terça-feira, 27 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10729: Do Ninho D'Águia até África (30): As lavadeiras (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 20 de Novembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (30)

As Lavadeiras

Há mil histórias das ditas “Lavadeiras”!
Quase todo o militar dizia:
- A minha lavadeira, é melhor do que a tua!


 O Cifra depois da fraca experiência, com a sua lavadeira, que afinal era guerrilheira, andou um tempo sem lavadeira, andava sujo, e por vezes usava a roupa do Setúbal, ou mesmo do Curvas, alto e refilão.
Não podia continuar assim, pois não se sentia confortável, e em conversa com o Setúbal, este diz-lhe:
- Porque não usas a minha lavadeira? Creio que ela já desconfiou, que lhe entrego roupa a mais, todas as semanas.

E isso era verdade, pois por vezes, o Setúbal levava alguns calções e camisas do Cifra, para ela lavar, e ela era esperta, pois entre elas falavam, e sabiam quantas peças de roupa, era normal um militar usar por semana. Diziam por lá, que ela era de etnia “Papel”, e como tal muito desconfiada, nasceu na Ilha de Bissau, e tinha vindo para Mansoa, há catorze “chuvas”, que deviam de ser anos.

O que o Criador lhe deu a mais fisicamente, roubou-lhe um pouco na inteligência, e se se lembrasse de dizer que o Vinte e Oito da companhia velha, era o Trinta e Seis do pelotão de morteiros, tinha que ser mesmo, e lá havia um conflito, pois estes dois militares eram completamente diferentes na fisionomia do seu corpo.

Mas continuando com a história, passou a ser também a sua lavadeira, foto ao lado, e como tal, ficou sujeito a todas as anomalias da troca de roupa, e quando ao sábado a vinha entregar, e quando havia alguma confusão, ela logo respondia:
- Mi, lavá roupa para manga de pessoais!

O que era verdade, mas não motivo para entregar ao Cifra, três meias soltas, uns calções, onde cabiam dois Cifras, já sem forro nos bolsos, e sem botões na frente, e umas calças de camuflado, que o Cifra nunca usou, pois o Cifra não usava camuflado, toda a sua farda de camuflado, foi usada pelo Setúbal e pelo Curvas, alto e refilão, e que ela dizia a pés juntos que eram dele. Ao pôr uma mão no bolso dessas calças, encontrar o isqueiro do Curvas, alto e refilão, que já procurava há uma semana, pois “pedia lume”, a toda a gente e dizia:
- Se encontro o filho da p... que me roubou o meu isqueiro, eu máto-o. Cabrão!


Mas havia um dia, em que ela, quase nunca se enganava, e até colocava a tal flor de cheiro sobre a roupa, esse dia era ao final do mês, e antes de entregar a roupa, estendia a mão e dizia:
- Dá patacão, é fim de mês.

Às vezes, pagavam com notas do Banco Nacional Ultramarino, e ela nunca dava o referido troco, e dizia:
- Mi, “patacão ká tem”, está bem assim.

O Curvas, alto e refilão, dizia:
- Filha da p..., para ela, o mês só tem três semanas!. Qualquer dia mato-a!

(Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10716: Do Ninho D'Águia até África (29): Maldita matacanha (Tony Borié)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Que delícia!... "Dá patacão, é fim de mês!"... Estou a imaginar a cena!...

Ainda está por estudar o real impacto que teve, na economia daquela gente, a presença da nossa tropa no TO da Guiné... Já não me lembro quanto é que se pagava no meu tempo (1969/71) à lavadeira, tenho ideia que eu pagava 100 pesos... Era mandinga, e a mãe tinha um filho de um militar, coisa pouco habitual entre os mandingas... As praças pagavam 50... Acho que havia alguma equidade na tabela de preços das lavadeiras... O capitão, o major e o tenente deveriam, por essa ordem, pagar mais, mas eles não vêm ao nosso confessionário, tirando o To Zé [, António José Pereira da Costa], o Jorge Picado, e poucos mais...

Parabéns, Tony, pelas tuas pequenas memórias do quotidiano de Mansoa... É obra, tens memória de elefante!...E talento para a ilustração, como já tive ocasião de o dizer... As ilustrações valorizam muitos as tuas "croniquetas", ou "short stories"... Andas a fazer concorrência ao alfero Cabral!...

Henrique Cerqueira disse...

Caro Tony Borié
As tuas estórias continuam a encantar.Parabéns pela tua arte de desenhar.
Quanto ao tema das Lavadeiras,eu já fiz aqui uma homenagem ás nossas Lavadeiras na Guiné e em especial á "minha" Lavadeira Amélia em Bissorã.
Não há duvida que de certo modo nós ajudamos a melhorar um pouco a economia das populações da Guiné.Mas na realidade era sempre um momento de satisfação quando ao final da tarde as Lavadeiras vinham trazer as roupas.Em Bissorã como tinha lá a minha mulher e filho era sempre um bom momento de conversa com a "nossa"Amélia.
Um abraço e continua.
Henrique Cerqueira

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

O Tony retirou, neste poste, em formato politicamente correcto, um pouquinho do véu que cobria as relacoes tao ambiguas como secretas, entre a tropa metropolitana e as suas lavadeiras.

A grande maioria da tropa portuguesa que conheci (convivi com tres companhias entre 1968/74, em Fajonquito) respeitava e cumpria o contrato ntacito com as lavadeiras, mas também, como diz o Tony Borié, as "boleias" eram frequentes no meio das pracas de uma mesma caserna, especialmente os lencois e também, nao era raro assistir a conflitos abertos de soldados que recusavam pagar o devido por causa de botoes partidos e de meias extraviadas ou trocadas, pois as mulheres (da nossa zona) para lavar as roupas pesadas, sobretudo os camuflados, batiam-nos sobre pedras com uma tal violencia que faziam saltar ou partir os botoes e, nao podendo conserta-los, porque nao tinham como o fazer, procuravam dissimular o facto cada uma a sua maneira.

Com os oficiais nao tenho memoria de nenhum caso, porque estes se respeitavam e faziam o possivel para respeitar a populacao nativa e no caso de Fajonquito até os Furrieis entravam neste leque porque tratava-se de uma unica companhia isolada no mato.

abraco amigo,

Cherno Baldé