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Do Ninho D'Águia até África (30)
As Lavadeiras
Há mil histórias das ditas “Lavadeiras”!
Quase todo o militar dizia:
- A minha lavadeira, é melhor do que a tua!
O Cifra depois da fraca experiência, com a sua lavadeira, que afinal era guerrilheira, andou um tempo sem lavadeira, andava sujo, e por vezes usava a roupa do Setúbal, ou mesmo do Curvas, alto e refilão.
Não podia continuar assim, pois não se sentia confortável, e em conversa com o Setúbal, este diz-lhe:
- Porque não usas a minha lavadeira? Creio que ela já desconfiou, que lhe entrego roupa a mais, todas as semanas.
E isso era verdade, pois por vezes, o Setúbal levava alguns calções e camisas do Cifra, para ela lavar, e ela era esperta, pois entre elas falavam, e sabiam quantas peças de roupa, era normal um militar usar por semana. Diziam por lá, que ela era de etnia “Papel”, e como tal muito desconfiada, nasceu na Ilha de Bissau, e tinha vindo para Mansoa, há catorze “chuvas”, que deviam de ser anos.
O que o Criador lhe deu a mais fisicamente, roubou-lhe um pouco na inteligência, e se se lembrasse de dizer que o Vinte e Oito da companhia velha, era o Trinta e Seis do pelotão de morteiros, tinha que ser mesmo, e lá havia um conflito, pois estes dois militares eram completamente diferentes na fisionomia do seu corpo.
Mas continuando com a história, passou a ser também a sua lavadeira, foto ao lado, e como tal, ficou sujeito a todas as anomalias da troca de roupa, e quando ao sábado a vinha entregar, e quando havia alguma confusão, ela logo respondia:
- Mi, lavá roupa para manga de pessoais!
O que era verdade, mas não motivo para entregar ao Cifra, três meias soltas, uns calções, onde cabiam dois Cifras, já sem forro nos bolsos, e sem botões na frente, e umas calças de camuflado, que o Cifra nunca usou, pois o Cifra não usava camuflado, toda a sua farda de camuflado, foi usada pelo Setúbal e pelo Curvas, alto e refilão, e que ela dizia a pés juntos que eram dele. Ao pôr uma mão no bolso dessas calças, encontrar o isqueiro do Curvas, alto e refilão, que já procurava há uma semana, pois “pedia lume”, a toda a gente e dizia:
- Se encontro o filho da p... que me roubou o meu isqueiro, eu máto-o. Cabrão!
Mas havia um dia, em que ela, quase nunca se enganava, e até colocava a tal flor de cheiro sobre a roupa, esse dia era ao final do mês, e antes de entregar a roupa, estendia a mão e dizia:
- Dá patacão, é fim de mês.
Às vezes, pagavam com notas do Banco Nacional Ultramarino, e ela nunca dava o referido troco, e dizia:
- Mi, “patacão ká tem”, está bem assim.
O Curvas, alto e refilão, dizia:
- Filha da p..., para ela, o mês só tem três semanas!. Qualquer dia mato-a!
(Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10716: Do Ninho D'Águia até África (29): Maldita matacanha (Tony Borié)
3 comentários:
Que delícia!... "Dá patacão, é fim de mês!"... Estou a imaginar a cena!...
Ainda está por estudar o real impacto que teve, na economia daquela gente, a presença da nossa tropa no TO da Guiné... Já não me lembro quanto é que se pagava no meu tempo (1969/71) à lavadeira, tenho ideia que eu pagava 100 pesos... Era mandinga, e a mãe tinha um filho de um militar, coisa pouco habitual entre os mandingas... As praças pagavam 50... Acho que havia alguma equidade na tabela de preços das lavadeiras... O capitão, o major e o tenente deveriam, por essa ordem, pagar mais, mas eles não vêm ao nosso confessionário, tirando o To Zé [, António José Pereira da Costa], o Jorge Picado, e poucos mais...
Parabéns, Tony, pelas tuas pequenas memórias do quotidiano de Mansoa... É obra, tens memória de elefante!...E talento para a ilustração, como já tive ocasião de o dizer... As ilustrações valorizam muitos as tuas "croniquetas", ou "short stories"... Andas a fazer concorrência ao alfero Cabral!...
Caro Tony Borié
As tuas estórias continuam a encantar.Parabéns pela tua arte de desenhar.
Quanto ao tema das Lavadeiras,eu já fiz aqui uma homenagem ás nossas Lavadeiras na Guiné e em especial á "minha" Lavadeira Amélia em Bissorã.
Não há duvida que de certo modo nós ajudamos a melhorar um pouco a economia das populações da Guiné.Mas na realidade era sempre um momento de satisfação quando ao final da tarde as Lavadeiras vinham trazer as roupas.Em Bissorã como tinha lá a minha mulher e filho era sempre um bom momento de conversa com a "nossa"Amélia.
Um abraço e continua.
Henrique Cerqueira
Caros amigos,
O Tony retirou, neste poste, em formato politicamente correcto, um pouquinho do véu que cobria as relacoes tao ambiguas como secretas, entre a tropa metropolitana e as suas lavadeiras.
A grande maioria da tropa portuguesa que conheci (convivi com tres companhias entre 1968/74, em Fajonquito) respeitava e cumpria o contrato ntacito com as lavadeiras, mas também, como diz o Tony Borié, as "boleias" eram frequentes no meio das pracas de uma mesma caserna, especialmente os lencois e também, nao era raro assistir a conflitos abertos de soldados que recusavam pagar o devido por causa de botoes partidos e de meias extraviadas ou trocadas, pois as mulheres (da nossa zona) para lavar as roupas pesadas, sobretudo os camuflados, batiam-nos sobre pedras com uma tal violencia que faziam saltar ou partir os botoes e, nao podendo conserta-los, porque nao tinham como o fazer, procuravam dissimular o facto cada uma a sua maneira.
Com os oficiais nao tenho memoria de nenhum caso, porque estes se respeitavam e faziam o possivel para respeitar a populacao nativa e no caso de Fajonquito até os Furrieis entravam neste leque porque tratava-se de uma unica companhia isolada no mato.
abraco amigo,
Cherno Baldé
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