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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22688: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XVI: Aurélio de Mendonça e Pinho, ten art (Celorico da Beira, 1891 - França, CEP, 1918)


Aurélio de Mendonça e Pinho (1891 - 1918)


Nome : Aurélio de Mendonça e Pinho

Posto: Tenente de Artilharia

Naturalidade: Celorico da Beira

Data de nascimento: 12 de Junho de 1891

Incorporação_ 1911 na Escola de Guerra (nº 33 do Corpo de Alunos)

Unidade:  1º Grupo de Baterias de Artilharia, Regimento Artilharia n.º 2

Condecorações:  Cruz de Guerra de 2ª classe (a título póstumo)

TO da morte em combate : França (CEP)

Data de Embarque:  31 de Março de 1917

Data da morte:  9 de Abril de 1918

Sepultura:  França, Cemitério de Richebourg l'Avoué

Circunstâncias da morte:  Na batalha de 9 de Abril, quando ficou sem ligações às tropas apoiadas, saiu do seu Posto de Comando e, a descoberto, continuou a orientar os fogos da sua Bateria até ser mortalmente atingido pelos fogos da artilharia alemã.

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António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa

Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de outubro de  2021 > Guiné 61/74 - P22639: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XV: António Madeira Montez Júnior (Santarém, 1885 - França, CEP, 1918), cap inf

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22687: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XX: Pitões das Júnias, serra do Barroso, Portugal, 2014





Portugal > Parque Nacional da Peneda-Gerês > 
Serra do Barroso > Montalegre > Pitões das Júnias


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de 
António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. 

Texto e fotos recebidos em 28 de  outubro último.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 290y referências no blogue.


Pitões das Júnias, serra do Barroso, 
Portugal, 2014

por António Graça de Abreu


Ano de 2014. Venho subindo, subindo, até tocar as nuvens.

O pequeno mosteiro de Santa Maria, de finais do século IX, mais velhinho do que Portugal -- a igrejinha permanece de pé, o resto meio arruinado --, recorda monges beneditinos que por aqui passaram, exorcisando pecados, pacificando a alma. Há resmas de lendas e mistérios levantando-se, à solta, por estes lugares.

A 1.200 metros de altitude, entre os pináculos do Gerês e do Barroso, a magia agreste da paisagem, os tectos esquecidos da pátria portuguesa. Tudo aberto para o respirar inteligente das montanhas.

Entro na aldeia, quase vazia de gentes. As casas de granito, a igreja matriz de S. Rosendo, o relógio de sol, o forno comunitário, os espigueiros. Muitos habitantes escaparam-se rumo a outras paragens, franças e araganças, onde a vida será mais fácil. Mas em Pitões da Júnias o ar é mais puro, os horizontes mais vastos, tão alvoroçado o recorte pedregoso do cume dos montes. E descobrem-se cascatas abrigadas na rocha, a paz completa.

Outrora, aconteceram por aqui grandes batalhas entre camponeses galegos e portugueses. Gentes destas terras, de ambos os lados da raia, roubavam cabeças de gado, na extrema fronteiriça. Os lusitanos costumavam ganhar em ardilosas pelejas e traziam as vacas, e os vitelos, para requintados repastos, a boa carne barrosã desfazendo-se em bocas esfomeadas.






Hoje, há ainda na povoação, três restaurantes onde se cozinham uns tantos primores, cabrito, feijoada à transmontana, a posta barrosã, um cozido divinal com enchidos da terra.

Avanço pela estrada mais a norte. Passo Tourém e chego a Espanha. Do outro lado da raia, acalma-se a paisagem, prados a perder de vista, uma aldeia galega, um posto de gasolina. O carburante mais barato, encho o depósito do carro. Regresso às terras do Gerês, é tempo de abastecer o estômago, borrego assado, um exuberante vinho verde Alvarinho proveniente de uvas douradas de Melgaço. O automóvel também bebeu bem, tem gasolina espanhola mais do que suficiente para os 450 quilómetros até Lisboa.

António Graça de Abreu

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Guiné 61/74 - P22686: Agenda cultural (787): Mamadu Baio Trio, sábado, dia 6, 20h00, no Camones CineBar, Graça, Lisboa... Música autoral afro-mandinga, um novo projecto dos nossos grã-tabanqueiros João Graça e Mamadu Baio, a que se junta o Avito Nanque


Cartaz do concerto do Mamadu Baio Trio, a realizar no próximo sábado, dia 6 de novembro, às 20h00 no Camones CineBar, na Graça, em Lisboa.


Reservas: camoneslisboa@gmail.com | Contribuição livre

1. É no sábado este espectáculo musical, a cargo do Mamadu Baio Trio, grupo de música afro-mandinga qie tem a extraordinária particularidade de incluir dois membros da nossa Tabanca Grande, o João Graça e o Mamadu Baio.

O João Graça (músico e médico) tem  124 referência no blogue, e o Mamamdu Baio 16. Fonheeram-se em meados de dezembro de 2009, quandoo João foi à Guiné-Bissau e esteve na mítica tabanca de Tabatô. O outro elemento do grupo é o Avito Nanque que veio recentemente da Guiné-Bissau para Portugal.


(...) É já no próximo sábado - Mamadu Baio Trio - o melhor antídoto para este frio invernal. Quem se junta?

(...) Sábado haverá música da Guiné-Bissau em Lisboa. Mamadu Baio , Avito Nanque e moi-méme. Vinde daí!

(...) Olá! Para quem quiser espreitar pelo meu novo projecto musical - música autoral afro-mandinga - venha até à Graça no sábado, dia 6, as 20h, no Camones. Ate lá! 

O nosso blogue faz questão de lembrar que apoia a música e os músicos da Guiné-Bissau. Daí o destaque que damos a este evento cultural. Sobre a música afro-mandinga temos 14 referências.

2. O que diz a Viral Agenda (a seguir, com a devida vénia):

Mamadu Baio Trio apresenta-se:

  • Avito Nanque - guitarra eléctrica
  • João Graça - violino
  • Mamadu Baio - guitarra acústica e voz

Originário da Guiné-Bissau, Mamadu Baio nasceu em Tabatô, uma pequena aldeia de griots (trovadores), onde todos os habitantes são músicos. Esta aldeia é reconhecida como o berço de vários artistas afro-mandingas, descendentes do Império do Mali, bem como da longa prática de construção de instrumentos tradicionais, como o balafon, o kora, o dundumbá ou neguilim.

O primeiro instrumento que aprendeu a tocar foi o djambé que lhe permite comunicar com crianças e adultos em muitos ritmos diferentes, inspirados pelas suas raízes. Foi através do djambé que Mamadu organizou vários intercâmbios entre jovens artistas de diversas origens, resultando em múltiplos workshops com distintas influências e sonoridades.

Mamadu tem uma vasta experiência como professor de percussão e deu aulas em centros culturais e escolas primárias, organizadas em níveis de conhecimento e idades. As oficinas têm como ponto de partida as histórias dos griots, para a aprendizagem do djambé, assim como a sua construção e afinação.

A sua curiosidade por diferentes sonoridades nasceu cedo. A principal fonte de inspiração para compor novas melodias surge no dedilhar da sua guitarra. Este jovem artista, reconhecido como um talento promissor da música afro-mandinga, está atualmente em Lisboa a promover o seu trabalho, que resulta da mistura de sons afro-mandingas, reggae, jazz e afro-beat.


Desde 2009 que partilha a sua estadia entre África e Europa, em particular Portugal, onde participou em vários festivais e concertos de solidariedade, realizou ainda vários concertos em
diversos espaços

3. Sobre o Camones CineBar, que fica na Graça, na R. Josefa Maria 4B, 1170-195 Lisboa (uma perpendicular à Rua Senhora do Monte, a que vai dar ao Mirador da Senhora do Monte, o  mais espectacular e deslumbrante de Lisboa):

(...) O Clube do Bairro Estrela D'Ouro, criado há mais de 110 anos pelo galego Agapito Serra Fernandes, surgiu para albergar os encontros sociais e culturais dos operários residentes neste Bairro. A vida do Clube foi interrompida algures no tempo para se transformar num casino clandestino, onde, à porta fechada, e durante quase 40 anos os homens (e só os homens...) jogavam a dinheiro. Antes de ser "Camones", e até 2017, o espaço acolheu as noites semanais Estrela Decadente, com jantares vegan, concertos, exposições e DJ sets.

Desde 2018, e pela primeira vez na sua já longa vida, as portas abrem-se ao público em geral para Concertos intimistas, noites de Stand-Up Comedy, Festivais de Curtas e noite de Open-Mic sob o lema "Todas as Artes, Todas as Idades". (...)
 


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Nota do editor:

Último poste da série > 4  de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22597: Agenda cultural (786): Convite para a apresentação do livro "Nunca Digas Adeus às Armas (Os primeiros anos da Guerra da Guiné)", por António dos Santos Alberto Andrade e Mário Beja Santos, dia 18 de Outubro de 2021, pelas 18 horas, no Pálácio da Independência - Largo São Domingos, 11 - Lisboa

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22685: Historiografia da presença portuguesa em África (288): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (3): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
Não será despiciendo de novo referir a demonstrada insensibilidade dos negociadores que aprovaram o conteúdo da chamada Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, provocaram a prazo uma tensão interétnica que parece não ter fim à vista, nos tempos de hoje. É bem curioso, lendo a evolução das diferentes missões verificar a grande hostilidade das populações locais que guerrearam as diferentes equipas, houve que encontrar contingentes militares para as proteger, mas não faltaram emboscadas, intimidações e incêndio de povoações. Mesmo depois de 1905 houve que afinar certos aspetos da delimitação das fronteiras, pode-se dizer que só em 1931 acabaram os problemas. A obra de Maria Luísa Esteves é incontornável pelo estudo das fontes, pela documentação carreada e pela franqueza da linguagem: acabara formalmente a Senegâmbia, Portugal ficava reduzido a uma possessão colonial, os franceses tinham imposto limitações e quebraram a quimera de que ainda éramos influentes nessa mítica Senegâmbia. Mas ambos pagaram caro ao separar comunidades, de que o Casamansa é a que continua a dar mais que falar.

Um abraço do
Mário



A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Prossegue a saga em torno das sucessivas etapas em que missões luso-francesas procuraram ao longo dos anos delimitar as fronteiras também numa ótica de defender interesses comerciais e limitar os estragos introduzidos em comunidades que tinham seculares formas de coesão que as linhas de fronteira romperam. Na missão que permaneceu na Guiné de 1904 a 1905, ao tempo do Governador Sobral Martins estiveram Oliveira Muzanty e José Proença Fortes, respetivamente Chefe e Adjunto da Comissão de Delimitação. A situação na Guiné era muito instável, havia guerra no Oio que envolveu operações militares. As duas missões concordaram que os pilares utilizados na balizagem seriam feitos em tijolo e cimento, era extremamente difícil encontrar a pedra apropriada. A construção ficaria a cargo da missão francesa e os encargos seriam suportados pelas duas partes, trabalhou-se entre os marcos n.º 112 a 155, os pilares numerados de 113 até 132 puderam ser construídos em pedra e os restantes em tijolo e cimento. As duas missões estiveram permanentemente protegidas por 30 soldados. É nesta circunstância que a missão francesa sugeriu que a linha a adotar desde o marco 155 até ao Cabo Roxo fosse alterada, propunha-se modificar a cláusula, sugeria-se a Ponta Varela como ponto final da delimitação sobre o Oceano Atlântico.

Muzanty recusa-se a admitir esta alteração à letra do acordo e não aceita a afirmação de que os franceses ocuparam alguma vez a região entre o Cabo Roxo e Ponta Varela. Vendo a intransigência do delegado português que ameaçava interromper os trabalhos, a missão francesa aceitou a marcação da linha mas ressalvando futuras reivindicações. Definiram-se as linhas de atuação futura, Muzanty tinha pedido a formação de um posto militar em Cassolol, o que veio a acontecer, mas a hostilidade das populações à volta era enorme. Houve que proceder a operações com auxiliares armados para intimar as autoridades gentílicas a deixar trabalhar as missões, houve escaramuças, travaram-se combates, incendiaram-se povoações. Foi neste clima de permanente intranquilidade que se concluiu a tarefa da missão. Muzanty irá escrever no seu relatório não ser “pequeno o resultado obtido pela coluna mista, pois quebrando o grande prestígio do chefe Fodé Cabá, que se exercia numa área grande, em território nosso e francês, garantindo-se a ocupação da região por pequenos postos, o que me parece de inadiável urgência, sem necessidade de novos e pesados sacrifícios de vidas e dinheiro”. Fizera-se a delimitação entre o marco nº 155 e o Cabo Roxo. As cartas, portuguesa e francesa, desenhadas pelas duas missões, foram consideradas exatas.

Procede-se igualmente à troca de territórios, depois aprovou-se a fronteira norte. Estamos chegados às considerações finais, a autora recorda que foi extremamente hábil a forma como os franceses de apoderaram do Casamansa, explorando os escassos recursos de Portugal e a ingenuidade do seu governo. O plano gizado pela França englobava também o Rio Nuno. Mas não se pode atribuir só aos franceses a estagnação da vida económica da região, pesou também a abolição da escravatura, como a autora observa:
“Portugal, ao ajudar os Fulas-Pretos a sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os Fulas-Forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas tradicionais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. Buba e o Rio Grande perderam a sua grandeza comercial e o Rio Nuno viu chegar às suas margens, cada vez em maior quantidade, os mercadores indígenas atraídos pela qualidade e baixo preço das fazendas. Estas lutas internas vão provocar a fuga de populações que se refugiaram em locais mais propícios, dando origem a novo xadrez étnico acompanhado da natural rutura das formações políticas e sociais”.

E, mais adiante:
“As fronteiras políticas saídas da Convenção reduziram as possibilidades de comércio da Guiné Portuguesa, porque a limitaram quase a uma faixa litoral sem permitir a penetração do interior, o protetorado do Futa Jalom deu à França uma posição invejável para o seu projeto do domínio interior (…) Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região do Futa Jalom, os franceses absorveram toda a vida comercial, atraindo a si, mercê de uma hábil política, os negociantes indígenas, desviando-os dos mercados portugueses (…) Não foi menos funesto o seu significado social, porque as duas Guinés, a Francesa e a Portuguesa, foram criadas sem ter em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações se fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimento suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas. Apenas se procurara satisfazer os interesses dos países colonizadores e destes o mais forte teve sempre a última palavra”.

Vamos terminar esta digressão sobre a delimitação das fronteiras referindo uma comunicação feita ao tempo da Convenção Luso-Francesa pelo Capitão Francisco António Marques Geraldes, veio a ser publicada no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, VII série, N.º 8, 1887.

(continua)

Guiné Portuguesa e possessões francesas vizinhas, carta editada em Lille, em 1890
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22664: Historiografia da presença portuguesa em África (287): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (2): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22684: A nossa guerra em números (1): os soldados do recrutamento local, de 1ª e 2ª classe, as milícias, os soldados básicos e o patacão que recebiam (Valdemar Queiroz / Fernando Sousa Ribeiro / Luís Graça)


Capa (, de resto pouco feliz,) do livro


1. Saiu recentemente, mas está por fazer a sua recensão aqui no nosso blogue, o livro do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.). Já o tenho e estou a lê-lo, "na diagonal"... 

É muita informação em números, direi mesmo que é uma "indigestão" de números: não há praticamente uma página (das 379), em que não haja um quadro, ou um gráfico... O autor optou, de resto, por não numerar os quadros e os gráficos que surgem ao correr do texto. 

O que deixo escrito escrito atrás, não  impede de considerar que é um livro obrigatório na biblioteca de quem quer se interesse pelo estudo da "guerra de África"  (ou "guerra do ultramar" ou "guerra colonial", como cada um quiser).  Enfim, um dia alguém teria que escrever uma "calhamaço" destes, de consulta obrigatória, com informação estatística, básica, mas exaustiva,  sobre tópicos como: I. Recrutamento e mobilização: II. Os mortos e os feridos; III. Acções e meios de combate; IV. As despesas da guerra; e V. Os movimentos independentistas. 

A bibliografia é sucinta, é verdade, o mais importante são as fontes (oficiais e oficiosas) que o autor teve a oportunidade de consultar, fornecendo-nos por exemplo preciosas informações estatísticas sobre "o outro lado do combate" (os movimentos nacionalistas). Pode faltar-lhe informação mais fina, qualitativa, em cada um dos capítulos, mas nesse ponto o nosso blogue ajuda a colmatar algumas lacunas.

Muitos dos nossos leitores não terão tempo nem pachorra para ler livros como este. A pensar neles, iremos de vez em quando citá-lo e reproduzir um ou outro número  que nos pareça relevante para nos ajudar a compreender melhor a guerra que nos calhou em sorte, e em especial a que teve a Guiné como teatro de operações...

Neste primeiro poste vamos revisitar o  extenso e interessante capítulo, o IV (pp. 259-330), sobre "As despesas da guerra", incluindo os encargos com pessoal e logística, mesmo só tendo  lido o capítulo na diagonal.

A par disso, iremos reproduzir comentários, muito interessantes (e que "não se pode perder", menos acessíveis  nas respetivas caixas)  ao poste P22671 (*)... Falaremos dos nossos camaradas do recrutamento local (classificados em soldados de 1ª e 2ª classe, em função das habilitações escolares), respetivos vencimentos, mas também das "escolas de cabos", do pessoal das milícias, sem esquecer essa figura, em geral objecto de chacota ou de piedade, que era o "soldado básico" (normalmente, metropolitano).


(i) Valdemar Queiroz:

As velhas licenças «à bife» e os impressos que eram feitos para durar dez anos (196_).

Como curiosidade. Quem fosse incorporado na Guiné, Angola ou Moçambique tinha o mesmo vencimento mensal dos militares da metrópole ou passavam a ganhar o mesmo valor dos mobilizados para esses territórios? Por ex. Luanda não era considerado zona de guerra mas os metropolitanos mobilizados tinham o vencimento superior ao da metrópole, e os naturais/recrutados/incorporados em Luanda?. Nem me refiro à Guiné por ser toda zona de guerra.

A haver diferenças, até estou a pensar, quanto maior fossem as incorporações locais mais baratinha ficava a guerra. (...)

(ii) Fernando Ribeiro:

Caro Valdemar: Em relação a Angola, só posso referir o caso dos primeiros-cabos e dos soldados, porque os angolanos que pertenceram à minha companhia só tinham estes postos.

Os primeiros-cabos incorporados em Angola ganhavam tanto como os que tinham sido incorporados na Metrópole, incluindo os 100%. 

Já no caso dos soldados, havia diferenças. Enquanto na Metrópole só existia o posto de soldado (era-se soldado e mais nada, quer se fosse doutor ou analfabeto), em Angola havia dois: soldado de 1.ª e soldado de 2.ª. 

Os soldados de 1.ª tinham a 4.ª classe ou mais, enquanto os de 2.ª não, apesar de desempenharem exatamente as mesmas funções. Os soldados de 1.ª de Angola ganhavam tanto como os soldados da Metrópole. Os soldados de 2.ª ganhavam incomparavelmente menos; não sei ao certo, mas deviam ganhar qualquer coisa como 1/10 do que ganhavam os outros, o que era escandaloso.

Todos os soldados angolanos da minha companhia eram alfabetizados, quer fossem de 1.ª ou de 2.ª, o que não deixa de ser surpreendente. Aqueles que tinham sido analfabetos à data da incorporação no serviço militar frequentaram as aulas regimentais no RI 22, em Sá da Bandeira, durante a recruta e a especialidade. Fizeram-no com tanto êxito e tinham tanta vontade de aprender, que praticamente já sabiam ler, escrever e contar quando vieram para a minha companhia.

Quanto aos que já eram escolarizados antes da tropa, havia aqueles que tinham a 4.ª classe e eram oriundos das cidades; eram os soldados de 1.ª. Os já escolarizados oriundos das zonas rurais só tinham a 3.ª classe, porque as escolas do mato não ministravam a 4.ª classe. Eram as chamadas "escolas rurais", que em tudo eram semelhantes aos "postos escolares" que existiam nas aldeias mais remotas da Metrópole. Tal como nos "postos escolares" metropolitanos, o ensino nas "escolas rurais" não ia além da 3.ª classe, porque o professor, a maior parte das vezes, só tinha a 4.ª!

O comandante do meu batalhão pode ter sido o sujeito mais abominável do mundo, mas não descansou enquanto os soldados de 2.ª não fizeram o exame da 4.ª classe e passassem a ser soldados de 1.ª. Ele foi a Luanda tantas vezes quantas as necessárias para conseguir falar pessoalmente com o secretário provincial da Educação do Governo-Geral de Angola (o "ministro" da Educação da Província de Angola), a fim de chamar a atenção deste para a necessidade de submeter todos os soldados de 2.ª ao exame da 4.ª classe com a máxima urgência possível. Ao fim de três ou quatro meses, deixou de haver soldados de 2.ª em todo o batalhão.

Para terminar, quero chamar a atenção para a vontade dos militares angolanos em aprender, independentemente de passarem a ganhar mais ou não. Enquanto os militares metropolitanos só liam A Bola e quase só preocupavam em saber os resultados dos jogos de futebol, os militares angolanos tinham uma insaciável vontade de saber coisas novas, em múltiplos campos do conhecimento. Várias vezes eu pensei: «Se os africanos em geral forem como estes, então a civilização do futuro será africana». Ou então não haverá mais civilização, porque os "civilizados" darão cabo dela.

31 de outubro de 2021 às 01:31

(iii) Valdemar Queiroz:

Caro Fernando Ribeiro fiquei esclarecido.

Realmente os naturais também eram mobilizados para a guerra, mas a minha dúvida seria quanto aos que estavam fixos nos Quarteis da cidade p.ex. de Luanda. Por cá os 100% era aumentado quando eram mobilizados, diferente de estarem fixos no Quartel da RAP3 na Figueira da Foz.

Essa dos soldados de 1ª. e 2ª. devido a serem analfabetos, julgo que por cá havia os soldados básicos nessas condições, não tenho a certeza. Na minha CART11 de soldados fulas havia os soldados arvorados que andavam na escola "de Cabos" dada por mim e não sei, não me lembro, se por mais alguém. Julgo que depois estes arvorados passaram a Cabos.

É natural os analfabetos quando aprender a ler gostar de ler tudo o que tenha letras. É como ver uma bela paisagem que nunca viu e olhar com admiração para a mais pequena desinteressante imagem. (...)

31 de outubro de 2021 às 02:36

(iii) Tabanca Grande Luís Graça:

No livro do ten cor Pedro Marquês de Sousa,"Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021), há um extenso e interessante capítulo, o IV (pp. 259-330), sobre "As despesas da guerra", incluindo os encargos com pessoal e logística, que só li na diagonal.

Um estudo do Ministério do Exército, realizado em 1965, com base nos encargos suportados desde o início da guerra em Angola, estimava o custo de cada militar em 115 escudos (45,2 euros / dia, em valores de hoje), assim desagregado:

(i) vencimento e subsídio de campanha: 35$00 (30,4%);

(ii) alimentação: 23$00 (20,0%);

(iii) fardamento: 5$00 (4,3%);

(iv) transporte (via marítima): 10$00 (8,7%);

(v) outros encargos: 42$00 (36,6%) (inclui a despesa com armamento e munições, equipamento, combustível, água, luz, alojamento e manutenção)...

As percentagens são calculadas por nós...

Uma primeira conclusão é que se tratou de uma guerra, de baixa intensidade,  onde os encargos diretos com os combatentes (vencimento, alimentação e fardamento) representavam cerca de 55%...O essencial da guerra foi feita pelo homem com a sua arma, a "canhota"... Portanto, com escass0s meios tecnológicos (e poucos sofisticados, tirando a Força Aérea).

Há informação sobre o vencimento mensal base (mais subsídio de campanha ou vencimento complementar) relativamente aos anos de 1963/64, ao ano de 1971 (Guiné), ao final de 1972 (em que passou a ser pago, aos servidores do Estado, incluindo militares, o 13º mês ou "subsídio de Natal") e ainda ao final de 1973.

31 de outubro de 2021 às 18:16


(iv) Tabanca Grande Luís Graça:

Sobre o pré dos soldados do recrutamento local e das milícias, a informação é parcial...O autor, Pedro Marquês de Sousa, com base nos dados de 1964, um soldado do exército (metropolitano), na Guiné, ganhava 600$00 (vencimento mensal base: 30$00; vencimento complementar: 570$00).

Por sua vez, um milícia recebia 450$00 mensais (valor este que eu desconhecia). Ou seja, cada milícia recebia 15$00 diários (8 de alimentação e 7 de vencimento). A valores de hoje, eram 185 euros en 1964...Mas apenas 138 euros em 1969.

No meu tempo, os soldados de 2ª classe (só tinhamos um 1º cabo com o exame da 3ª ou 4ª classe) da CCAÇ 2590/CCAÇ 12) ganhavam os mesmíssimos 600 escudos, mais 24$50 por dia para a alimentação (uma vez que eram desarranchados). No total ganhavam cerca de 1350$ / mês, o que dava para comprar 225 quilos de arroz na loja do Rendeiro (1 saco de 100 quilos custava 600 pesos). Com famílias numerosas, não era muito, mas sempre era melhor do que andar a lavrar mancarra... Com o fim da guerra, foi o colapso da economia familiar...e pssou a rapar-se fome, apesar da ajuda sueca e outras...

31 de outubro de 2021 às 18:37 

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Valdemar, não tenho ideia nenhuma de haver, no meu tempo,em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70, e BART 2917, 1970/72), "escola de cabos"... Nenhum dos nossos soldados arvorados chegou a 1º cabo, no meu tempo. A CCAÇ 12 foi usada como "carne para canhão", foi "esmifrada" pelo comando dos batalhões do setor L1...

Dei explicações ao 1º sargento para frequentar a Escola Central de Sargentos, em Águeda, mas nunca fui requisitado para dar aulas aos nossos pobres soldados fulas... Sei que alguns mais tarde chegaram a 1ºs cabos, graças sobretudo ao seu esforço e sacrifício pessoais... Caso do Umaru Baldé, por exempplo, que no fim já era capaz de escrever uma carta em português acrioulado...

31 de outubro de 2021 às 18:47 

(vi) Fernando Ribeiro:

Prezado Valdemar, os soldados básicos eram geralmente analfabetos e até atrasados mentais. Eles costumavam ser os soldados que tinham reprovado nas provas finais da especialidade, qualquer que ela fosse, ficando sem especialidade. Em geral, eram indivíduos completamente incapazes, que só serviam para varrer a parada, limpar as casas de banho, lavar as panelas e tachos na cozinha e outras tarefas semelhantes.

Contudo, havia exceções, uma das quais foi o impedido do comandante do meu batalhão. Este impedido também era básico, mas de parvo não tinha absolutamente nada. Eu não me lembro do nome dele; só sei que tinha a alcunha de "Paraquedista". 

«"Paraquedista", porquê?», perguntarás. Porque ele tinha sido mesmo paraquedista na Força Aérea! Um dia, em Tancos, ele e mais dois ou três resolveram dar um passeio de helicóptero à socapa, julgando, talvez, que seria fácil pilotar um aparelho daqueles. A aventura correu-lhes mal, o helicóptero caiu e eles foram parar ao hospital. A seguir foram punidos e expulsos da FAP. Foram parar ao Exército, que era o destino de todos os que a Força Aérea rejeitava. 

Ora não existia no Exército alguma especialidade chamada "paraquedista". Logo, o nosso homem ficou sem especialidade, como soldado básico. Na verdade, ele era um militar perfeitamente operacional, que poderia ter sido feito soldado atirador ou soldado comando, mas não foi isso o que lhe aconteceu. O comandante do meu batalhão nomeou-o seu impedido, para ele lhe fazer a cama todos os dias, engraxar as botas, lavar a roupa, etc.

1 de novembro de 2021 às 01:42

(vii) Valdemar Queiroz:

Luís, desconhecia esses valores dos vencimentos dos soldados fulas desarranchados, manga de patacão. Também seria assim com outros soldados de recrutamento local, no "fim" pudera não quererem vir para a metrópole e vem o 'paguem-nos até Dezembro e ficamos cá'.

Agora, não sei explicar bem se as aulas (instrução primária) que eu dava eram verdadeiramente a "escola de cabos", lembro-me deles fazer exame e haver uma chatice por eu escolher um dos "putos" e os mais velhos comentarem 'rapaz não pode ser cabo e mandar nos mais velhos'.

Por acaso, também, fui eu que dei umas lições de matemática/álgebra ao nosso 1º. sargento que também veio a meio da comissão para Águeda.

Fernando Ribeiro,  é como dizes, alguns básicos, coitados, tinham 'uma pancada', mas como eramos um país poupadinho aproveitávamos tudo. O básico da nossa CART11 era o homem da cantina. (...)


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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 30 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22671: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte VII: O meu percurso militar (I): Região Militar de Angola: EAMA, CICA, Companhia de Transportes nº 2560, QG-4ª Rep, Depósito de Adidos (1967/68)

Guiné 61/74 - P22683: Parabéns a você (1999): Ten-General PilAv Ref António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22676: Parabéns a você (1998): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72 (Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhala, 1973/74)

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22682: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVIII: A ração de combate


Foto nº 2


Foto nº 1 > 
Ração de combate tipo E n.º 20. (Na parte de baixo lê-se: "Não deite fora o saco exterior. Servir-lhe-á para guardar os alimentos ainda não utilizados").

Foto nº 2 >  A ração de combate tipo E nº 20 continha; 1 tubo de leite condensado, 1 lata de atum, 1 lata de sardinhas, 2 latas de carne/carne com feijão /tripas, 1 lata pequena de compota, 1 lata de fruta em calda / sumo de fruta, 1 torrão nougat (amendoim). 1 pastilha de sal, uma saqueta de café instantãneo / comprimido e duas bolachas.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 3 >  Ração individual de combate ( Individual comba ration / Ration individuelle de combat... NATO approved.  Era utilizada pelas nossas Forças Armadas em 2011. Foto de José Marcelino Martins (2011), com a devida vénia (*)




O ex- furriel mil Joaquim Costa: natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias (, a sua história de vida), 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (**)

Parte XVIII - A Ração de  Combate


A maior parte das nossas refeições,  ao longo dos quase dois anos de Guiné,  foram Ração de Combate.

Convenhamos que eram mais saborosas e nutritivas do que o arroz com estilhaços (arroz com minúsculos bocados de carne), à moda do vago mestre Ferreira.


O arroz com estilhaços, à moda do Furriel Vago Mestre Ferreira, fez-me lembrar as noites passadas na mítica tasca em Famalicão (Vai ou Racha) cujo proprietário era um benfiquista doente, pai do extraordinário jogador de futebol dos lampiões, Vítor Paneira.

Nesta tasca entre as muitas especialidades destacavam-se os bolinhos de bacalhau preparados pela sua simpática e esmerada esposa. Uma certa noite, já bem bebidos, ao comer um dos bolinhos de bacalhau, viro-me para o Vai ou Racha (,era assim como o tratávamos) e digo-lhe: 
− Ó Sr. Vai ou Racha! Este bolinho de bacalhau está cheio de espinhas! 

Resposta pronta do homem: 

− Como assim,  se estes só levaram batatas?!

Assim nos respondia o Vago Mestre Ferreira quando reclamavamos que a carne era pouca: 
−Como assim  −  retorquia  ele  − se  só coloquei arroz na panela?!

As rações de combate,  tipo E (Fotos nº 1 e 2), tinham várias nuances, diferindo de remessa para remessa. A remessa que me ficou na memória era composta por:

  • uma lata de conserva (geralmente sardinha/cavala?);
  • uma lata com carne;
  • uma lata de leite;
  • um sumo;
  • uma pequena lata de queijo e/ou marmelada;
  • uma bisnaga (espécie de pasta de dentes) de leite condensado;
  • um pacote de bolachas;
  • e, imaginem!, um comprimido de café para desfazer na boca.

Eu, como era alérgico ao leite (por alguma razão o querem tirar da roda dos alimentos), cedia ou trocava com outro camarada por um  sumo e despachava o leite condensado que me sabia ao óleo fígado de bacalhau que me deram na escola primária (a disputa pela minha bisnaga era dura e compreendia quase todo o pelotão). Metia-me impressão a forma como “mamavam” aquela coisa.

Mais tarde surgem umas latas de chispe e feijoada/tripas que era como fazer uma refeição num restaurante com estrela Michelin.

Sempre que aparecia o chispe e a feijoada, tinhamos problemas com o furriel enfermeiro porque lhe gastávamos todo o algodão e álcool para aquecer a iguaria.

Depois de “deitar abaixo” a respetiva ração, chegava o momento mais esperado e importante do dia, o momento do cimbalino (não confundir com o momento coca-cola!).

Fechava os olhos e transportava-me para uma esplanada de praia do picadeiro da Póvoa de Varzim, a contemplar o mar... e saboreava, com estilo, o melhor da ração – o comprimido de café.

Depois, era o clímax com as fumaças do cigarro oferecido (quase roubado) pelo Machado ou pelo Gouveia. Se fosse numa emboscada noturna, o ritual das fumaças contemplava o retirar do tapa chamas da G3 com a introdução do cigarro no cano para um gajo se tornar  um alvo fácil  de "tiro ao boneco”, por parte do IN.

Por uma questão de curiosidade,  fiz uma pesquisa sobre as rações de combate utilizadas hoje nas nossa forças armadas e fiquei com água na boca (Foto nº 3):

Pois, as rações com certificação NATO e utilizadas hoje (pelo m,enos, em 2011) pelas nossas forças armadas, incluiam as seguintes iguarias:
  • Pequeno almoço: Cacau com açúcar, 18 gramas; leite em pó, 15 gramas; bolacha doce, 125 gramas; geleia de fruta, 2 embalagens de 20 gramas cada;
  • Almoço: Jardineira de feijão, 145 gramas; paté de fígado, 65 gramas; doce de maçã, 50 gramas;
  • Jantar: Massa Bolonhesa, 400 gramas; sardinhas em óleo, 115 gramas;
  • Complementos alimentares: Bolachas de água e sal, 2 embalagens de 120 gramas; sumo de fruta em pó, 2 carteiras de 20 gramas; açúcar, 2 pacotes de 10 gramas; sal, pacotes de um grama; chocolate, 2 barras de 25 gramas; chiclete, 2 unidades; caramelos, 4 rebuçados;
  • Complementos não alimentares: Comprimidos purificadores de água, 4 unidades; pastilhas inflamáveis, 6 unidades; dispositivo de aquecimento, uma chapa moldável; carteira de fósforos; talheres de plástico; saco para lixo.
Mesmo assim, reconhecendo as significativas melhorias, não trocava estas nutritivas rações de combate pelas do meu tempo. A esta ração “modernaça” falta-lhe o essencial: O cimbalino!…

(Continua )
_________


(**) Último poste da série > 11  de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22621: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVII: a minha "bigodaça”... que tanto incomodou os senhores da guerra

Guiné 61/74 - P22681: Manuscrito(s) (Luís Graça) (206): A tradição do pão-por-deus, no tempo em que as criança não eram mimadas mas eram reizinhos por um dia...


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 27 de dezembro de 2016 > Um ramo seco de carvalho com bugalhos ... Mas aqui não há a tradição, que é mais urbana, do pão-por-deus...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]  


1. Lembrando uma tradição antiga da minha Estremadura  (*):

Na tua infância
pedia-se o “pão-por-deus”, 
de porta em porta,
no Dia de Todos os Santos,
véspera do Dia de Finados.

Pedia-se o “pão-por-deus”,
por amor de Deus,
“por alma de quem... (a senhora, ou o senhor...) lá tem”.

Lembras-te também de andar,
com a tua mana e outros miúdos da rua do Castelo,
a percorrer as ruas, becos e travessas da tua vila,
que era pequena
e tinha poucas ruas.

Batia-se à porta dos ricos,
que eram poucos e, em geral, avarentos;
e dos remediados,
que já eram mais.
À porta dos “pobres de pedir”,
não valia a pena bater.
Não tinham, coitados,  em casa, as guloseimas
que os putos procuravam,
para encher o saco de pano:
pinhões, nozes, castanhas,
figos, amêndoas, romãs,
broas, bolinhos de festa,rebuçados 
(que nesse tempo ainda não havia chupa-chupas nem chocolates)…
E, claro, pão, acabado de cozer no forno,
que nesse tempo ainda não havia o pão de plástico.

E, a cereja no bolo, um tostãozinho,
mais uma vez por alma dos defuntos da casa.
No tempo em que poucos conheciam a cor do dinheiro...
Um tostãozinho como na época dos santos populares,
“um tostãozinho para o São João…
e para a nossa reinação”.

Algumas senhoras da elite local
gostavam de receber nesse dia
as chusmas de miúdos que lhes batiam à porta,
a pedir o "pão-por-deus".
Não vinham sujos, nem rotos, nem de pé descalço,
pelo contrário vinham todos "endomingados",
não lhes causando, por isso, 
às senhoras e aos senhores da vila,
a repugnância que os andrajosos
costumavam habitualmente provocar 
aos bem nascidos, bem vestidos e bem aventurados…
Algumas senhoras não os convidavam a entrar,
eram as criadas que despachavam as crianças,
umas com bons modos, outras nem por isso.

Era uma festa, o dia (ou a manhã) do "pão-por-deus",
fazendo lembrar aos ricos
que dar aos pobres era dar a Deus…
Mas não era propriamente uma manifestação de caridade,
muito menos uma forma de ostentação da caridade,
que essa ficava para as grandes ocasiões,
como os cortejos de oferendas
para construir ou ampliar o hospital,
ou as doações em vida por outras razões pias,
como a contrução de um capela,
em geral com direito a placa de bronze ou em pedra,
lembrando o acto e o nome do benfeitor.

Fazia parte da sociabilidade das gentes da vila
e das suas festividades cíclicas.
E a sua origem perdia-se na noite dos tempos,
remontando talvez aos rituais pagãos dos teus antepassados celtas,
que gostavam de ofertar pão e outros géneros
aos seus queridos mortos…

A tradição foi reforçada em Lisboa e região da Estremadura
com o terrível terramoto de 1 de novembro de 1755,
faz agora 266 anos
Milhares de habitantes em pânico e esfomeados
começaram a pedir, aos mais afortunados,
o pão-por-deus,
o pão por amor de Deus.

O hábito ficou e tornou-se um ritual,
retomado mais tarde pelas crianças,
e celebrado ainda hoje,
apesar da concorrência desleal do Halloween,
também ele de origem céltica,
mas já muito adulterado pelo marketing comercial,
e pelos berçários, infantários e creches
onde as crianças são formatadas…

Provavelmente a Igreja enquadrou tudo isto muito bem,
como fez com outras festividades cíclicas de origem pagã,
fazendo coincidir o “pão-por-deus”
com o Dia, festivo, de Todos os Santos,
 seguido do Dia de Finados

Há quem encontre alguma analogia entre o “pão-por-deus”
e o “trick or treat” (doçuras ou travessuras)
da noite de Halloween americano…
Dar e receber faz parte, afinal, do dom...
Em todas as sociedades há rituais destes,
mas os protagonistas principais,
no teu tempo (e ainda hoje…)
eram os miúdos até à idade escolar,
que nesse dia eram uns reizinhos.

Já depois dos dez anos tinhas vergonha
de andar a pedir de porta em porta
mesmo que fosse o “pão-por-deus”,
que um bom cristão não podia negar a ninguém.

Ia-se expressamente a certas casas
cujos donos ou donas viviam um pouco melhor do que a maioria.
E não eram muitas...
Quem não tinha filhos,
sentia-se melhor ( ou mais recetivo)
face ao peditório (ou pedinchice) dos putos.

Lembras-te da Dona Rosa, senhora professora das Beiras, 
de boas famílias, e da sua irmã Elvira,
uma viúva, a outra solteira,
que viviam na Escola Conde Ferreira (, na ala feminina),
frente à Casa de Deus, a igreja do Convento.
Lembras-te da senhora da Dona Raquel,
senhora rica, bondosa, também viúva,
que vivia num dos grandes solares da vila,
ocupando um quarteirão.
Ah!, o misto de  gozo e de terror que te dava puxares o grosso manípulo, em bronze, da sineta,
e esperares uma eternidade de segundos até que se abrisse o pesado portão...
e enfrantares a frieldade tumular da antiga cavalariça, 
o chão empedrada com seixos do mar,
e, por fim, ganhares coragem para galgar a enorme escadaria
que te levava ao primeiro piso da mansão...

Enfim, lembras-te de outras senhoras,
que faziam ou mandavam fazer bolinhos especiais,
para esta ocasião,
com um delicioso sabor a canela e pinhões,
as "broas do pão-por-deus" 
ou "broas dos santos"...
E que recebiam em troca um sorriso rasgado das crianças
que nesse tempo não eram mimadas,
por isso era o  seu dia especial.

Chegavas a casa, em cima da hora do almoço,    
extenuado, mas ainda alvoraçado,
com a sacola de pano cheio do "pão-por-deus".
Nesse dia podias alambazar-te, que não era pecado,
com guloseimas,
que a tua mãe, espartana, não comprava nem te deixava comer.
Ela governava a casa com mão de ferro,
embora nunca te faltasse o essencial, 
a começar pelo amor.

Mas nesse tempo as crianças não tinham nada,
nem brinquedos nem guloseimas.
Ou melhor: tinham a rua toda para brincar...
Era por isso que o dia do "pão-por-deus"
era tão ansiado...
Hoje está esquecido,
correndo-se mesmo o risco de se perder 
esta  bela tradição popular portuguesa.

Tudo tem o seu tempo... 
Mas é triste: já não vês bandos de crianças,
muito menos  na rua,
e, muito menos ainda, a brincar  todas juntas,
fora dos muros securitários das escolinhas e das creches...

Já não te lembravas, é verdade, 
os versinhos que as crianças do teu tempo,
com o seu espantoso sentido de justiça, 
cantavam, de porta em porta.

Se o dono ou dona abrisse a porta
e desse o "pão-por-deus", cantava-se;

Esta casa cheira a broa,
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho,
Aqui mora um santinho.


Em caso contrário, praguejava-se:

Esta casa cheira a alho,
Aqui mora um espantalho,
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto.

Luís Graça, Lourinhã, 1 de novembro de 2021.
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22670: Manuscrito(s) (Luís Graça) (205): E na hora da tua morte, ámen!... (Ninguém, por certo, te perguntará p'los teus sonhos... de menino)

Guiné 61/74 - P22680: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XIV: um mês de novembro de 1966 relativamente tranquilo: no decurso da Op Hino, foi abatido o antigo pescador de Enxalé de nome Jorge, de etnia papel, que servira de guia ao IN aquando do ataque a Porto Gole




João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)
(a viver em Nova Iorque desde 1977)



1. Continuação da publicação das memórias do João Crisóstomro, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano, 
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)

Parte XIV:  Um mês de niovembro de 1966 relativamente tranquilo


Dia 1 de Novembro de 1966

A CCaç 1439 efectuou a Op Gamarra. O relatório menciona ter sido uma “acção defensiva” que "não foi possível realizar-se em virtude do mato entre Sinchã Corubal e Medina se encontrar absolutamente fechado e sem vestígios de qualquer picada.Verificou-se que o In não pretica este itinerário e o guia embora da região perdeu-se não tendo sido possível às NT seguir a corta mato."


Dia 7 de Novembro de 1966.

Efectuou-se a Op Hélice, que #consistiu numa patrulha de reconhecimento e combate a N.do Geba, Desde o Rio Guaturandim até à região de Mato Cão. Em toda esta zona não há vestígios de passagens de grupos IN e as picadas existentes deixaram de ser visíveis."


Dia 11 e 12 de Novembro de 1965

"Realizou-se  a Op Hino à região do Chão balanta (...) e uma batida as tabancas de Bissá, Funcor, Sée, Nafo e Chubi."

Durante a batida efectuada em Nafo foi referenciado um grupo de 4 elementos IN os quais reagiram com fogo de P.M. 

Perseguidos foram abatidos dois elementos verificando-se que um era chefe da morança e o outro o antigo pescador de Enxalé de nome Jorge, de raça papel. "A morança ficou deserta porque foi incendiada."

Resultados obtidos:

 "Dois mortos sendo o tal Jorge o elemento que serviu de guia ao In aquando do ataque a Porto Gole. Foi detido como suspeito o chefe de uma morança de Bissá de nome Nhasse Nadai,  o qual foi posto em liberdade mais tarde. " 

(...) "Do contacto havido com a população balanta de Bissá parece o mesmo estar disposto a colaborar com as NT".


Dia 24 e 25 de Novembro de 1966

Realizou-se a Op Hangar a N de Cã Mamadu que "consistiu em montar emboscadas e patrulhas de reconhecimento" (...).

"Foi montada uma armadilha em Cã Mamadu a qual foi accionada posteriormente por um elemento IN."


Dias 29 e 30 de Novembro de 1966


Realizou-se a Op Gume na região a N. de Porto Gole sudoeste de Nantem que consistiu num golpe de mão ao acampamento IN de Mato Gorba. A aproximação das NF  foi detectada ( pelo IN) e seguiram-se ataques, emboscadas, contra ataques, e perseguições . No fim o IN dispersou recusando-se ao combate e não houve mais contactos,

Resultados obtidos:

Três feridos confirmados, material diverso e documentos vários , entre os quais material escolar e guias da PAIGC

(Continuação)

_____________

Nota do editor:

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22679: Notas de leitura (1391): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Trata-se de uma investigação cuidadosíssima, logo na 1.ª edição foi acolhida pelos especialistas com rasgados encómios. David Brookshaw disse mesmo que se pode ler como um romance pós-moderno, é um cintilante percurso onde se fala da aurora dos nacionalismos, se perfilam protagonistas, se contextualizam no pós-II Guerra Mundial os pilares da autodeterminação que levam à organização da luta armada. 

Relato imparcial, como se poderá ver na descrição da participação dos cabo-verdianos nos teatros de guerra da Guiné, a forma como se apresentam as referidas identidades culturais e, compreensivelmente, a história do PAIGC em Cabo Verde até 1991, quando chega e se consagra a via pluripartidária. 

De leitura obrigatória para quem estuda a Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Cabo Verde, os bastidores da independência (3)

Beja Santos

Trata-se do primeiro livro do jornalista e investigador José Vicente Lopes, construído a partir de entrevistas com mais de cem personalidades cabo-verdianas, guineenses e portuguesas, cruzadas com fontes documentais e bibliográficas: “Cabo Verde, os bastidores da independência”, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 3.ª edição, 2013. 

Vai longa a pesquisa deste valioso documento onde a história oral tem um peso determinante. O autor percorreu as raízes da independência, apresentou protagonistas, deitou um olhar alargado às conjunturas internacionais, contextualizou os ideais do império português, iniciou-se a luta armada na Guiné, descreveu-se ao pormenor as tentativas de subversão nas ilhas e mesmo as tensões entre os cabo-verdianos e a liderança do PAIGC. 

Assim se chegou à independência da Guiné-Bissau e se preparou a independência de Cabo Verde. É neste ponto que o investigador pergunta, depois de saber que tudo foi facilitado ao PAIGC para dispor do monopólio do poder: poderia ter sido diferente?

O PAIGC arrogava-se ao papel de interlocutor privilegiado, a sua implantação nas ilhas era minoritária, cita mesmo um trabalho de Manuel Lucena em que este escreveu num relatório enviado a Melo Antunes que “a maior parte da população ficaria muito contente com uma autonomia menor do que a dos Açores…”

São opiniões que valem pelo que valem, vinte anos após a independência quadros cabo-verdianos do então PAIGC irão deplorar o facto de não se ter tratado bem uma real oposição ao PAIGC, que existia, designadamente a de Leitão da Graça e o seu grupo. O próprio Aristides Pereira admitiu excessos. Leitão da Graça, líder da UPICV, simpatizante da linha chinesa, reconhece que o contexto era favorável ao apoio soviético e dos países socialistas, Mao Tsé-tung estava em decadência e os chineses acabaram por se aliar ao imperialismo americano. 

O PAIGC tinha sido reconhecido tanto pela OUA como pela ONU como o único representante do povo de Cabo Verde, fazia a sua entrada triunfal nas ilhas. Carlos Reis, do PAIGC, tecerá o mesmo tipo de considerações, dizendo: 

“O partido único foi proclamado na rua, pela própria evolução dos acontecimentos. Vivia-se naquela altura um clima favorável ao partido único. A própria ONU escolhia representantes legítimos e únicos dos povos que lutavam pela sua independência”

José Vicente Lopes aborda seguidamente a questão do PAIGC e dos intelectuais. Havia uma figura consagrada, Baltazar Lopes, licenciado em Direito e Filologia Românica, passou a sua vida em Cabo Verde no ensino, foi reitor do Liceu Gil Eanes. Distinguiu-se por romances como o “Chiquinho” e pela criação da revista “Claridade”, fundada em 1936. Desconfiava do PAIGC, quadros importantes como Silvino da Luz e Osvaldo Lopes da Silva fizeram acusações bastante ásperas a determinados escritores, falava-se mesmo em atirar os intelectuais ao mar. Baltazar Lopes irá registar magoado o seu ressentimento com o tratamento que lhe deram. Muito se falará também de Onésimo Silveira e de Teixeira de Sousa, figuras que entrarão em rota de colisão com o PAIGC.

Segue-se a construção do Estado, Pedro Pires fica à frente do Governo onde constarão, entre outros, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Carlos Reis, Osvaldo Lopes da Silva, Amaro da Luz, Sérgio Centeio, Manuel Faustino. E diz-nos o autor: 

“O Arquipélago ascendia à independência com uma população estimada em 280 mil habitantes, uma economia completamente arruinada, cabendo ao setor terciário – comércio, serviços públicos e privados – um predomínio absoluto, aparecendo o Estado como o principal empregador. A agricultura, essencialmente a de sequeiro, encontrava-se em profunda crise, face aos efeitos da seca que já se prolongavam há oito anos, mantendo 91% da população economicamente ativa sobre a sua dependência, na maioria dos casos através de brigadas de apoio social. A indústria resumia-se a três ou quatro padarias, uma fábrica de tabacos e duas unidades falidas de pesca”

Este primeiro Governo centrou as suas prioridades no combate ao desemprego, na procura de aquisição de meios de transportes marítimos, na construção de silos e armazéns; os investimentos foram para o desenvolvimento rural e a pesca, numa primeira linha e mais abaixo os transportes e as comunicações. Houve recursos externos que facilitaram muitas destas iniciativas. Mas havia divisões ideológicas, há que as ter em conta para perceber as linhas políticas do PAIGC até ao dia em que o multipartidarismo, depois da queda do Muro de Berlim, mudou o xadrez cabo-verdiano. 

José Vicente Lopes dá-nos um impressivo olhar sobre esta governação do PAIGC: a política de independência face às superpotências, como foi tratado o dossiê da África do Sul, como se tentou um modelo económico misto mas sob a supervisão do Estado, e passa em revista os múltiplos dossiês da governação. 

A oposição foi-se organizando, a UCID ganha expressão. E começam as contradições, a formação de grupos, a fragmentação ideológica, releva-se, pelo bom senso e prudência, a figura de Pedro Pires. O III Congresso do PAIGC realiza-se em Bissau, em novembro de 1977, avultam tensões entre maoístas, trotskistas e leninistas, Pedro Pires passa a ser muito questionado. Toda a problemática da identidade cultural cabo-verdiana é analisada nesta obra.

E assim chegamos à questão constitucional, que levantará muita celeuma nas ilhas e com forte ressonância em Bissau, dirão muitos analistas que será um dos motivos fundamentais para o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980. O tema é abordado com profundidade, a páginas 600 do seu importantíssimo trabalho o autor analisa as diferenças entre Cabo Verde e a Guiné:

“Estudiosos das causas que conduziram à rutura entre os dois países situam-nas, geralmente, na discrepância das realidades que se foram construindo na Guiné e em Cabo Verde. Enquanto, no primeiro caso, havia uma hierarquia partidária e militar que era mais obedecida; no segundo, prevalecia, pelo menos inicialmente, uma massa crítica e uma liderança mais baseada na discussão dos problemas do que na obediência cega. 

A estrutura da sociedade cabo-verdiana – mais moderna, escolarizada e crítica, além de dependente do exterior –, contribuía para que o regime na Praia fosse menos pretoriano do que o seu congénere de Bissau. Em suma, para Pedro Pires, o 14 de novembro foi o desfecho de uma situação contraditória, ‘duas realidades que se foram desenvolvendo e que, em vez de se aproximarem, se afastaram. Teria de ser assim. Não havendo um 14 de novembro, talvez viesse a acontecer uma outra coisa. Sabíamos, entre nós, que havia qualquer coisa que não marchava bem’”

Tanto Aristides Pereira como Luís Cabral se referiam regularmente a desvios, práticas de corrupção, passividade e falta de rigor ideológico. E vão surgir acusações múltiplas: de Nino Vieira contra Luís Cabral, de Aristides Pereira contra Luís Cabral e Nino, de Vasco Cabral contra Luís Cabral, e muito mais. Os dois partidos separam-se, perdurarão as feridas, a reconciliação virá depois. E inicia-se um processo histórico que conduzirá ao multipartidarismo em Cabo Verde. 

A 13 de janeiro de 1991, realizar-se-ão no Arquipélago as primeiras eleições livres e pluralistas da sua história, ganhas pelo Movimento para a Democracia (MpD). No mês seguinte, António Mascarenhas Monteiro vencerá Aristides Pereira, tornando-se no primeiro Presidente da República eleito em eleições multipartidárias.

Obra singular, hoje de referência para entender o papel cabo-verdiano na formação, desenvolvimento, luta armada e independência de Guiné e Cabo Verde. A sigla da unidade foi o medicamento eficaz para a luta vitoriosa mas encerrava em si o peso de uma tormenta que se chama em História a longa duração dos acontecimentos que tanto os guineenses como os cabo-verdianos não ignoravam – dois países com identidades tão distintas jamais poderiam ficar associados.

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22659: Notas de leitura (1390): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (2) (Mário Beja Santos)