sábado, 1 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10745: Notas de leitura (434): "Amílcar Cabral Revolutionary leadership and people's war", por Patrick Chabal (1) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 28 de Novembro de 2012:

Meus caros amigos,
Junto vos remeto uma recensão crítica dividida em duas partes do livro de Patrick Chabal, intitulado “Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people's war”, Cambridge University Press, 1983, reeditado em 2003.
A obra, cujo conteúdo é bem conhecido, é uma das mais conhecidas biografias sobre o fundador do PAIGC, de que faz um retrato tão fiel quanto possível como homem e como líder político, muito embora não apresente grandes novidades.
É claro que o leitor tem de ficar de sobreaviso pois, a meu ver, trata-se do retrato de um marxista heterodoxo e pragmático que, por um lado, não obedece a cartilhas pré-concebidas e, por outro, um cabo-verdiano, de cultura portuguesa que, de algum modo, descobre e desenvolve a sua "africanidade" ao longo da vida, retrato feito por Chabal, cuja formação é igualmente marxista e que não esconde a sua simpatia pelas ideias e "praxis" de Cabral.
O livro assume particularmente importância pois divulga para o mundo de expressão anglófona, ou seja para um universo que não se restringe apenas aos luso-falantes, a figura e obra de Cabral.

Com os meus cordiais cumprimentos
Francisco Henriques da Silva
(ex-alf. mil- de infantaria da C.Caç 2402)


Amílcar Cabral – o líder revolucionário (1/2)

O especialista francês em temas da África lusófona, Patrick Chabal, do King’s College de Londres, publicou uma das biografias mais conhecidas e mais divulgadas de Amílcar Cabral, sobretudo nos meios académicos internacionais. A obra intitula-se “Amílcar Cabral: Revolutionary leadership and people’s war” (Cambridge University Press, Cambridge, 1983). Existe também uma reedição da mesma obra, mais recente, datada de 2003, e beneficiando de uma nova introdução.

Trata-se da biografia política do lendário e carismático fundador do PAIGC que se veio a transformar num dos líderes mais importantes do continente africano, sobretudo pelas suas ideias revolucionárias adaptadas pragmaticamente a um contexto específico de luta armada: a Guiné Portuguesa, depois da sua morte designada por Guiné-Bissau.

Cabral averba duas décadas de vida política activa visando conferir um sentido de unidade aos guineenses e conduzi-los a um êxito militar e político contra o Poder colonial português, cujo desfecho ele, todavia, não chegaria a testemunhar, visto ter sido assassinado meses antes da proclamação unilateral da independência e do posterior reconhecimento formal por Portugal desse acto.

No fundo, como se pode ler no livro de Patrick Chabal, Amílcar Cabral é um marxista convicto, mas heterodoxo, sem ideias ou esquemas mentais pré-concebidos, guiado por um instinto político apurado e em estreita ligação com o sentimento profundo das populações, sobretudo das populações rurais. Como salienta Chabal, estamos perante um pensador que “respeita os direitos humanos e cuja ambição consiste em estabelecer uma estrutura estatal que prosseguirá políticas socialistas sem recurso à opressão política” (v. p. 2). Estamos, pois, perante um revolucionário não espartilhado pelas orientações, chavões e frases feitas vindas de Moscovo ou de Pequim, que patenteava alguma flexibilidade e que analisou, com a devida minúcia, os factores políticos, económicos e sociais de um território como era a Guiné Portuguesa dos meados do século passado. Por outro lado, não só as suas qualidades de liderança política são objectivamente de salientar, mas igualmente os seus atributos de diplomata exímio, o que o tornava uma figura singular no grupo dos não-alinhados.

Em nosso entender, muitas das características descritas são reconhecíveis, outras porém sê-lo-ão menos, mas mister é reconhecer que morreu sem ter concretizado as suas aspirações mais profundas – neste caso concreto, a independência. Por outro lado, Cabral enfermava, a nosso ver, de dois pecados originais, descritos na obra, como pedras angulares do seu pensamento: a inquebrantável unidade Guiné-Cabo Verde e o seu conceito próprio do papel da pequena burguesia na luta revolucionária. O autor limita-se a referir-se, acriticamente, à unidade Guiné-Cabo Verde, dando-a como ponto assente da cartilha cabralina, sem embargo da obra ter sido publicada em 1983, 3 anos após o inevitável divórcio. Por outro lado, o papel da pequena burguesia (colonial, entenda-se) que para Cabral era dilemático - ou traía a causa revolucionária ou suicidava-se como classe - não merece qualquer comentário importante por parte de Patrick Chabal. Finalmente, afigura-se-nos que, logo no primeiro capítulo, ao referir-se ao domínio colonial na Guiné e em Cabo Verde (Colonial rule in Guinea and Cape Verde, pp. 16 a 28) o autor é demasiado sucinto e superficial, e muito embora aluda, não só nesse capítulo, mas ao longo da obra, inúmeras vezes, à colonização epidérmica da Guiné (passe a expressão), ou seja ao facto da Guiné não ser uma colónia na verdadeira acepção do termo, não se detém na análise rigorosa deste conceito, isto é como território que nunca foi verdadeiramente colonizado como tal, como o foram, por exemplo, Angola ou Cabo Verde. Ora este circunstancialismo de facto teve, a nosso ver, consequências muito importantes, não só para a luta armada, mas para a própria formação do Estado. Relativamente à respectiva formação cultural, intelectual e académica, Amílcar Cabral é um cabo-verdiano de cultura portuguesa. Chabal sublinha, a justo título, “o que emerge ...é que Amílcar Cabral era claramente um jovem cabo-verdiano” (p. 33)...”educado em Portugal e totalmente assimilado à história e à cultura portuguesas” (p. 168). O leit-motiv das suas preocupações não estavam, porém, em Portugal e nos problemas do regime de então, mas, sim, na libertação de África. É no decurso da sua estada em Lisboa que Cabral, como sublinha mais uma vez o autor, que “era realmente um cabo-verdiano, passou a considerar-se a si próprio como africano e a olhar para África como o seu lar” (p. 42).

É no seu trabalho no terreno, na Guiné, entenda-se, como engenheiro agrónomo que Cabral adquire conhecimentos sobre a vida no campo e a estrutura sócio-económica rural do país. O marxismo-leninismo passava para um segundo plano porquanto o fundador do PAIGC concentrava-se no conhecimento factual e na experiência concreta da vida no campo. Em 1959, sobretudo após o massacre no Pindjiguiti, compreende que a independência só poderia ser alcançada pela força e que teria de contar com a participação dos camponeses. Em 1962, a liderança do partido chega à conclusão de que a luta armada em larga escala tem de ser desencadeada logo que possível, o que leva o PAIGC à primeira acção de envergadura: a flagelação ao quartel de Tite, no Sul, em 23 de Janeiro de 1963, que assinala o início do conflito. Aliás, Cabral concluiu muito rapidamente que seria um erro crasso pensar que o proletariado urbano em Bissau, Bolama e Bafatá poderia revoltar-se com êxito contra as autoridades coloniais. Assim, a luta só se poderia desenvolver no campo, na mata, no interior do território e, independentemente, das experiências dos países ditos socialistas que indicavam outros caminhos, na Guiné, a opção teria de ser outra.

Todavia, o PAIGC defrontava-se com várias dificuldades: o estabelecimento das bases de retaguarda, o armamento e o apoio material por parte dos países amigos e o facto da maioria dos comandantes serem analfabetos (esta questão assumia uma relevância particular na medida em que a mensagem política a favor da mobilização nacionalista a ser passada para os aldeãos tinha de ser intelegível). As mensagens teriam de ser passadas de tabanca em tabanca, a fim de granjearem a confiança da população e estruturarem o apoio suficiente para dar início à luta armada. Cabral estava ciente da dificuldade desta tarefa, até porque o domínio colonial português foi relativamente inconsequente e sem grande peso para a vida dos camponeses da Guiné, não conduzindo a grandes disparidades regionais ou étnicas. Mais ainda, a “repressão não foi nem severa nem consistente” (cfr. p. 68 e também p. 72).

Uma pequena nota de roda-pé: é curioso notar que Amílcar Cabral não previu, nem terá compreendido muito bem, a adesão maciça dos balantas à causa nacionalista, o que como se sabe, teria consequências de vulto no período pós-independência e que ainda hoje se fazem sentir com acuidade.

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10740: Notas de leitura (433): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (2) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Saúdo com amizade o trabalho de recensão do Embaixador, nosso camarada de armas.

Quase que a propósito, acabei de ler no Jornal de Letras desta quinzena, nº.1100, pag. 7, um interessantíssimo artigo do Manuel António Pina, prémio Camões 2011, infelizmente recentemente falecido, intitulado "Revoluções Poéticas". O Pina foi toda a vida uma homem de esquerda, culto, inteligente e lúcido e escreve:
"Descobri que Carlyle, na sua História da Revolução Francesa diz algo de semelhante (a um dos primeiros poemas do Manuel António Pina): "As revoluções são sonhadas por idealistas, realizadas por fanáticos mas quem delas se aproveita são sempre os oportunistas de todas as espécies."

O ensaista e historiador escocês Thomas Carlyle nasceu em 1795 e faleceu em 1881.

Um abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Quais oportunistas António G. Abreu?

No caso da Guiné nem oportunidades houve para ninguem, pelo menos até hoje.

A não ser que como Amílcar tambem foi fundador do MPLA, este movimento se tenha aproveitado da luta na Guiné.

Houve de facto uma oportunidade de os Caboverdeanos conseguirem mostrar como se consegue formar um país independente numas ilhas "impossíveis" e sem recorrer às armas.

Será que era mesmo essa a meta de Amílcar ao confinar a Guerra à Guiné?

Mostrar o que os Caboverdeanos são capazes?

Luís Graça disse...

1. Camarada Francisco, senhor embaixador: obrigado pela tua recensão e por nos ajudar a diversificar a lista dos "críticos de serviço"...

Não li o livro mas convivi com o Patrick, na Guiné, em março de 2008... Numa primeira leitura muito rápida do teu texto, concordo contigo em dois pontos cruciais, que o historiador terá minimizado: (i) o papel pretensamente revolucionário da "pequena burguesia" guineense (os "mangas de alpaca" das casas comerciais portuguesas e francesas, donde veio um boa parte da elite dirigente do PAIGC, como Aristides Pereira e o Luís Cabral); e (ii) o mito da "grande nação" Cabo Verde - Guiné...

O Patrick é um homem afável, discreto, modesto... E tem uma currículo académico invejável... Deixa-me partilhar aqui o resumo de uma das conferências que ele fez. em 13 de maio de 2011, na Gulbenkian no âmbito da série "Próximo Futuro"...


«RACIONALISMO OCIDENTAL DEPOIS DO PÓS-COLONIALISMO»

O futuro do Ocidente está estreitamente ligado ao do mundo não ocidental. As questões ambientais que o mundo enfrenta e o crescimento inexorável do poder económico da China e de outros países asiáticos fazem com que o Ocidente não possa olhar "para o que vem a seguir" da mesma forma que o fazia antes. Mas o desafio é bem mais profundo do que o actual debate sobre o "declínio do Ocidente" sugere. A minha intervenção centrar-se-á no modo como o desafio pós-colonial colocado à perspectiva que o Ocidente tem do mundo e a influência de cidadãos não ocidentais a viver no Ocidente se juntaram para evidenciar os limites daquilo a que posso chamar o racionalismo ocidental - com o que me refiro às teorias que utilizamos para entender e agir sobre o mundo. A incapacidade crescente do pensamento social ocidental para explicar de forma plausível e abordar com êxito algumas das suas questões sociais e económicas, e alguns dos desafios contemporâneos cruciais a nível da política internacional, deixaram a nu a inadequação das ciências sociais do Ocidente à medida que se foram desenvolvendo nos séculos subsequentes ao Iluminismo. Aquilo de que o Ocidente precisa, mas que ainda não aceitou, não é de mais e melhor teoria, mas de uma nova forma de pensar." (...)

http://www.buala.org/pt/da-fala/etiquetas/patrick-chabal

2. Henrique, cinquenta anos depois, parece-me, às vezes, que a gente ainda "reformatou" o disco rígido do computador... LG

Unknown disse...

Meu caro Luis Graça,
Temos de continuar um trabalho de recensão crítica do que se tem dito e escrito sobre a Guiné-Bissau, designadamente de autores que têm escrito em inglês, não só Patrick Chabal, mas também Chilcotte, Basil Davidson e Lars Rudebeck, entre outros e de que, via de regra, se fala pouco. Por outro lado, no Brasil, também se tem publicado alguma coisa e na Internet circulam teses de mestrado e de doutoramento, de interesse e qualidade variáveis, mas indispensáveis para se ter uma fotografia panorâmica do país. Além disso, temos os blogues onde muita coisa tem sido publicada e que constituem referências incontornáveis para os estudiosos, curiosos e amigos da Guiné-Bissau Em suma tudo isto representa uma tarefa em grande parte por fazer e indispensável para se compreender a Guiné-Bissau de hoje, infelizmente a trilhar um caminho assaz turbulento, incerto e extremamente preocupante. Muitos bissau-guineenses têm dificuldade em aceitar as minhas críticas directas e frontais que, no fundo, provém de um amigo, porque o sou. É que os amigos não servem só para os copos e para as pancadinhas no ombro mas para dizer as verdades e estas por vezes são muito incómodas e duras, mas têm de ser ditas. A Guiné-Bissau tem de se reconstruir porque tem de ultrapassar de uma vez por todas esta fase de desagregação total do Estado. Tenho as maiores dúvidas que o consiga, mas não perdi a esperança.
Patrick Chabal afirma que o futuro do Ocidente está estreitamente ligado ao do resto do mundo. Não ponho isso em causa, antes pelo contrário, mas como diz Chabal tem de se congeminar uma nova forma de pensar, ou pegando nas tuas palavras, temos de reformatar o disco. É muito possível que assim seja. Resta saber, como.
Com um abraço amigo

Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf.mil de Infantaria C. Caç 2402)