
Meus caros amigos,
Junto vos remeto uma recensão crítica dividida em duas partes do livro de Patrick Chabal, intitulado “Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people's war”, Cambridge University Press, 1983, reeditado em 2003.
A obra, cujo conteúdo é bem conhecido, é uma das mais conhecidas biografias sobre o fundador do PAIGC, de que faz um retrato tão fiel quanto possível como homem e como líder político, muito embora não apresente grandes novidades.
É claro que o leitor tem de ficar de sobreaviso pois, a meu ver, trata-se do retrato de um marxista heterodoxo e pragmático que, por um lado, não obedece a cartilhas pré-concebidas e, por outro, um cabo-verdiano, de cultura portuguesa que, de algum modo, descobre e desenvolve a sua "africanidade" ao longo da vida, retrato feito por Chabal, cuja formação é igualmente marxista e que não esconde a sua simpatia pelas ideias e "praxis" de Cabral.
O livro assume particularmente importância pois divulga para o mundo de expressão anglófona, ou seja para um universo que não se restringe apenas aos luso-falantes, a figura e obra de Cabral.
Com os meus cordiais cumprimentos
Francisco Henriques da Silva
(ex-alf. mil- de infantaria da C.Caç 2402)
Amílcar Cabral – o líder revolucionário (1/2)


Trata-se da biografia política do lendário e carismático fundador do PAIGC que se veio a transformar num dos líderes mais importantes do continente africano, sobretudo pelas suas ideias revolucionárias adaptadas pragmaticamente a um contexto específico de luta armada: a Guiné Portuguesa, depois da sua morte designada por Guiné-Bissau.
Cabral averba duas décadas de vida política activa visando conferir um sentido de unidade aos guineenses e conduzi-los a um êxito militar e político contra o Poder colonial português, cujo desfecho ele, todavia, não chegaria a testemunhar, visto ter sido assassinado meses antes da proclamação unilateral da independência e do posterior reconhecimento formal por Portugal desse acto.
No fundo, como se pode ler no livro de Patrick Chabal, Amílcar Cabral é um marxista convicto, mas heterodoxo, sem ideias ou esquemas mentais pré-concebidos, guiado por um instinto político apurado e em estreita ligação com o sentimento profundo das populações, sobretudo das populações rurais. Como salienta Chabal, estamos perante um pensador que “respeita os direitos humanos e cuja ambição consiste em estabelecer uma estrutura estatal que prosseguirá políticas socialistas sem recurso à opressão política” (v. p. 2). Estamos, pois, perante um revolucionário não espartilhado pelas orientações, chavões e frases feitas vindas de Moscovo ou de Pequim, que patenteava alguma flexibilidade e que analisou, com a devida minúcia, os factores políticos, económicos e sociais de um território como era a Guiné Portuguesa dos meados do século passado. Por outro lado, não só as suas qualidades de liderança política são objectivamente de salientar, mas igualmente os seus atributos de diplomata exímio, o que o tornava uma figura singular no grupo dos não-alinhados.
Em nosso entender, muitas das características descritas são reconhecíveis, outras porém sê-lo-ão menos, mas mister é reconhecer que morreu sem ter concretizado as suas aspirações mais profundas – neste caso concreto, a independência. Por outro lado, Cabral enfermava, a nosso ver, de dois pecados originais, descritos na obra, como pedras angulares do seu pensamento: a inquebrantável unidade Guiné-Cabo Verde e o seu conceito próprio do papel da pequena burguesia na luta revolucionária. O autor limita-se a referir-se, acriticamente, à unidade Guiné-Cabo Verde, dando-a como ponto assente da cartilha cabralina, sem embargo da obra ter sido publicada em 1983, 3 anos após o inevitável divórcio. Por outro lado, o papel da pequena burguesia (colonial, entenda-se) que para Cabral era dilemático - ou traía a causa revolucionária ou suicidava-se como classe - não merece qualquer comentário importante por parte de Patrick Chabal. Finalmente, afigura-se-nos que, logo no primeiro capítulo, ao referir-se ao domínio colonial na Guiné e em Cabo Verde (Colonial rule in Guinea and Cape Verde, pp. 16 a 28) o autor é demasiado sucinto e superficial, e muito embora aluda, não só nesse capítulo, mas ao longo da obra, inúmeras vezes, à colonização epidérmica da Guiné (passe a expressão), ou seja ao facto da Guiné não ser uma colónia na verdadeira acepção do termo, não se detém na análise rigorosa deste conceito, isto é como território que nunca foi verdadeiramente colonizado como tal, como o foram, por exemplo, Angola ou Cabo Verde. Ora este circunstancialismo de facto teve, a nosso ver, consequências muito importantes, não só para a luta armada, mas para a própria formação do Estado. Relativamente à respectiva formação cultural, intelectual e académica, Amílcar Cabral é um cabo-verdiano de cultura portuguesa. Chabal sublinha, a justo título, “o que emerge ...é que Amílcar Cabral era claramente um jovem cabo-verdiano” (p. 33)...”educado em Portugal e totalmente assimilado à história e à cultura portuguesas” (p. 168). O leit-motiv das suas preocupações não estavam, porém, em Portugal e nos problemas do regime de então, mas, sim, na libertação de África. É no decurso da sua estada em Lisboa que Cabral, como sublinha mais uma vez o autor, que “era realmente um cabo-verdiano, passou a considerar-se a si próprio como africano e a olhar para África como o seu lar” (p. 42).
É no seu trabalho no terreno, na Guiné, entenda-se, como engenheiro agrónomo que Cabral adquire conhecimentos sobre a vida no campo e a estrutura sócio-económica rural do país. O marxismo-leninismo passava para um segundo plano porquanto o fundador do PAIGC concentrava-se no conhecimento factual e na experiência concreta da vida no campo. Em 1959, sobretudo após o massacre no Pindjiguiti, compreende que a independência só poderia ser alcançada pela força e que teria de contar com a participação dos camponeses. Em 1962, a liderança do partido chega à conclusão de que a luta armada em larga escala tem de ser desencadeada logo que possível, o que leva o PAIGC à primeira acção de envergadura: a flagelação ao quartel de Tite, no Sul, em 23 de Janeiro de 1963, que assinala o início do conflito. Aliás, Cabral concluiu muito rapidamente que seria um erro crasso pensar que o proletariado urbano em Bissau, Bolama e Bafatá poderia revoltar-se com êxito contra as autoridades coloniais. Assim, a luta só se poderia desenvolver no campo, na mata, no interior do território e, independentemente, das experiências dos países ditos socialistas que indicavam outros caminhos, na Guiné, a opção teria de ser outra.
Todavia, o PAIGC defrontava-se com várias dificuldades: o estabelecimento das bases de retaguarda, o armamento e o apoio material por parte dos países amigos e o facto da maioria dos comandantes serem analfabetos (esta questão assumia uma relevância particular na medida em que a mensagem política a favor da mobilização nacionalista a ser passada para os aldeãos tinha de ser intelegível). As mensagens teriam de ser passadas de tabanca em tabanca, a fim de granjearem a confiança da população e estruturarem o apoio suficiente para dar início à luta armada. Cabral estava ciente da dificuldade desta tarefa, até porque o domínio colonial português foi relativamente inconsequente e sem grande peso para a vida dos camponeses da Guiné, não conduzindo a grandes disparidades regionais ou étnicas. Mais ainda, a “repressão não foi nem severa nem consistente” (cfr. p. 68 e também p. 72).
Uma pequena nota de roda-pé: é curioso notar que Amílcar Cabral não previu, nem terá compreendido muito bem, a adesão maciça dos balantas à causa nacionalista, o que como se sabe, teria consequências de vulto no período pós-independência e que ainda hoje se fazem sentir com acuidade.
(continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10740: Notas de leitura (433): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (2) (Mário Beja Santos)