terça-feira, 2 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22681: Manuscrito(s) (Luís Graça) (206): A tradição do pão-por-deus, no tempo em que as criança não eram mimadas mas eram reizinhos por um dia...


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 27 de dezembro de 2016 > Um ramo seco de carvalho com bugalhos ... Mas aqui não há a tradição, que é mais urbana, do pão-por-deus...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]  


1. Lembrando uma tradição antiga da minha Estremadura  (*):

Na tua infância
pedia-se o “pão-por-deus”, 
de porta em porta,
no Dia de Todos os Santos,
véspera do Dia de Finados.

Pedia-se o “pão-por-deus”,
por amor de Deus,
“por alma de quem... (a senhora, ou o senhor...) lá tem”.

Lembras-te também de andar,
com a tua mana e outros miúdos da rua do Castelo,
a percorrer as ruas, becos e travessas da tua vila,
que era pequena
e tinha poucas ruas.

Batia-se à porta dos ricos,
que eram poucos e, em geral, avarentos;
e dos remediados,
que já eram mais.
À porta dos “pobres de pedir”,
não valia a pena bater.
Não tinham, coitados,  em casa, as guloseimas
que os putos procuravam,
para encher o saco de pano:
pinhões, nozes, castanhas,
figos, amêndoas, romãs,
broas, bolinhos de festa,rebuçados 
(que nesse tempo ainda não havia chupa-chupas nem chocolates)…
E, claro, pão, acabado de cozer no forno,
que nesse tempo ainda não havia o pão de plástico.

E, a cereja no bolo, um tostãozinho,
mais uma vez por alma dos defuntos da casa.
No tempo em que poucos conheciam a cor do dinheiro...
Um tostãozinho como na época dos santos populares,
“um tostãozinho para o São João…
e para a nossa reinação”.

Algumas senhoras da elite local
gostavam de receber nesse dia
as chusmas de miúdos que lhes batiam à porta,
a pedir o "pão-por-deus".
Não vinham sujos, nem rotos, nem de pé descalço,
pelo contrário vinham todos "endomingados",
não lhes causando, por isso, 
às senhoras e aos senhores da vila,
a repugnância que os andrajosos
costumavam habitualmente provocar 
aos bem nascidos, bem vestidos e bem aventurados…
Algumas senhoras não os convidavam a entrar,
eram as criadas que despachavam as crianças,
umas com bons modos, outras nem por isso.

Era uma festa, o dia (ou a manhã) do "pão-por-deus",
fazendo lembrar aos ricos
que dar aos pobres era dar a Deus…
Mas não era propriamente uma manifestação de caridade,
muito menos uma forma de ostentação da caridade,
que essa ficava para as grandes ocasiões,
como os cortejos de oferendas
para construir ou ampliar o hospital,
ou as doações em vida por outras razões pias,
como a contrução de um capela,
em geral com direito a placa de bronze ou em pedra,
lembrando o acto e o nome do benfeitor.

Fazia parte da sociabilidade das gentes da vila
e das suas festividades cíclicas.
E a sua origem perdia-se na noite dos tempos,
remontando talvez aos rituais pagãos dos teus antepassados celtas,
que gostavam de ofertar pão e outros géneros
aos seus queridos mortos…

A tradição foi reforçada em Lisboa e região da Estremadura
com o terrível terramoto de 1 de novembro de 1755,
faz agora 266 anos
Milhares de habitantes em pânico e esfomeados
começaram a pedir, aos mais afortunados,
o pão-por-deus,
o pão por amor de Deus.

O hábito ficou e tornou-se um ritual,
retomado mais tarde pelas crianças,
e celebrado ainda hoje,
apesar da concorrência desleal do Halloween,
também ele de origem céltica,
mas já muito adulterado pelo marketing comercial,
e pelos berçários, infantários e creches
onde as crianças são formatadas…

Provavelmente a Igreja enquadrou tudo isto muito bem,
como fez com outras festividades cíclicas de origem pagã,
fazendo coincidir o “pão-por-deus”
com o Dia, festivo, de Todos os Santos,
 seguido do Dia de Finados

Há quem encontre alguma analogia entre o “pão-por-deus”
e o “trick or treat” (doçuras ou travessuras)
da noite de Halloween americano…
Dar e receber faz parte, afinal, do dom...
Em todas as sociedades há rituais destes,
mas os protagonistas principais,
no teu tempo (e ainda hoje…)
eram os miúdos até à idade escolar,
que nesse dia eram uns reizinhos.

Já depois dos dez anos tinhas vergonha
de andar a pedir de porta em porta
mesmo que fosse o “pão-por-deus”,
que um bom cristão não podia negar a ninguém.

Ia-se expressamente a certas casas
cujos donos ou donas viviam um pouco melhor do que a maioria.
E não eram muitas...
Quem não tinha filhos,
sentia-se melhor ( ou mais recetivo)
face ao peditório (ou pedinchice) dos putos.

Lembras-te da Dona Rosa, senhora professora das Beiras, 
de boas famílias, e da sua irmã Elvira,
uma viúva, a outra solteira,
que viviam na Escola Conde Ferreira (, na ala feminina),
frente à Casa de Deus, a igreja do Convento.
Lembras-te da senhora da Dona Raquel,
senhora rica, bondosa, também viúva,
que vivia num dos grandes solares da vila,
ocupando um quarteirão.
Ah!, o misto de  gozo e de terror que te dava puxares o grosso manípulo, em bronze, da sineta,
e esperares uma eternidade de segundos até que se abrisse o pesado portão...
e enfrantares a frieldade tumular da antiga cavalariça, 
o chão empedrada com seixos do mar,
e, por fim, ganhares coragem para galgar a enorme escadaria
que te levava ao primeiro piso da mansão...

Enfim, lembras-te de outras senhoras,
que faziam ou mandavam fazer bolinhos especiais,
para esta ocasião,
com um delicioso sabor a canela e pinhões,
as "broas do pão-por-deus" 
ou "broas dos santos"...
E que recebiam em troca um sorriso rasgado das crianças
que nesse tempo não eram mimadas,
por isso era o  seu dia especial.

Chegavas a casa, em cima da hora do almoço,    
extenuado, mas ainda alvoraçado,
com a sacola de pano cheio do "pão-por-deus".
Nesse dia podias alambazar-te, que não era pecado,
com guloseimas,
que a tua mãe, espartana, não comprava nem te deixava comer.
Ela governava a casa com mão de ferro,
embora nunca te faltasse o essencial, 
a começar pelo amor.

Mas nesse tempo as crianças não tinham nada,
nem brinquedos nem guloseimas.
Ou melhor: tinham a rua toda para brincar...
Era por isso que o dia do "pão-por-deus"
era tão ansiado...
Hoje está esquecido,
correndo-se mesmo o risco de se perder 
esta  bela tradição popular portuguesa.

Tudo tem o seu tempo... 
Mas é triste: já não vês bandos de crianças,
muito menos  na rua,
e, muito menos ainda, a brincar  todas juntas,
fora dos muros securitários das escolinhas e das creches...

Já não te lembravas, é verdade, 
os versinhos que as crianças do teu tempo,
com o seu espantoso sentido de justiça, 
cantavam, de porta em porta.

Se o dono ou dona abrisse a porta
e desse o "pão-por-deus", cantava-se;

Esta casa cheira a broa,
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho,
Aqui mora um santinho.


Em caso contrário, praguejava-se:

Esta casa cheira a alho,
Aqui mora um espantalho,
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto.

Luís Graça, Lourinhã, 1 de novembro de 2021.
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22670: Manuscrito(s) (Luís Graça) (205): E na hora da tua morte, ámen!... (Ninguém, por certo, te perguntará p'los teus sonhos... de menino)

9 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Na legenda da fotografia, Luís Graça escreveu:

As bolotas dos carvalhos... Mas aqui não há a tradição, mais urbana, do pão-por-deus...

Dois reparos se me oferecem fazer:

1 - As estruturas esféricas representadas na fotografia não são bolotas. São bugalhos ou galhas (acho que "galhas" é o termo mais correto), que são estruturas ocas provocadas por um inseto, cuja larva se desenvolve no seu interior até se metomorfosear em inseto adulto. A esfericidade destas estruturas é admirável e leva muitas pessoas a julgar que são frutos dos carvalhos, mas não são. Os frutos dos carvalhos, que são as bolotas, são muito diferentes. São frutos muito nutritivos, tal como as castanhas, tendo sido consumidos em abundância antes da chamada "descoberta" da América e da importação da cultura da batata e do milho.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Galha

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bolota


2 - A tradição do pão-por-deus não é necessariamente urbana. Ela não existe no norte de Portugal, quer seja nas zonas urbanas, quer seja nas zonas rurais. A cidade do Porto, por exemplo, é urbana desde a pré-história e não tem uma tal tradição. Tem outras.

Anónimo disse...

Caro amigo Luí,belo manuscrito sobre o dia do "pão-por-deus",revivi com grande nitidez a minha infância. Somos vizinhos!
A excelente fotografia com a legenda "as bolotas do carvalho" fez-me lembrar, que ao encontrares um carvalho não confundas bolotas com bugalhos!
Boa recuperação.
Abraço do
José Carvalho

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, camarada e amigo José Carvalho. Sim, esta tradição é muito "nossa", Lisboa e Estremadura, mas também açoriana...Ainda bem que gostaste. Quanto ao teu reparo,em relação à legenda da foto, tens toda a razão: não sou da terra dos carvalhos, mas na nossa quinta de Candoz temos muitos, lá em cima no Norte, e eu já devia ter a obrigação de saber distinguir uma "bolota" de um "bugalho"... Duplo obrigado. Um alfabravo. Luís


bugalho
bugalho | n. m.

bu·ga·lho
nome masculino
1. Excrescência do carvalho causada pela acção de certos insectos, da qual se extrai ácido gálico.Ver imagem = NOZ-DE-GALHA

2. Conta grande do rosário.

3. Lentilha que se introduz na fístula para excitar a supuração.

4. Espécie de isca vegetal.


"bugalho", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/bugalho [consultado em 03-11-2021].


bolota
bolota | n. f.

bo·lo·ta |ó|
(árabe balluta)
nome feminino
1. [Botânica] Fruto do sobreiro, carvalho ou azinheira.

2. Borla em forma de glande.

3. Porção de droga, geralmente envolvida em látex para poder ser transportada no interior do corpo (ex.: o detido transportava dezenas de bolotas de haxixe nos intestinos; o traficante terá ingerido as bolotas de cocaína no país de origem).


"bolota", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/bolota [consultado em 03-11-2021].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

José, já corrigi a legenda... LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Fernando Ribeiro, desculpa... Não sei porquê o "Big Brother" do Blogger considerou o comentário como "spam"... Fui lá agora resgatá-lo ao "purgatório"...

Tens razão no que escreves... Em relação ao "bugalho" e à "bolota", estamos entendidos, o José Carvalho, que é médico veterinário, também me achou a atenção para o erro, e eu estou grato aos dois...

Pus a questão a um dos meus sócios da quinta de Candoz, e não há dúvida: há carvalhos que dão landras (bolota usa-se mais para o fruto do sobreiro) e outros que só dão "bugalhos"... Têm uma folha diferente... Aqui também uma expressõa engraçada que se usa quando há algum a estorvar quem trabalha e não faz nada: "Olha, vai apanhar bugalhos"...

Aqui o carvalho, tal como o castanheiro (mas também o sobreiro), nasce espontaneamente. A landra que cai à terra, pode rapidamente dar origem a um carvalhito: ao retirar-se, para transplante, pode ver-se ainda a landra já com raiz e caule, sendo a raiz três vezes maior do que o caule...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Quanto à tradição do pão-por-deus... Não tempo agora de ir consultar os vários volumes da "Etnografia Portuguesa", do Leite de Vasconcelos... Mas, relendo "O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradiões", Vol II, do Teófilo de Braga (Lisvboa, Dom Quixote, 1994, sendo a edição original de 1885) que tenho aqui à mão, constato o seguinte, sobre "as festas do calendário popular":;

"Novembro. - O dia primeiro ou da festa de Todos-os-Santos era denominado nos documentos jurídicos do século XV Dia de pão por Deus (...)

Na vila de Alpedriz [, antiga freguesia de Alcobaça] os rapazes pdem em dia de Todos-os-Santos o pão por Deus, cantando:

Pão, pão por Deus
À mangarola;
Encham-me o saco
E vou-me embora.

Os lavradores dão-lhes merendeiros de tremoços,maçãs e nozes, se não vão contentes, cantam a praga:

O gorgulho, gorgulhete
Lhe dê no pote!
E não lhe deixe farelo
Nem farelote (...)

A 2 de Novembro é a festa dos Fiéis Defuntos: os rapazes em Coimbra pedem os bolinhos, bolinhós (...)" (pp. 222/223)

Há referências a Lamego (onde se vendem no dia de Finados os Santoros, bolo de pão de trigo com ovos) e aos Açores, mas também à Sicília e à Roma antiga... E depois o autor passa para o dia 11 de Novembro, festa de São Martinho.

Não referência à tradição lisboeta, que remontaria ao 1 de novembro de 1755...Em relação aos Açores, e citando José Torres, pode ainda ler-se:

"Pão por Deus é puramente a esmola que se dá em tenção dos defuntos, ou seja no próprio dia ou na véspera; esmola a que também a rapaziada se julga com direito, e para o que de porta em porta a todos importuna, voz em grita, como monótona cantilena. Quando o pedido é infrutuoso, costumam ir ao largo da casa resmungando facécias pouco espirituosas" (...) (pág. 223).

Valdemar Silva disse...

Pão-por-deus, por ser um peditório no dia de finados julgo estar relacionado com o culto dos mortos e o dia das oferendas que lhes eram feitas. Dizem que por aqui em Lisboa e arredores se desenvolveu devido ao acontecimento do terramoto de 1755 e a fominha que grassava nessa altura.
Luís, é caso para dizer 'trocar alhos por bugalhos'.
Que finórios que vocês são, então nunca ninguém jogou ao bugalho? Pois ao berlinde era mais fino, lá para os lados de Afife quem não tinha berlindes ou esferas jogava com bugalhos.
Desconhecia que os bugalhos são obras de insetos feitas nos carvalhos, já quanto a bolotas só se trincavam as das azinheiras. Em Afife chamavam landes às bolotas das azinheiras.
Além de se ler boa poesia, as coisas que se aprende no nosso blogue.

Abraços e saúde
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, a língua portuguesa é muito rica mas também traiçoeira... Vejo que nos meus textos estava a cometer o erro sistemático de confundir "os alhos com os bugalhos"... Neste caso com os bugalhos (ou galhas) com as bolotas, landras ou landes... Quando miúdo, também gostava de apanhar "bugalhos", onde sítios onde houvesse carvalhos (hoje muito menos frequentes na minha terra à beira mar...). 'Tá-se sempre a aprender uns com os outros, o que faz o fascínio deste blogue coletivo... LG

___________

landra
landra | n. f.

lan·dra
nome feminino
O mesmo que lande.


"landra", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/landra [consultado em 03-11-2021].


galha
galha | n. f.

ga·lha
(latim galla, -ae)
nome feminino
1. [Botânica] Excrescência nos vegetais causada pela acção de certos insectos ou de parasitas.Ver imagem = BUGALHO, CECÍDIO, NOZ-DE-GALHA

2. [Zoologia] Barbatana dorsal de alguns peixes.


"galha", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/galha [consultado em 03-11-2021].

António J. P. Costa disse...

Nest casa cheira broa.
Mora aqui só gente boa!
Nesta casa cheira a unto.
Está p'r'áqui algum defunto
Dos Bolinhos Bolinhós (para mim e para nós) em Coimbra 1973. Recolha minha.
Um Ab.
António J. P. Costa