.

A escrita de Miller abala os alicerces da hipocrisia humana (moral, social e política), como disse um crítico. Um dos seus livros, a que estive (e estou) muito ligado, é o “Trópico de Capricórnio”, o qual tenho como referência obrigatória na minha formação. Dele disse a revista Time que poderia ter sido escrito por Harpo Marx e Hieronimus Bosch, juntos. Obra de 1939, não tem perdido atualidade e a sua “Companhia Telegráfica Cosmodemoníaca” ( “figura” com peso neste livro) tem réplicas atuais bem vivas.

Na capa do exemplar que tenho (acima reproduzida) diz o editor que H. Miller povoa N.York “com aqueles fabulosos personagens, turbulentamente engraçados, chocantemente grosseiros, totalmente diferentes de todos os personagens da literatura bem educada e assim espantosamente verdadeiros e reais”. Concordo plenamente. Ainda hoje, quando preciso de me pôr bem com a vida, pode acontecer uma visita às suas páginas para procurar juventude de espírito, energia e boa disposição naquele caos literário e imagético, classificado por um outro crítico como “um grandioso hino de louvor a tudo quanto é ainda alegre, sadio, feliz e afirmativo”.

Então, vamos agora ao tema.

Setembro/1965, e foi assim:

À partida de Lisboa (31/julho/65) diziam-nos que Cabedú, no sul da Guiné, seria provavelmente o destino da CCaç 1419, a minha companhia. Se assim era para ser, alguém alterou o programa e demos por nós, felizardos, colocados em Bissau enquanto as outras companhias do BCaç 1857, a 1420 e a 1421, cuja malta tinha lamentado a nossa “sorte”, batiam duramente com os costados em Fulacunda e Mansabá, respectivamente.

“Pronto cá estou. A viagem correu perfeitamente e Bissau apareceu-me airosa, muito mais bonita do que eu a imaginava. O clima está bastante razoável. Menos quente do que aí, quando estive em S.ta Margarida. Fiquei e estou instalado num quartel aqui em Bissau, estadia esta que se prolongará durante uns tempos. Bom ambiente, em que parece não se pensar em guerra leva-nos a encarar isto com optimismo”. (Primeiras palavras da 1ª carta que enviei da Guiné, no dia 07/08/65).


Pormenor da marginal do porto de Bissau. Foto/postal do final da década de 1960, retirada de http://images,forum-auto.com/

Aquartelados no chamado “600” em S.ta Luzia, lá íamos passando o tempo entre o prazer da descoberta da cidade e suas vivências, a monotonia dos serviços de segurança na zona e uma ou outra saída esporádica p’rás bandas de Mansoa, quase sempre só a cheirar a guerra.

Ora, a um dado momento, comecei a ler o “Trópico de Capricórnio” de Henry Miller, emprestado por um furriel dos “escritórios” do QG ou coisa parecida, meu camarada do tempo de recruta em Tavira. Éramos amigos. Digo “éramos” porque aconteceu eu sair de Bissau rumo a Bissorã sem ter tido hipóteses de dele me despedir. E nunca mais nos encontrámos.

É que a 19 de outubro, pouco tempo antes dessa saída, regressei a Bissau após uma ausência de 10 dias em serviço de segurança, “armado em marinheiro de guerra” a bordo de um pequeno barco no percurso Bissau-Farim-Bissau (que belas imagens do rio Cacheu me ficaram desta viagem!). Tinha ido acompanhar dois batelões com abastecimentos para Bigene, Binta e Farim. Ao voltar, fui apanhado de surpresa com a deslocalização da CCaç.1419 para Bissorã e, perante a urgência de “emalar a trouxa e marchar”, nem tive tempo de o procurar.

Nunca mais vi este furriel (*) e há muito tempo que esqueci o seu nome. A imagem que dele tenho nem é a de Bissau mas a de Tavira dos tempos de incorporação militar e onde, perante as exigências dos exercícios físicos, as “passas do Algarve” lhe custaram a passar mais a ele do que a quase todos os outros seus camaradas de recruta. É que o rapaz tinha os chamados “pés chatos” a um nível extremo, se assim se pode dizer, o que lhe dificultava muito o movimento. Talvez esteja a exagerar mas digo que, para melhor se equilibrar, ele andava “à Charlot” mas sem a ligeireza deste. Melhor dizendo, era bastante lento no andar e avançava com os pés afastados um do outro e virados para fora alguns 40 graus em relação ao eixo de progressão. Aguentou estoicamente e até ficou com uma especialidade compatível com as suas capacidades físicas. Penso que era da zona de Rio Maior mas nem sei se esta ideia tem fundamento.

E então lá fui para Bissorã com o “Trópico …” num bonito saco de viagem azul, com a intenção de mais cedo ou mais tarde o fazer voltar às mãos do seu dono. Mas, deficiente que estava a “ponte” sobre o rio Braia (estrada Mansoa-Bissorã), houve as trocas e baldrocas de bagagens entre as viaturas idas de Bissau e as vindas de Bissorã. Na confusão gerada, e na minha distração, o saco atraiu as mãos de alguém, nunca mais lhe pus a vista em cima. Um desastre.
Com o saco lá se foram o livro e as minhas coisas mais queridas (carteira com dinheiro e todos os documentos pessoais, um isqueiro de prata dado pela namorada no meu recente aniversário, correspondência entretanto recebida, fotos, etc.). Tudo levou sumiço. Apesar de na minha vida ter sido “n” vezes vítima da não devolução de livros emprestados, ficou-me esta mágoa de não me ter sido possível devolver este.

Mas voltemos atrás, ao porquê desta historieta. Voltemos a Bissau, aí para meados de Setembro, quando nos apareceu na camarata uma figura interessante chegada lá do sul, Cabedú (**), à procura de uma cama vaga. O furriel Vieira Lopes (**) foi muito bem recebido e rapidamente se integrou, com a sua “velhice”, naquele ambiente. Aparecia-nos vindo das terras do nosso antes temido “futuro prometido e imaginado” e nós bebíamos as suas palavras com um misto de curiosidade, aprendizagem e alegria por nos estarmos a ver livres daqueles ambientes funestos que nos descrevia. Calculo até, pela minha experiência adquirida posteriormente, que algum exagero pairaria nas suas “histórias”. Mas na altura bebíamos aquilo com uma grande e temerosa excitação!

Como já disse, o livro de que falo tem diversas passagens onde a linguagem usada poderá ser considerada pornográfica por alguém mais puritano. Será difícil nos tempos de hoje encontrar esse alguém entre militares mas, há 40 e tal anos, imagine-se a excitação que tal tipo de literatura causava naquele ambiente de caserna, era enorme! Estas passagens eram lidas em voz alta e alvo dos mais diversos comentários cheios de galhofaria de teor sexual bem “hardcore”. Está-se mesmo a ver que o livro era vítima de rápidas leituras “em diagonal”, que é como quem diz, saltava-se de página em página à procura das partes mais “picantes”, as quais até passaram a ser sublinhadas a lápis. E eram muitas.

Talvez que a primeira pessoa a pegar a sério no livro tenha sido o “velhinho” furriel vindo do sul e ali aboletado no nosso dormitório. E foi assim que ele, um dia, deitado na cama e com a voz grossa que o caracterizava, rompeu o silêncio casual com uma bem sonora explosão vocal: pourri avant d’être mûri!

O inesperado da situação levou toda a gente a fixar o Vieira Lopes, talvez à espera de mais qualquer coisa, o mais provável à espera de saber o que é que o tipo queria dizer com aquilo e o porquê daquela explosão de palavras em francês. Ele compreendeu e com ar calmo, solene, teatral, pespega-nos com a leitura em voz alta do parágrafo acima transcrito, no início deste texto, acabando a gritar: pourri avant d’être mûri! E como que traduzindo: “estou podre antes de amadurecer, ca..lho!”

Acredito que para a maior parte dos assistentes o que lhe ficou na memória, e por pouco tempo, foi este grito, uma atitude um pouco diferente do normal, se calhar de mais um “cacimbado” que por ali andava. Aquilo de ele estar podre antes de amadurecer não tinha sentido, só poderia sair de cabeça desarranjada! O tempo de Guiné ainda era mínimo para nós mas já tínhamos dado por uns disparatados comportamentos vindos de personagens bem patuscas, por vezes divertidas, uns tipos “passados” de todo que cirandavam pelo bar e pela messe. Dizia-se até que alguns deles eram bons encenadores. Se o eram, sabiam bem do ofício. Mas um ou outro, coitado, parecia mesmo estar “pourri avant d’être mûri”. A mim, este grito do Vieira Lopes marcou-me como se tivesse levado um soco e levou-me ao livro para uma leitura a sério, a olhar aquela escrita com outros “olhos”.

Revejo nitidamente esta cena e o seu protagonista e pergunto-me como é possível lembrar-me, hoje, do seu nome (será este?) e ter esquecido o nome do camarada com quem confraternizava e que era o dono do livro! Lembrar-me bem disto e não me lembrar da maior parte do que fiz em Bissau durante os dois meses e meio que lá passei indica que o facto me marcou bem fundo. Talvez algumas referências escritas que conservei sirvam para o explicar.


Eis algumas, datadas de Bissau, Setembro/1965:

«Como Miller no seu livro também eu poderei estar a apodrecer aqui, neste trópico que não é o de Capricórnio mas o de Câncer? 
No fim disto tudo, o que restará daquilo que fui até este momento, nada? 
Irei por aqui cair aos pedaços, apodrecido, antes de eu e os meus projectos amadurecermos? 
Oh sorte, por onde andas? 
Estarei condenado a apodrecer aqui?

Fui expulso da minha terra para uma outra cheia de água e lama, de mosquitos animais que muito incomodam e de moscardos mecânicos que matam, simplesmente matam sem a maior parte de nós perguntar porquê! 
Cá estou, sei que tenho medo mas ainda não sei quanto, devo estar anestesiado com o que me aconteceu. 
Cá estou, desterrado, numa missão cujo sentido me passa ao lado, eu conheço-o mas não gosto dele. 
É um sentido sem sentido. 

Preciso de me dar a volta. Olho para os outros e sinto, vejo, que não posso ficar sozinho a cozinhar angústias nesta solidão de alma. 
Tenho de encontrar a melhor maneira de viver neste ambiente, tenho de me construir com o que de bom por aqui encontrar. 

Pourri avant d’être mûri? Não, não posso permitir que tal me aconteça. Não posso apodrecer, a vida espera-me e ainda me faltarão muitos anos para ficar maduro. Deixem-me amadurecer primeiro. Deixem-me escolher quem me há-de provar quando estiver maduro. Não quero alimentar facínoras e seus capangas, os que aqui me meteram. 
Quero viver, para poder ser um fruto maduro, lindo e apetitoso, que dê prazer a quem o provar, prazer esse que também será meu. Até ao fim do que de mim restar, aquele que é inevitável pelas leis da natureza, até à dissolução no universo infinito.»

Imagem do percurso perfeito. Foto retirada de http://taicashewnut.com/

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NOTA FINAL: 

Gostei de encontrar estas minhas reflexões de juventude, sinto-me muito bem por me rever naquele jovem que as escreveu, ainda por cima com alguma qualidade literária e com um cunho ideológico que me continua a agradar.

Estes tempos que agora vivo (vivemos) são tempos nebulosos, espúrios, irritantes, incertos, difíceis de viver e onde a esperança é uma figura fugitiva.

Socialmente, lembram-me o tempo da minha juventude. Dou por mim a compará-los, a comparar a situação dos jovens de hoje com a dos jovens desse meu tempo: o horizonte fechado, a incerteza do futuro, os problemas de subsistência, a dificuldade em “respirar”, a sensação de que algo tem de estoirar e o mais depressa possível …

Estou com 71 anos, tive sorte e julgo ter ultrapassado saudavelmente as dores daquela guerra da Guiné, fiquei maduro, tentei e tento ser “apetitoso” para o meu semelhante, continuo a dar-me a provar e a não prescindir de escolher alguns dos provadores, aqueles que penso serem sérios na apreciação, gostem ou não do que provam.

Levei, é verdade, e não me livro de continuar a levar algumas dentadas mais agressivas. Tenho conseguido superar o incómodo ou mesmo a dor. Em contrapartida, felizmente, tenho sido e sou sujeito de muitas dentadinhas deliciosas que me fazem crer ter sido cumprido o meu desejo, expresso há 47 anos, e que era o de ficar maduro e apetitoso.

E ainda não apodreci. Parece-me!…

(*) Por onde andará este camarada e amigo furriel? Haverá por aqui gente do meu tempo de Tavira (janeiro-junho de 1964) ou do tempo de Bissau (1965-1967) e que dele tenha referências? Será ele leitor deste blog? Se o for e não estiver interessado no contacto, sempre ficará a saber que o seu “Trópico de Capricórnio” seguiu um outro percurso que não o que ele pensa e deve ter “iluminado” e excitado outra gente que não o Manuel Joaquim e os seus “compinchas” da CCaç 1419. Estejas onde estiveres, meu amigo de outros e velhos tempos, aqui vai um grande abraço.

(**) Apesar de estar convencido da verdade destes nomes, já não garanto nada, já não acredito muito na minha memória. O que me tem ajudado muitas vezes são as referências escritas que possuo mas elas também são limitadas. Assim é neste caso.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10105: Memórias de Manuel Joaquim (7): Miserere

Guiné 63/74 - P10586: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (5): Os cheiros de Lisboa, Parte II: uma sardinhada em Cacilhas (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)













Lisboa > Travessa do Ferragial, nº 1 > Lisboa, o Cais do Sodré, o Tejo, Cacilhas... Um dos mais surpreendentes, deslumbrantes e... inesperados miradouros de Lisboa... O último piso do prédio nº 1 da Travessa do Ferragial onde funciona o ACISJF - Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina que "serve almoços", de segunda a sexta-feira, das 12h00 às 15h00, em regime de self-service, aberto a todo o mundo... Menu: preços desde 2 € (!)... Buffet (mínimo 10 pessoas e menu a combinar) por pessoa: 12 €... Um dia temos que lá levar uma representação da  Tabanca Grande!... Fotos tiradas em 30 de setembro de 2011, num belo dia de outono em que lá fui almoçar com a Alice e a sua tertúlia...

O Mário Sasso, se fosse vivo,  teria gostado de conhecer este miradouro (um dos muitos que fazem desta cidade um sitío estranho, maravilhoso e fascinante  aos olhos dos turistas que nos visitam, e que muitas vezes estão melhor informados sobre os segredos de  Lisboa do que muitos lisboetas...).

Fotos: © Luís Graça  (2011). Todos os direitos reservados...


A. Continuação da nova série do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), jurista da Caixa Geral de Depósitos, reformado [, foto atual à direita].

[ Esta nova série evoca a figura e narra a história alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728 - Os Palmeirins -, nascido na Beira, em Moçambique, de uma família de origem eslovena, os Sasso; o Mário Sasso foi morto em combate no Cantanhez, em 5 de dezembro de 1965].




B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné > 4. Os cheiros de Lisboa > 4.2. Uma sardinhada em Cacilhas

por J.L. Mendes Gomes [foto acima, assinalado com um círculo a vermelho, Catió, c. 1965; foto do autor]


As férias escolares ainda não tinham acabado. Mas, o Mário ainda tinha de vencer o exame de admissão à faculdade. E não era p’ra brincadeiras. Alínea de filosóficas. O mundo das ideias e a sua evolução, através dos tempos, a visão dos povos pelo mundo fora, acerca dos mesmos temas, exercia sobre ele um fascínio insaciável.

Com a ajuda do primo, mais velho, o Virgílio, que passara para o segundo ano de medicina, todas as complicações da inscrição, e tudo o mais, foi fácil. As provas de latim e filosofia, seriam na primeira semana de Outubro.

Toda a gente se entregou às respectivas tarefas, com sentido de responsabilidade. Fruto da disciplina que reinava na casa laboriosa do tio Diógenes.

Durante o dia, havia silêncio, lá em casa. A atenta, tia Judite, ocupava-se, com esmero e dedicação, de todas as lides da casa e da cozinha. Que perfumes… naquela cozinha divinal! Por isso, quando chegou o primeiro sábado, a ideia lançada pelo tio Diógenes de irem para uma sardinhada, no lado de lá do Tejo, caiu, mesmo a matar...

De eléctrico amarelo e ronceiro até ao Cais do Sodré; atravessava-se, depois, o rio largo, nos largos Cacilheiros, achatados, onde tudo cabia, desde as pessoas às bestas aparelhadas, às carroças, aos poucos automóveis que então havia, tudo seguia sobre o terreiro de ripas de madeira, rentinho às águas do Tejo.

Parecia impossível, como tudo não ia ao fundo!… Eram giros os eléctricos, de bancos de madeira envernizada. Muito airosos, por causa das janelas altas, sobre a rua e os passeios da cidade.

De Algés ao centro de Lisboa, a viagem seguia por entre casas afidalgadas e palacetes, alamedas de árvores, em cada lado. As linhas de ferro cintilante seguiam no meio da rua, à vontade.
O guarda-freio, garboso no seu papel e na farda cinzenta, com botões amarelos, a luzir, ia dando sinal com toques secos e repicados de campainha, com o pé no pedal.

Barato. Um tostão, por pessoa. Por cinco tostões ia-se ao fim de cada linha, nos troços mais longos que havia: a Moscavide, à Ameixoeira e Lumiar e o circuito, longo, do Príncipe Real …por Alfama, pelo Castelo.

Como era linda e sossegada a cidade de Lisboa. Tão asseada, nas ruas e passeios, bem lavados, com calçadas de desenhos em pedra florida. As varandas e janelas, engalanadas de vasos de barro com sardinheiras, begónias e outras flores de cores garridas.

As escadas a subir, lentas, por entre o casario aconchegado nos bairros de Alcântara e dos fundos da Bica, pelas encostas, até ao Chiado, da fidalguia e das igrejas sumptuosas, de outros tempos. O elevador da Bica, que pacto lindo, de amizade, no sobe e desce permanente, entre os vizinhos da Ribeira, de São Paulo e os fadistas castiços do Bairro Alto.

Finalmente, o Largo do Cais do Sodré, ali estava. Com muitas árvores, de rica sombra; muitas pombas a voarem buliçosas, no céu à volta da estátuaaltiva, do Mouzinho da Silveira, erguida ao centro. As derivações p’ra o Chiado, para a zona traseira, com muitos bares e cabarets, restaurantes e tascas castiças, com vinho ao copo de três e petiscos…igrejas e casas fartas de comércio, de todo o tipo.

À beira das escadas suaves da formosa e moderna estação do comboio de Cascais, vendia-se flores e fruta, em barracas, toscas, cobertas por toldos de pano crú, muito velho, havia cauteleiros a seduzirem os inúmeros passageiros que, em formigueiro, iam ou vinham para o comboio e os barcos de Cacilhas.

Lá ao fundo, junto ao molhe do rio, ficava o cais de atracar dos tão famosos cacilheiros, pesados, de ferro. Era neles que todos iriam, para Cacilhas. Dos bilhetes tratou o tio Diógenes. A rapaziada subiu as escadas que dão para o topo do barco. Queriam ver tudo, ali à frente…

O Mário sentia que estava, finalmente, numa das zonas mais castiças da lendária Lisboa. Dali do meio do Tejo, imponente, iria poder ver a cidade toda, em painel vivo e ao natural e a fervilhar: o castelo, a esbordar de verdura, a Sé e a Igreja majestosa de São Vicente de Fora, lá no alto, os bairros de Alfama e da Mouraria, o Terreiro do Paço, com a estátua do D. José, a cúpula da Basílica da Estrela, a mata de Monsanto e a encosta fidalga da Ajuda.

Que manancial de surpresas e de encanto a explorar nos tempos mais próximos!

Voltado p’ràs bandas de Cacilhas, o espectáculo também era encantador. As encostas de Almada, misteriosa, com um castelo altaneiro, lá ao cimo, e as escarpas descarnadas sobre o Tejo; à borda d’água, numa nesga de terra, onde parecia nada caber, havia vários pavilhões de fábricas a trabalhar; o casario de Cacilhas, à vista, e a torre saliente e escura da igreja, tudo era desordenado e pobre. As docas negras da Margueira, ali ao pé. O resto seria para ver depois.

Ali estavam elas, as sardinhas, frescas e molhadas de água do mar, em largos açafates, sobre mochos de pau enegrecido, ao pé da porta exterior dos restaurantes fundos, na ruela de Cacilhas, que vai rente à igreja.

O tio Diógenes e a família já eram fregueses bem conhecidos na casa das sardinhadas. Desde a idade do biberão, transitavam aos poucos para os bancos corridos das mesas compridas .
- Ah!. hoje, vem gente nova. - Exclamou o sr Isidro lá ao fundo, quando contou, num relance toda a família e lhe sobrava um.
- É o namorado da menina?…- Avançou a rebentar de curiosidade.
- É um sobrinho que trouxemos de Moçambique. Vem para cá, estudar.
- È bem da pinta do sr. Diógenes. É ou não é? Eu para tirar parecenças ninguém me bate. Oh este nariz grosso e comprido; os lábios gordos; os olhos grandes e saídos; só o cabelo é que não. É escorrido e comprido.
- É verdade, isso vem da mãe dele. Chama-se Mário tem 17 anos. Vai estudar filosofia.
- Ah, está muito adiantado, p’rà idade.!…
- Lá em Moçambique, não havia nada para o distrair, de modo que era só estudar – adiantou o tio.
- É verdade. Aqui em Lisboa, as coisa não são bem assim, pois não, ? Há muita coisa a puxar noutro sentido. Se bem que os filhos do sr. Diógenes não têm deixado mal os pais, pois não?
- Não. De modo nenhum. Aqui o Pedro está no 3º ano de Medicina, com 20 anos. E se é difícil a medicina; a Isabel, com 19, está em farmácia, passou ao 2º ano.
- É bonito ver filhos assim, nos tempos que correm… Aqueles beatles, guedelhudos e desafinados estão a escavacar tudo! Se. fossem meus filhos…Os seus, aqui ao pé dos pais, é maravilhoso. Vamos ver como se porta o primo…
- Ah, não temos dúvidas de que não vai deixar-nos ficar mal. Também, era só ir à bilheteira, comprar-lhe o bilhete de volta às terras de Moçambique.

Meio a sério, meio a brincar, o aviso estava feito. O Mário registou.
- Bom , sr. Isidro. Vamos ao que nos trouxe aqui.
- São uma especialidade, sr. Diógenes. Fresquíssimas. Chegaram esta manhã.
- Sim. De facto não enganam.

Sentaram-se todos em duas mesas. À maneira de sempre. O pai, no topo e a mãe ao seu lado direito. A  Isabel, ao lado da mãe e os dois primos, frente a frente. A mulher do sr. isidro fora-se adiantando, enquanto o homem da casa se entendia com os clientes já familiares.

Uma volumosa caneca de vidro, cheia de sangria,  foi a luz vermelha que se abriu primeiro, naquela mesa. De fresca, até o vidro embaciara e começava a escorrer. Depressa os copos ficaram cheios com a primeira rodada servida pela tia, sempre atenta ao seu papel.

Uma cesta de fatias de broa e pães do forno, tudo da terra do sr. Isidro, a Malveira. Uma travessa grande a esbordar de salada mista, com pedaços de pimentos verdes e fatias de tomate e cebola, espalhadas sobre um mar de alfaces verdinhas, fizeram disparar o apetite a toda a volta da mesa.

Só faltavam as sardinhas. O cheiro já chegara, cada vez mais apurado e perfumado, como só acontece com este delicioso petisco. Toda a família era perdida por sardinhas assadas. Vamos lá a ver como funciona o Mário.

Este estava desconfiado de que não deveria gostar. Por isso, sentia um certo embaraço. Fingir não era com ele. Se não gostasse, não gostava e pronto. O tio já dera a entender que não seria o fim do mundo. O sr. Isidro arranjaria logo umas febras de porco, para salvar a situação. E se eram boas, aquelas fêveras…não ficavam atrás. Mas se era p’rà sardinha, era p’rà sardinha que tinham vindo.

A srª Isasbel , uma senhora avantajada, mas de luzidias faces papudas, com os olhos a brilhar, avançou com primeira rodada de sardinhas: uma dúzia e meia. Bem tostadinhas e gordas quanto baste. Rescendiam vida na pele reluzente e tisnada pelas brasas.

A srª Judite fez a distribuição pelos pratos que se foram abeirando. Três pra cada, para já. Com batata cozida, para quem quis. Ali, era permitido pegar-lhe à mão. O tio apressou-se a dar o exemplo, para que não houvesse dúvidas.

Fez-se silêncio e a voragem desceu, sobre a mesa. Num instante, só espinhas ficaram e bem aparadas, em todos os pratos. Incluindo o do Mário de Moçambique. Depois de provar foi ele o primeiro a devorar as três desditosas... que lhe tocaram.

Uma gargalhada geral cobriu a alegria da mesa. Não havia dúvidas. Tinham ali um parceiro, de respeito O Mário, via-se bem, naqueles beiços grossos, lambuzados, como se fosse já um aficionado inveterado…

Os olhos bugalhudos estralejavam-lhe, de satisfação…e os da família não lhe ficavam atrás…
- A esta hora, estão os teus pais a deleitar-se com um açafate de ostras, lá na Beira. - disse o tio Diógenes, limpando os dedos a um guardanapo branquinho como a neve. Até deu pena vê-lo como ficou…
- Não tenho inveja nenhuma .- atalhou logo o Mário, sem se dar conta, no primeiro instante, do que custou aos pais terem-no deixado vir. Filho único...

A tia pareceu adivinhar o que se passava na cabeça do sobrinho que sentiu ter metido água.
- Já tens saudades dos pais, não tens, Mário?

Os olhos, reluzentes, responderam por si, bem afirmativos, mas resposta não houve.
- P’rò ano, vêm cá eles passar as férias.

Sentiu que a ideia, de todo, não lhe desagradou, apesar de só terem passado umas semanas. Daqui por um ano…nem se fala.

Os pais até são uns companheiraços, para ele.

(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de outubro de 2012 >



Guiné 63/74 - P10585: Parabéns a você (487): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10551: Parabéns a você (486): Manuel Moreira de Castro, ex-Soldado da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968/69)