sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22689: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
É um período de suspense, em breve um dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos fará uma proposta de trabalho a Paulo, Annette rejubila, já sonha que o seu amoroso saia da Rua do Eclipse todos os dias para tratar da vida mesmo com itinerâncias europeias, que é o timbre desta gente. Annette está em Amesterdão, já vigora o Tratado de Nice, a União Europeia parece caminhar a uma outra velocidade, no horizonte perfilam-se dez adesões. Com o sentido do dever, foi esta a promessa que deu a Paulo quando aceitou entrar num romance que também tinha uma história de guerra colonial, vai continuando a coligir os papéis, já fez contas aos meses que Paulo esteve na Guiné, aquela comissão deve estar para findar em breve. E então surge aquela história de ódio, parece-lhe tudo inacreditável, se é para meter no romance à força é algo que lhe parece abominável, com lisura e discrição irá perguntar a Paulo se as coisas se passaram exatamente assim. Talvez um pouco pior do que eu te contei, responderá ele, aquele ódio estava latente, e hoje não se manifesta abertamente, são dois povos que guardam o azedume e a virulência graças à providência da distância.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo adoré, cheguei ontem à noite a Amesterdão, conferência de peritos em História Europeia, juízes do Tribunal de Luxemburgo, professores universitários de Estudos Europeus, representantes políticos e outras sumidades que em grande recato e durante dois dias cheios vêm debater os desafios e as oportunidades do Tratado de Nice e tecer considerações sobre a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que foi aprovada na mesma data que este tratado. Muita chuva, um trabalho insano, couberam-me quatro línguas, está aqui gente de toda a Europa, incluindo do Espaço Económico Europeu, presentes observadores de dez países candidatos, é uma autêntica cacofonia, cada um tem direito em exprimir-se no seu próprio idioma. Com tempo tão severo, a despeito dos cocktails oferecidos a todas as delegações e às equipas de interpretação, vim cedo para este meu pequeno hotel, avancei um pouco mais com as notas do teu romance e tenho várias interrogações a pôr-te. Como me disseste no último telefonema que gostavas muito que eu visitasse o Rijksmuseum, a nossa conferência é mesmo ali ao lado, aproveitei a hora do almoço, houve sempre durante os dois dias quase duas horas para almoçar, procurei satisfazer o teu pedido e contemplei com grande satisfação o conjunto de obras sobre as quais tu emitiste uma opinião, são quadros que te emocionam muito e eu procurei partilhar dos teus sentimentos, vou enviar-te imagens com pequenos comentários, de um modo geral coincidentes com os teus.

Recebi os teus papéis avulsos a que tu denominas os preparativos da operação Beringela Doce, encontrei alguma analogia na meticulosidade que tu pões nas tuas diligências com os preparativos da operação Rinoceronte Temível: a discrição das conversas com os teus camaradas responsáveis pelas viaturas e pelas transmissões; o teres forjado uma convocatória inócua para reunir nos Nhabijões com os comandantes das milícias de Amedalai, Taibatá e Demba Taco, a todos lembraste que a fuga de informação custaria caro, os guerrilheiros, se adivinhassem o itinerário, ficariam em condições de preparar ciladas mortíferas; o teres angariado munições, equipamentos, e dinheiro para carregadores em conversas havidas na via pública com o responsável, como se estivesses a falar de banalidades; o teres convocado o picador do Xime, Seco Indjai, que seria o vosso guia, mandando-lhe a informação de que precisavas da colaboração dele em Amedalai para descobrirem todos os recantos possíveis onde se escondiam as canoas da população afeta à guerrilha; e o verdadeiro espetáculo da deslocação até ao Xime já contou do dispositivo militar, para gerar a ideia de que a operação será no Poidom ou na Ponta do Inglês, ora o que tu foste lá fazer foi discutir com os artilheiros um plano de fogo. Vou inserir toda esta documentação no lugar certo, correspondente à operação Beringela Doce.

Já tenho todos os teus esclarecimentos sobre as obras do porto do Xime, que ficara pronto em novembro do ano anterior, li com a devida atenção as cartas que mandaste para Teixeira da Mota e Ruy Cinatti, achei imensa graça ao pedido feito por Teixeira da Mota sobre uma pesquisa a sonôs, os cetros reais dos Beafadas, e como ele faz a descrição: ferros com mais de metro e vinte de altura, com braços laterais, que terminam habitualmente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando figuras humanas, são sempre símbolos de realeza, tu bem inquiriste toda a gente, ninguém sabia da existência de sonôs.

Tomei igualmente nota de um apontamento teu retirado de um livro que a professora primária de Bambadinca te emprestou, tem a ver com uma citação de um antigo governador da Guiné, Carlos Pereira, cujo nome ficou ligado ao derrube dos muros que protegiam Bissau, na década de 1910: “No regulado do Cuor, situado na margem direita do Geba, defronte de Bambadinca, habitavam até 1908, Beafadas cujo chefe era Infali Soncó, que nesse ano foi destituído. Após a sua destituição, os Beafadas abandonaram o Cuor, indo uns para o Oio e outros para Quínara. O governador dessa época investiu como régulo do Cuor Abdul Indjai. Era Serua, portanto de colónia francesa, vinha de um grupo étnico diferente, não pôde conseguir povoar o Cuor com gente do seu grupo étnico. E como o território é pobre, foi abandonado por Abdul e ocupado imediatamente pelos Oincas”. Acho que faltam informações complementares sobre a presença deste grupo étnico, traria um melhor esclarecimento ao leitor.

Meu adorado amor, bem procuro entender as razões desse ódio ou de permanente suspeita que os guineenses dedicam aos cabo-verdianos. Lembro-me de várias histórias anteriores que tu contaste, logo aquele encontro no que tu chamas a Tasca do Zé Maria com o chefe de posto de Bambadinca que te pediu para que, sempre que houvesse castigos aos teus soldados, os remetesses para ele, seriam zurzidos com um chicote de pele de hipopótamo, que tu apuraste ser uma bestialidade, arrancava facilmente a pele às primeiras chicotadas; o comportamento dos seus soldados quando se feriu o Paulo Ribeiro Semedo, aquela frase que jamais esqueceste “não pego em cabo-verdianos”; e agora o calafrio que sentiste na conversa havida com um engenheiro da TECNIL em dia de almoço inusitado na messe de oficiais de Bambadinca, devo dizer-te que a leitura do teu texto me deixou arrepiada.

Começas por sublinhar a época das chuvas, como ela muda a natureza, os solos alagados, todos aqueles cursos de água transformam o piso que a TECNIL quer macadamizar em toalhas de lama, escorre água no solo, nos rios, pelas ribeiras, bolanhas, estradões, picadas, é uma desolação. No dia em que ocorreu esta terrível conversa, a pedido de Fodé Dahaba, foste tirar fotografias à sua noiva da tabanca de Bambadinca, manhã cedinho, ainda com muitos cinzentos no céu, eram fotografias que iriam para Lisboa para alegrar aquele noivo a adaptar-se à sua prótese. E segues prontamente para junto dos teus homens, estão entre Ponta Coli e Amedalai. Viajaste numa aberta de chuva, parece que o dia se vai recompor, até há sinais de quentura na manhã, no meio daquele macadame espezinhado as máquinas resfolegam, é uma azáfama contínua, tudo indiciava que seria um dia de trabalho ameno. “Mas não, deu-se uma travessura no tempo, quando todos se preparavam para mordiscar o que traziam no bornal, o tempo imprevistamente arrefeceu e foi-me dado observar algo que eu já vivera em pleno Cuor, o céu chumbou-se, o ar esfriou, estoirou um relâmpago, parecia iluminação de teatro ou aquelas cenas de filme que se chamam a noite americana, e depois desabou um dilúvio, não enganava ninguém, era chuva espessa, o saibros tornou-se escorregadio, houve mesmo quem se estatelasse enfiando o armamento dentro da lama, eu estava confuso, tinha pensado que íamos viver um tornado com aquela semiescuridão, a chuva não abrandava, nisto o engenheiro dirigiu-me a palavra, as obras não podiam continuar, íamos levar toda a maquinaria para Amedalai. Prontamente disse que sim, e fomos cavaqueando pelo caminho, e soltou-se-me o convite, se o senhor engenheiro está de acordo, hoje não se come do bornal, permita-me que o convide para a messe de Bambadinca, alguma coisa se há de arranjar, tomamos um duche para tirar este lamaçal, há de se arranjar roupa seca, olhe, se o tempo não se compõe vamos ficar ali abrigados, já basta andarmos aqui todos os dias sem tempo para dar dois dedos de conversa, é uma ocasião propícia para pôr a escrita em dia”. E assim foi. Chegaram a Bambadinca, encomendaste uns bifes e uns ovos, houve higiene e mudança de roupa, tudo respirava amenidade. Não te passava pela cabeça uma conversa infernal que te deixou sem pinga de sangue.

Meu adorado, também chove horrivelmente lá fora e estou ensonada, prometo dar notícias ou daqui de Amesterdão ou da tua miraculosa Rua do Eclipse. Como te disse pus notas nas fotografias, tem a ver com o meu gosto, espero que os meus comentários às mesmas não te desagradem. Foi de propósito, repito, foi mesmo de propósito, que não falei da tua próxima viagem a Bruxelas para ouvires as propostas de Gottfried Scholtak. Será que a minha vida se encherá da plena alegria de te ter sempre a meu lado? Como tu costumas dizer, faço figas, bisous milles, j’insiste, milles et plus milles, Annette.

(continua)


Ruy Cinatti, retrato pintado por Maluda
A Ronda da Noite, por Rembrandt, porventura o quadro mais célebre do Rijksmuseum de Amesterdão

Nota: Título mais inexato para um quadro não pode existir: estamos em pleno dia, todo aquele grupo nada tem a ver com uma operação de vigilância militar. Foi ao limpar-se a tela, em 1946, em que se fez desaparecer uma camada de verniz escurecido que apareceu uma luz radiosa, sempre o contraste entre o claro e o escuro, parece uma cena de teatro em que os personagens se prestam ao papel de uma evacuação militar. Não falta um cão e crianças, a menina que vemos ao lado de um presumível arcabuzeiro leva uma galinha à ilharga. Se é facto que a primeira impressão é de que estamos perante uma milícia que procede a uma ronda, a observação atenta leva-nos à convicção de que toda aquela gente está a pousar para um quadro como poderia pousar para uma fotografia, Rembrandt exige-nos um olhar ainda mais atento às duas figuras centrais, banhadas pela luz.

Lamento de Jeremias pela Destruição de Jerusalém, por Rembrandt

Nota: Todo aquele rosto está marcado por uma infinita tristeza. O profeta refugiou-se numa gruta solitária, limita-se a ver à distância quem combate, Jerusalém incendiada e muita gente em fuga. Pôde salvar um vaso em ouro do Templo e os textos sagrados. Rembrandt deslumbra-nos pelos seus banhos de luz, há as sombras e a obscuridade e o que fica na luminosidade é o espelho da desgraça, a postura de pesar, as linhas perfeitas da indumentária, um pé descalço perfeitamente delineado e as riquezas do Templo. É no contraste entre o claro e o escuro que temos o dramatismo para a aflição do profeta. Anotei que é a tua segunda preferência, depois da Ronda da Noite.

Retrato de Tito, o filho de Rembrandt, pelo pintor

Nota: Li numa publicação que o único filho de Rembrandt jamais foi monge, vestiu o hábito monástico exclusivamente para a pintura, o genial pintor seguramente que queria um quadro que assegurasse a polarização do olhar do espetador naquele rosto: há como que um holofote que destaca a palidez do rosto, bem enquadrado pelo capuz do hábito religioso. É um jovem melancólico, entregue à meditação. Porventura o pai pretendia que observássemos o filho com uma concentração total, este retrato parece soltar uma doçura amena e temos uma segunda leitura sobre a excecional paleta de Rembrandt que nos dá um vestuário em castanho-quente, como se enfatizasse a intimidade que é devida ao amor de um pai pelo filho, neste elo pictórico.

Lendo a carta, por Vermeer

Nota: Vermeer conquista prontamente a nossa adesão pela forma com que nos obriga a entrar nos conteúdos dos espaços iluminados, neste caso o pretexto é a leitura de uma carta, jamais saberemos se a mesma é uma manifestação amorosa, informação de negócios ou recados de família. Está tudo polarizado na figura central e há um cuidado muito subtil nos tons azulados que se atravessam. O importante é que o espetador fique agarrado à genialidade da forma e procure interpretar o enigma daquele conteúdo, o que encerra a carta.

O bebedor feliz, por Frans Hals

Nota de Annette: é uma pasta de óleo quase transparente, todo o seu semblante e encenação corporal irradiam a felicidade a que corresponde o título. Surpreende as cores claras, ele que é useiro e vezeiro nos tons enegrecidos. É um retrato muito comunicativo, parece que quer brindar connosco, já deve estar um pouco alegrete, a termos em conta as cores das maçãs do rosto. O único senão que eu posso apontar é aquela sua mão direita levantada, parece-me um tanto artificiosa. O rendilhado da gola impressiona-me muito, e como tu observaste não há uma crítica a pôr a toda a indumentária.

O Charlatão, por Jan Steen

Nota: O charlatão operou um camponês, extraiu-lhe um tumor, a razão de muito sofrimento. Mas aqui reside uma das genialidades de Steen, fazer sobressair o grotesco, a imagem da crendice, há algo de Bruegel na organização da massa humana, o homem que vem no carrinho tem a aparência de bem bebido, é toda esta cenografia com o povoado ao fundo, aquela mesa à direita onde constam os instrumentos pseudocirúrgicos que definem uma atmosfera flamenga de beatitude, de crendice e até de uma enorme alegria de viver.
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Nota do editor

Último poste da série de29 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22669: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Na imagem do quadro de Vermeer sabe-se que a modelo é a sua própria mulher, que também aparece noutros seus quadros sempre grávida como neste "Lendo a carta".
Durante os vinte e poucos anos de casados tiveram 15 filhos e a vida não lhes corria nada bem. Não conseguia vender os seus quadros num período de grande poder económico dos Holandeses, vendendo apenas uns quadros por encomenda em que fazia a publicidade a belos tapetes, vindo a morrer na pobreza.
Além do célebre quadro "Mulher com brinco de pérola", em que a modelo é uma das sua criadas que utiliza os brincos da sua mulher, também pintou o "Oficial e a rapariga" em que aparece um militar com um enorme chapéu que serviu de publicidade a chapéus de pele de castor por serem impermeáveis. Por esse facto aumentou a procura desses chapéus levando quase a extinção dos castores do Canadá.

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz