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quarta-feira, 12 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26576: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (37): O silêncio do rio Xaianga




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > O Rio Geba, o estreito (do Xime para montante) e o largo (do Xime para jusante)... c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Os cartógrafos portugueses chamava-lhe Xaianga, ao Geba Estreito. Normalmente, as embarcações civis, os "barcos turras", iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas também chegaram a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito ou Xaianga)... Era o maior rio da Guiné-Bissau: rio de planície, com cerca de 550 km de comprimento, caudaloso na época das chuvas (de abril a outubro), nasce a cerca de 40 km a nororeste da cidade de Koundara, região de Boqué, na Guiné-Conacri, corre para Norte, penetra no Senegal, para logo fazer uma longa curva para o Sul, receber as águas do rio Bidigor e desaguar em Bissau; o  seu principal afluente é o Rio Corubal

Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


Foto (e legepnda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O silêncio do rio Xaianga

por Luís Graça


− Ah!, se pudéssemos identificar, selecionar, decompor e voltar a juntar o melhor de cada povo, teríamos o melhor da humanidade!... Teríamos a humanidade perfeita!...

− Não sou assim tão otimista e utópico como o vosso Amílcar Cabral... Aliás gostava de reconhecer esse "homem novo" guineense, que foi prometido nas Colinas do Boé − respondeste tu, com afabilidade e sem ironia, ao teu interlocutor, um antigo comissário político do PAIGC, da última geração dos "combatentes da liberdade da pátria".

O comissário político era, explicou-te ele, o padre ou o pastor, conduzindo um rebanho de crentes sobre o qual tem o poder de punir e perdoar. Retiveste essa metáfora sem, todavia, lhe pedir para exemplificar. Mas tencionavas mais tarde perguntar-lhe o que é que o comissário político fazia nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). 

Achaste piada ele ter-te dito, com candura, que agora era um "ex-tudo"...

− Ex-tudo ?...

− Sim, ex-combatente da liberdade da pátria, ex-comissário político, ex-militante do PAIGC, ex-católico, ex-marido...

Só não era ex-pai, porque continuava a amar muito os seus filhos, e não eram poucos, de várias relações...  Como um bom "cabra-macho"  africano, tinha uma generosa prole que propagava, pelos quatro cantos do mundo, os seus genes.. 

E estavas tu ali, na terra dele, agora "libertada" (uma metáfora: livre das "velhas algemas do colonialismo", rapidamente substituídas por outras, de outros "ismos"...).

Estavas tu ali, não como um "antigo inimigo" nem como um "simples turista" ( o tal "estúpido em férias" que sabe pouco ou nada do "paraíso" que lhe caiu na rifa....) mas como um "amigo" do "povo guineense"...Mesmo que amigo e povo fossem conceitos nem sempre fáceis de definir ou entender.

Aproveitavas também a ocasião para "fazer as pazes" com o passado. Antes de mais, contigo próprio, que foras "obrigado a comprar a guerra que te quiseram vender"... Como não eras livre, nem mercenário, não pudeste negociar nada, muito menos o preço.

Eras "amigo da Guiné, agora Guiné-Bissau", mas não confundias o "povo" com a sua "elite dirigente", que começou por ser, em 1974, os "novos senhores da guerra". 

Tinhas relutância, por exemplo, em apertar a mão de alguns daqueles homens, novos e antigos senhores da guerra, como o 'Nino' Vieira, que regressava ao poder depois de uma sangrenta guerra civil (a de 1998/99) e de um exílio mais ou menos dourado. E de outros ainda tão ou mais sinistros como o Quemo Mané, o Mamadu Injai, o Inocêncio Cani e outros de "segunda linha", que, felizmente para ti,  já tinham ido parar aos quintos  do "inferno dos combatentes"...

Acabarias por o conhecer pessoalmente, ao 'Nino' Vieira, uns dias depois, numa receção no "palácio presidencial"... Para todos os efeitos, era uma figura institucional, o presidente da república, eleito, pensavas tu em voz alta na embaraçosa iminência de o teres de cumprimentar... Um ano depois, em 2009, era miseravelmente morto. E rapidamente esquecido. 

Estranho país aquele onde facilmente se passava de herói a vilão. Nada, de resto, que tu não soubesses já, a começar pelo teu país, e a sua história recente.

Ainda tinhas dificuldade em definir o teu estatuto naquela terra a que chamavas "verde-rubra", não obstante a ambivalência das cores que eram também as cores da bandeira dos "tugas", lembrava-te o Tó Brandão, com quem começaste a simpatizar por ser um tipo "porreiro, bonacheirão, ingénuo". Ou talvez nem isso: afinal,  um pobre diabo como tu, apanhado pelas rodas dentadas da geografia e da história . Falava-te do passado, sem azedume, embora às vezes com uma pontinha de ironia. ( Ou seria uma mistura de tristeza e de culpa ?!)

Não achaste a terra assim tão "verde-rubra" como há quarenta anos atrás. Nessa altura, quando desembarcaste de um velho cargueiro colonial, já era a época das chuvas. E o capim começava a crescer como os velhos campos de trigo da tua terra.

Nunca gostaste da Guiné no tempo seco, tempo das queimadas e das grandes operações militares, tempo da sede e da insolação, tempo da desidratação e da exaustão, física e emocional...

Voltavas lá, quarenta anos depois, em março de 2008. Havia no ar uma aridez de deserto. O Saara ali tão longe e tão perto. 
 
Há terras que ficavam na memória das nossas geografias emocionais, pelos cheiros, os sabores, os sons,  as cores... A Guiné era uma delas...

− A guerra já acabou para ti há muito − comentou o teu convidado, com ar sério.

Ele falava corretamente o português, com aquela doçura acrioulada que te encantava. E gabava-se de ter andado no liceu Honório Barreto, "ainda seu antepassado remoto pelo lado materno".

− E para ti, não ?!...Ainda não acabou, a guerra  ?! − interpelaste-o, mas respeitaste o silêncio,
que se  seguiu. Um silêncio algo embaraçoso e magoado,  mas que falava por si.

Por entre dentes, terá dito qualquer coisa em crioulo que não entendeste bem mas que poderia traduzir -se por um velho provérbio universal, o tempo é o cruel coveiro das nossas ilusões de juventude.

Quem era, afinal,  esse teu cicerone, que se oferecera para mostrar as velhas ruas e casas de estilo colonial, poeirentas e esburacadas, de "Bissau Bedju", cujo traçado em linhas paralelas e perpendiculares, ainda retinhas, se bem que vagamente, na memória ?

O António Brandão tinha-te sido apresentado por um amigo comum, português,  ligado à cooperação, conhecido ativista contra a guerra colonial, e incondicional admirador do Amílcar Cabral, embora agora mais crítico em relação aos seus "fracos herdeiros"... Afinal, os filhos de Cabral, ironizavas tu.

A sua obsessão, em Bissau, era encontrar um "mãos limpas", isto é, um dirigente   ( dos poucos que já restavam vivos)  que não estivesse direta ou indiretamente ligado ao "narcotráfico". A sua deceção ia aumentando por aqueles dias, à medida que as suas "fontes secretas" iam confirmando as suas "suspeitas":

− Eh!, pá, até o fulano tal..., imagina!... 

Referia-se a um dos últimos comandantes do PAIGG que ainda gozava de um algum crédito entre os "amigos estrangeiros"... 

Tu e ele eram participantes do Simpósio Internacional de Guileje, que se realizava em Bissau, com uma visita de fim de semana ao "mítico Cantanhez". Estava-se em março de 2008. A iniciativa não era partidária, nascera da sociedade civil e propunha-se também juntar os antigos combatentes de um lado e do outro. 

O António Brandão  não era a um "típico guineense". Para já, provinha da uma família cristã, mestiça, de Bafatá.

− Grumete do Geba!− esclareceu ele, sem perceberes se era uma autoelogio ou uma resposta sarcástica.

Tal como o Amílcar, que também não era um "típico guineense".

− Mais branco do que muito branco.

Era um "mundo crioulo" que te intrigava e fascinava ao mesmo tempo, aquela mistura de cores, sabores, línguas, saberes, fenótipos, florestas, tarrafes, bolanhas,  rios, braços de mar....mas também ódios e amores. Em 2008 ainda havia velhas contas por liquidar.

Tinhas dificuldade em perceber (e penetrar em) aquele sistema de relações de parentesco e de poder, em que os machos e os "mais velhos" dominavam, e as próprias religiões monoteístas e proselitistas,  o cristianismo e o islamismo, não se davam mal de todo com a idiossincrasia animista... 

Não sem surpresa, deste conta que  o Brandão era profundamente supersticioso e ainda usava alguns dos amuletos do tempo da guerrilha, no peito e nos pulsos 

Por delicadeza (ou receio de melindre) não lhe quiseste fazer perguntas sobre as origens da família, embora a tua curiosidade fosse alguma.

Acabou por ser ele a falar-te dos seus antepassados. Tinha um bisavô algarvio, de Portimão ou Faro, não sabia ao certo... Contar-te-ia ele, já para o final da refeição.

Depois de um física e emocionalmente penoso, para ti, "passeio turístico" até à marginal e à zona portuária, descendo a antiga e 
tua conhecida avenida da República (avenida Amílcar Cabral,  a partir de 1975), nada como um almoço de pitche-patche (caldo de ostras) e de frango de chabéu, bem regado com umas "superbocks"...

O "tasco" era de um antigo soldado da manutenção militar. A esposa, cabo-verdiana, era uma cozinheira de mão cheia. O seu pitche-patche era talvez o melhor da cidade, garantia-te o Brandão que era um bom garfo e um melhor copo. 

À segunda "super", o Tó Brandão já estava a tratar-te por ermon. Sem constrangimento da tua parte. O tratamento por tu, da tua parte,  não o vias como um velho tique do paternalismo colonial, mas como uma forma de facilitar a comunicação entre dois antigos combatentes, para mais lusófonos. E sem qualquer veleidade "luso-tropicalista", do teu lado, mesmo sendo tu mais velho que ele uma boa meia dúzia de anos!

Percebeste (pelo que ele deu a entender durante o almoço) que gostava de poder mandar estudar um dos seus filhos em Portugal.

− Em medicina!

Nunca tinha conseguido sequer uma bolsa de estudo para o estrangeiro, o que achaste estranho, pertencendo ele (ou tendo pertencido até 1980) á 
nomenclatura do PAIGC.

Disseste-lhe que na altura não estava fácil entrar nas faculdades de medicina, cujas notas eram escandalosamente altíssimas... E que havia poucas vagas para os PALOP...

E, a título de consolo, alertaste-o para o risco de "perder o filho": os médicos não voltavam â Guiné, ou seja, à procedência, para vir trabalhar em "condições heróicas", isto é,  miseráveis... Conhecias muitos casos. E, se regressavam, eram mal aproveitados. Lembravas-te de um que fizera o curso na China. De regresso ao país,  não acharam melhor colocação para ele do que o de tradutor-intérprete ... 

O Brandão era crítico do regime do 'Nino' Vieira, então no poder.

− Matou o Cabral pela segunda vez!

Segundo apuraste da longa conversa desse dia, que se prolongou pela tarde dentro, o Brandão já era guerrilheiro no início dos anos 70.

− Na frente do Xitole. Em 1972, ia fazer 19 anos. 

− Por um triz (ou melhor,  talvez por um ano de diferença), não nos cruzámos nos matos do Xime e do Xitole! Tu de Kalash, eu de G3 em punho.

Andara pela "barraca" da Mina / Fiofioli, já em 1972... Depois da morte de Mário Mendes, em meados desse ano, o PAIGC concentrou a maior parte das suas forças na Zona Oeste, no Norte, para atacar Guidaje, como manobra de diversão. E no Sul, para cercar e "aniquilar" Guileje...

− Havia a crença de que se Guileje caísse, a guerra estava ganha... Disse-o Cabral, antes de morrer...

As "áreas libertadas" da bacia hidrográfica do Corubal ficaram vulneráveis, à mercê dos "raides punitivos" da tropa portuguesa...O PAIGC ficou desfalcado e os "tugas" voltam a entrar na mata do Fiofioli, três anos depois da Op Lança Afiada. O Brandão fora entretanto  para a barraca de Hermancono, no Senegal. Nunca mais voltaria ao Leste.

Turra, foi o que eu fui... Turra, como vocês diziam...

−  Turra dum cabrão!... E insultávamo-nos uns aos outros, na mata, quando nos encontrávamo-nos, aos tiros.

−  E falávamos a mesma língua!

− Estranho, diria um observador estrangeiro, que nos estivesse a espreitar por detrás de um bissilão!

−  E, afinal, éramos todos do mesmo clube, uns do Benfica, o maior da época, mas também do Sporting,  um ou outro do Belenenses, e até do Porto .

−  Do Belenenses ?!

−  Sim, por causa do Matateu!

−  Ah!, o Matateu, mas esse já não era do nosso tempo... Não estarás a confundir com o Eusébio ?!... 

Afinal, tu é que não estavas a dar conta da importância  do futebol na génese e desenvolvimento da luta pela independência...

−  Tivemos vários futebolistas na luta, do Lino Correia ao Bobo Queita.. E o próprio Amílcar Cabral, dizem que chegou a prestar provas no Benfica. Sabias ?

 −  A sério ?!...Não se pode ignorar a bola... Ainda vi hoje uns quantos  djubis, á saída do hotel, com a camisola do Ronaldo!...

−  E então diz-me lá por que razão andámos a guerrear este tempo todo ?

−  Tó, o homem grande de Lisboa, primeiro o Salazar, e depois o Caetano, não se entenderam com o Cabral... Foi pena.

−  Talvez o Spínola tivesse conseguido, se o Cabral não tivesse sido morto.

Contrariamente à maioria dos combatentes, militantes e simpatizantes do PAIGc , o Brandão não atribuía a morte de Cabral ao Spínola nem aos "tugas".

Julgavas que ele não disse isso só para te agradar ... Veladamente,  deu-te a entender que o 'Nino' Vieira, o primo Osvaldo Vieira e o Sékou Touré teriam as "mãos sujas de sangue". Mas o 'Nino'  ainda estava vivo e não longe do restaurante, pelo que o Tó não queria aprofundar o assunto que o incomodava... Deduziste o que ele te queria dizer:  sabiam do complô,  nada fizeram para o neutralizar e provavelmente também eram cúmplices...

Não resististe a querer saber algo mais sobre a infância e a adolescência do Brandão, depois de, conversa puxa conversa, de terem chegado à conclusão de que tinham andado ambos pelos mesmos sítios, embora em anos diferentes. 

 Mandaste vir mais cerveja para destaramelar a  língua...

−  Como é que chegaste afinal a comissário político, um cargo mais importante do que comandante de bigrupo ?  −  quiseste tu saber...

Ele preferia falar da origem da família... Sobre o bisavô, desterrado para Cabo Verde, ele disse-te que sabia pouco, ou o que a mãe lhe contara,  ainda em pequeno, quando sonhou que ele "ainda viria a ser seria padre e talvez até bispo"...

Era cabo-verdiana e muito devota a Nossa Senhora de Fátima.

 −  Uma santa pelo que aturou ao meu pai... E, claro, como boa africana,  também consultava os búzios...

O Brandão nunca tinha estado em Portugal mas sabia algumas coisas da história e da geografia, do tempo da escola, sobre a terra do bisavô,  "o Algarve, que fora dos mouros", isto é, "dos africanos"...

A senhora, Nha Luana,  tinha medo de morrer ainda nova e de levar para o  outro mundo os segredos da história da família do lado paterno. Achava que tinha obrigação de transmitir essas memórias aos filhos mais letrados, que eram também os mais novos... Ela e o filho eram muito chegados, para não dizer cúmplices...                                                                                                       
Assim, o o nosso homem sabia que o bisavô (de que já não se lembrava o nome, nem nunca vira nenhuma foto)  fora deportado para a ilha do Fogo. Alegadamente por se ter amotinado no navio de guerra a cuja guarnição pertencia. Teria chegado a Cabo Verde por volta de 1895, "no tempo dos reis" (pelas tuas contas).

O Brandão não sabia explicar o que se passara a bordo, a memória da família não chegava a tanto pormenor, mas parece que o marinheiro-fogueiro já tinha nessa época "ideias republicanas". 

À melhor oportunidade teria fugido da ilha onde lhe fora fixada residência. Numa leva de contratados para São Tomé, para as roças de cacau, acabou por seguir a bordo num vapor que fazia escala em Bolama (capital da Guiné a partir de 1879, acrescentaste tu).

Não ia de todo clandestino, terá beneficiado da cumplicidade  de um conterrâneo (ou antigo camarada da marinha de guerra) que o escondeu num beliche. A viagem, de resto, não era longe. 

Com a falta de "colonos brancos", não foi difícil arranjar trabalho na loja de um antigo deportado, ali estabelecido como comerciante e que  também tinha uma ponta na extremidade sul da ilha.

Nos primeiros tempos ficou afastado da vila de Bolama (só cidade a partir de 1913),  à frente de  destilaria de aguardente de cana. Os seus conhecimentos de fogueiro da marinha foram-lhe úteis.

Acabou por casar com uma bijagó de Bubaque  educada nas missões católicas. A mulher grande deu-lhe um bando de filhos, fora os que arranjou noutras moranças e camas. Parece que mais tarde dedicou-se à marinhagem num barco a vapor que fazia a cabotagem entre Bissau, Bolama e Bubaque. Acabou por trazer a família para Bissau e depois para o presídio do Geba.

O avô do Brandão vamos  encontrá-lo  a combater ao lado do capitão  Teixeira Pinto, do tenente Sousa Guerra e do Abdul Injai, comandante das tropas irregulares, na campanha contra os papéis e os grumetes da ilha de Bissau, em meados de 1915.

− Esse avô terá salvo a vida do capitão-diabo, quando este foi ferido. Contou-me a minha mãe, que ainda não era nascida. 

Louvado por feitos em combate, acabou por seguir a carreira militar e chegar ao posto de sargento, no final da I Grande Guerra.  

O pai do Brandão, por sua vez, foi soldado em Bolama, numa companhia de caçadores indígenas no início dos anos 40.  Terá estado em Angola (ou Macau, já não podes precisar de memória), durante a II Guerra Mundial, como expedicionário.  Esteve tentado a lá ficar mas as saudades da família (já era casado, e com filhos)  eram muitas.

Quando voltou, foi trabalhar para a Casa Gouveia, em Bafatá, vilória que, graças ao florescente comércio da mancarra, já há muito havia suplantado a decadente Geba e todas as demais terra do Leste.

−  Nasci em Bafatá, onde é hoje o bairro da Rocha...

E é aqui, por volta de 1953, que começar a história de vida do António Brandão...

− Brandão ?!...

−  Sim, apelido do meu padrinho de batismo: era ponteiro em Bambadinca e parente da minha mãe, cabo-verdiana. 

Era um colono respeitado, nacionalista, cuja casa o Amílcar Cabral frequentava  nos escassos anos em que trabalhara na Guiné como engenheiro agrónomo.

− E a esposa do Cabral, que era branca, chegou a pegar-me ao colo, contou-me a minha mãe.

Toda a gente se conhecia na Guiné nos anos 50. E a mãe do António tinha sido  empregada da família Brandão. Também ela educada nas missões católicas, em Bambadinca. 

Foi graças aos missionários católicos, italianos, de Bafatá,  que o Tó conseguiu fazer mais do que a 4ª classe.

−  Mandaram-me para o liceu de Bissau. Não havia mais nenhum.

Era um rapaz inteligente, vivaço mas humilde. Devem ter pensado que daria um bom padre. Feito o quinto  ano (e ainda antes do sétimo) , tencionavam mandá-lo para Roma, para aprender latim e grego aprofundar a  filosofia e iniciar a teologia.

−  Estava entusiasmado... Ia conhecer o Papa! E, claro, as belas romanas...

Os pais (e sobretudo a mãe)  viram com bons olhos esta benção do céu.  Tinha os irmãos mais velhos em Bissau, não seria difícil a adaptação.

Mas Deus põe e o homem dispõe...

***

− E isso da JAAC, a Juventude Africana Amílcar Cabral, foi a sério ? − perguntaste tu.

Explicou-te que inicialmente fora uma "brincadeira de putos" mas depois levada longe demais até ao ponto de não-retorno.  

Andar na Mocidade Portuguesa era uma "seca", o que ele queria eram as farras, as "mininas", os bailaricos com os gira-discos (uma novidade e um luxo nessa época), na casa uns dos outros, os mais abastados, e sobretudo longe do olhar dos professores e dos "nossos mais velhos"...

Em 1968, tinha o Brandão quinze anos e completava, com sucesso, o quinto ano. O Amílcar Cabral gozava de muito prestígio, "a nível internacional e até nacional".

−  Tinha derrotado o Schulz!

Ele pronunciava "Schultz". E a resposta, como já ouviras a outros guineenses, é que este governador e comandante dos "tugas" não era português mas "alemão" (sic).

−  A prova é que o Spínola veio tomar conta do lugar dele. O Salazar tinha pressa em acabar a guerra...

−  Pressa ? −  comentaste tu. −  Ele achava que ainda iria a tempo de ver a História e os Aliados do Ocidente dar-lhe razão! 

A libertação dos "tarrafalistas", entre eles o histórico Rafael Barbosa, muito popular em Bissau, gerou um clima de euforia (mas também de desconforto e desconfiança) entre militantes e simpatizantes do PAIGC. Começou a correr o boato de que se passara para o lado dos "tugas"... Afinal, o dinheiro comprava tudo!

Continuou a haver infiltrações da PIDE nas células estudantis e nos bairros populares de Bissau.  Alguns venderam-se por um "prato de bianda", garantiu-te o Brandão. 

 Claro que às tantas o Tó começou a faltar às aulas e a comprometer-se com alguns rapazes e raparigas que, viria mais tarde a saber, pertenciam à célula clandestina da JAAC no liceu.

Por influência do grupo, nas horas vagas já estava a distribuir papéis e a participar em reuniões , mais ou menos clandestinas, em se que falava dos problemas estudantis e dos progressos da luta do PAIGC... 

Começaram a catalogá-lo como "simpatizante" e às tantas já tinha, sem saber como nem porquê, a "chapa do Partido"... Mas, no dia seguinte, deu-se conta de que não estava nada interessado em pegar numa Kalash e ir para o mato combater a tropa dos "tugas" onde tinha amigos, sobretudo guineenses e cabo-verdianos (!).

É verdade que, naquele tempo, não tinha inimigos, só não gostava dos fulas que eram cipaios da administração do Guerra Ribeiro, e que serviam para dar porrada ao pessoal que entrava em Bafatá descalço!... Mas isso não era razão bastante para andarem a matar-se uns aos outros...  Tinha, de resto, amigos de várias etnias na escola primária.

Alguns colegas do liceu começaram, entretanto,  a ser chamados para a tropa. O medo instalou-se.  Um ou outro  mais afoito acabou por ir parar a Dacar e a Conacri e juntar-se ao PAIGC.

Em 1969 as coisas começaram a dar para o torto. Uma das "mininas" do grupo, aluna do liceu, foi detida pela PIDE... E deu à língua. Houve prisões. O Brandão teve que "passar à clandestinidade".

A mãe e os irmãos mais velhos e os missionários católicos do PIME tinham em Bissau os seus "espiões" de modo a não deixar o Tó "pôr o  pé em ramo verde". 

Não chegou a fazer o 7º ano. Começou a fazer "trabalho político" com uma miúda que depois viria, mais tarde, a ser a mãe dos seus dois primeiros filhos. Viviam no Cupelon de Baixo, paredes meias com o quartel-geral, em Santa Luzia.

O controleiro da célula do bairro cedo se apercebeu de quão valioso e promissor era o "miúdo". Foi o próprio Amílcar Cabral quem fez questão, depois de saber da sua história, em recebê-lo em Conacri.  E foi ele quem o entrevistou para pôr a prova as qualidades do novo membro do Partido, antes de o mandar para Cuba, mesmo sem o "batismo de fogo"...

− Tinha lá os balantas, os homens do mato,  para matar e morrer − comentaste tu com indisfarçável ironia. 

 Instintivamente o Amílcar Cabral − disseste tu para os teus botões − procurava poupar os melhores dos seus futuros quadros. Que eram cabo-verdianos ou de origem cabo-verdiana.

Foi para Cuba sem deixar rasto, sem se despedir da mãe e dos irmãos. Por razões  de segurança, obviamente. Mas a mãe nunca lho perdoou, até quase à hora da morte.  Apesar de conhecer o Amílcar, que tinha ascendência cabo-verdiana, do lado paterno, e era mais novo quatro anos, ela não gostava nada  dele.  Estava convencida, mesmo sem fundamento,  de que tinham sido "eles", os tipos do PAIGC,  que haviam raptado e morto o marido na fronteira do Senegal, ainda antes do início da guerra.

***
−  E Cuba ?

−  Bem, na altura, eu ia de olhos tapados, comprei tudo o que me quiseram vender. E também acreditei piamente na sinceridade dos internacionalistas cubanos... Vim depois a saber que, muitos deles, coitados, faziam pela vida, tal como eu... A guerra era um modo de vida. 

Não quis falar muito mais,  do tempo da luta.  Participou na Op Amilcar Cabral. Só não quis dizer onde, no Norte ou no Sul. Estás mais inclinado para Guidaje. 

Também já era tarde e "amanhã é dia de trabalho"...Pediu-te para levares uma pequena "encomenda" para Lisboa... E até lá ainda se encontrariam no hotel onde decorria o simpósio.

Cruzando esta com conversas ulteriores, ficaste a saber que o António Brandão não tinha estudado mais. Ia-se inscrever no 7º ano, quando teve de fugir.

Agora com 55 anos já "não tinha cabeça". A vida política não o interessava mais. Estava "triste" com o rumo que as coisas seguiram no seu país. "Ingénuo" (o termo era dele), pensava que, depois da independência, por um simples toque de magia, iriam abrir-se, de par em par, as portas do progresso, da liberdade e da justiça. 

Não estava arrependido pelos anos que andou no mato, na luta pela independência da sua terra. Mas tinha agora algum pudor e muita reserva em falar desse tempo. Os mais novos não mostravam gratidão pelo sacrifício de seus pais. Por outro lado, recebia uma miserável  pensão (que chegava ao seu bolso, tarde e a más horas). O Governo tratava mal os antigos combatentes. 

Temia a velhice, apesar da sua família extensa e solidária,  onde, apesar de tudo, não havia memória  de se passar fome. Mesmo quando o pai desaparecera... Temia, sim,  as doenças da velhice.

Trabalhava numa ONGD, estrangeira, uma "grande empresa", de um pais europeu. (Por razões obvias, não vais aqui identificá-la.)

Mas nunca se sabia até quando "eles" continuavam a apostar  na Guiné-Bissau. Os golpes de Estado, a droga, a instabilidade política, o peso dos militares, a corrupção, etc., não ajudavam a promover a imagem do país que continuava no fundo da tabela...

Era já tarde quando voltaste ao Hotel 24 de Setembro. Os dias ali eram curtos. E à noite não havia iluminação pública. Bissau parecia uma cidade sitiada, em quase total "black out".  Recorria-se ao gerador, os particulares, os hotéis, os restaurantes.

Foste a pensar na história do Tó Brandão. Nem sequer sabias o nome de guerra dele. Não acreditavas em tudo o que ele te contara. Davas o devido desconto. Mas, no essencial, parecia ser uma história verosímil, incluindo a perseguição aos "colaboracionistas", aos "cães dos colonialistas",  ainda antes da partida do último soldado português.  

Era uma "grumete", dividido por duas culturas, dois amores, dois mundos (mesmo que nunca tivesse  chegado a conhecer Portugal, tinha um secreto amor às raízes do bisavô , bem como a Cabo Verde, terra da mãe, que ele, apesar de tudo, não conhecia...)

Ao menos estava vivo, tinha sobrevivido a alguns momentos dramáticos da história recente do seu país ... Se tivesse ido para os comandos africanos, por exemplo,  hoje estaria morto como dezenas e dezenas de graduados do célebre batalhão que o Spínola criara... Teve lá amigos seus. Disse-te os nomes (que não fixaste). Teve amigos de um lado e do outro, o que ainda era mais dilacerante.

Triste episódio, esse, que manchara o regime de Luís Cabral...

−  Triste episódio ? 

Talvez um dia arranjasse alguém que lhe escrevesse as suas memória. Não era dado a escrever. Preferia falar. Mas não ali, na terra dele.

−  Um dia, Tó... Talvez em Lisboa, não  ?!

Sorriu. 

***

Tu e ele ficaram amigos. Houve ali, pelo menos, empatia entre os dois. Cumplicidade.  Mantiveram contacto mais ou menos regular por email e pelo WhatsApp.  Nos últimos anos mais esporadicamente. Foste sabendo dele,  até à pandemia. Deixaste de ter notícias dele por essa altura, que foi fatídica para todo o mundo. E a ONGD onde ele trabalhava também passou por muitas dificuldades.

Entretanto a mãe já tinha morrido  em Cabo Verde, com 90 e tal anos (ela seria de 1920). O Brandão tivera um filho a estudar em Bragança, na Escola Superior Agrária. Terá viajado para o Brasil e acabaste por  perder o seu contacto.  

Tal como o pai, o Tó Brandão terá desaparecido por volta de 2020/21. Sem deixar rasto. Acontecimentos estranhos naquela terra. Podem as pessoas desaparecer sem deixar rasto ? 

Nunca mais lá voltaste, à Guiné-Bissau. Os rios da Guiné não falam, mas são caudalosos e lamacentos no tempo das chuvas. Aliás, não são rios, são braços de mar. Tentaculares, como os do polvo. Lembravas-te, no Mato Cão, o estranho silêncio do rio Xaianga, seguido do poderoso macaréu,  na maré-cheia, que assustava homens e bichos.

Perguntaras-lhe um dia  se ele tinha inimigos...

− Mas quem os não tem hoje na Guiné-Bissau ?

Sabias que a mãe tinha regressado a Cabo Verde, depois do golpe de Estado de 'Nino' Vieira. A família dispersara-se: houve irmãos que emigraram para Cabo Verde, Portugal e Holanda; outros dois ficaram em Bissau, um trabalhava nos Armazéns do Povo (no mesmo edifício da antiga Casa Gouveia); outro teria montado um negócio por conta própria.

Enquanto o Brandão  estava "bem relacionado"  (chegara a diretor-geral de qualquer coisa...), a vida não piorara... Mas terá caído em desgraça nos anos 80. Nunca te contou pormenores. Valeu-lhe a ONGD para quem foi trabalhar na área da educação ambiental e como intérprete: era poliglota, falava português, francês, espanhol e, claro, crioulo. Era fluente em fula, entendia o papel, o balanta e o mandinga. 

O estranho desaparecimento do pai (no rio Xaianga, ele dizia Caianga) foi outra história intrigante que ele só te contaria no último dia da tua estadia em Bissau, em março de 2008, umas horas antes de apanhares o avião para Lisboa.

Procurara-te para se despedir e concretizar o pedido algo insólito que te fizera uns dias antes: se levavas, na bagagem de porão,  um saco de cola para o irmão que vivia perto de Lisboa, na margem sul. 

Esse irmão tinha um filho que ia pedir a mão de uma "minina" a um patrício. Era da tradição oferecer noz de cola para o futuro sogro.

Não tiveste lata de dizer que não.  Por precaução, pediste-lhe  que te mostrasses as nozes de cola que iam no saco, que fingiste nunca ter visto no teu tempo... (Era coisa que os teus soldados andavam sempre a mascar: no mato, eliminavam ou mitigavam a sensação de fome e de fadiga, garantiam-te eles; provaste mas não te habituaste ao seu sabor acridoce e sobretudo adstringente, que te aumentava a sede.)

Em relação ao pai, empregado da Casa Gouveia...

− Nunca quis morder a mão a quem lhe dava a bianda.

Queria o Tó dizer: era fiel à Casa e aos portugueses que lhe davam o pão. Tinha uma boa posição, sabia ler e escrever, tinha carta de condução, uma camioneta distribuída. Não ganhava mal. Fazia a campanha da mancarra, percorrendo todo o leste. 

Ainda não havia guerra,  apenas umas "escaramuças" junto à fronteira do Senegal,  na região do Cacheu,  "coisa da gente manjaca". Ele só lidava com fulas e mandingas do leste, e uma ou outra tabanca balanta. Batia o leste de Sare Bacar a Gabu, do Xime ao Saltinho, de Galomaro a Pirada. Os fulas eram seus amigos. Dos mandingas não tinha a mesma opinião. Alguns começavam a ser aliciados pelo PAIGC (aliás, ainda era o PAI, Partido Africano para a Independência).

Não se sabia o que acontecera em pormenor. Desta vez ia sozinho, sem ajudante habitual que terá ficado doente de paludismo em Bafatá. A camioneta apareceu abandonada, numa curva do rio  Xaianga (ou Caianga, como se dizia então, em 2008), quando ia caminho de Paunca e Sare Bacar na zona fronteiriça. Não havia sinais de violência. Teria sido raptado ou morto sem deixar rasto ? 

A Casa Gouveia, se mandou investigar o caso, nunca comunicou à família as conclusões. O corpo nunca apareceu, não se fez o choro. Houve quem dissesse que ele tinha fugido para o Senegal com um saco de patacão, outros, seus inimigos dentro da Gouveia, insinuavam  que, à semelhança do Luís Cabral, tinha "ido no mato" (passado à clandestinidade)... O que era tudo mentira. Para mais ele tinha ainda alguns filhos pequenos a quem era preciso ajudar a criar.

A mãe do Tó nunca se conformou com o silêncio da Casa Gouveia, tão pesado como o do rio Xaianga (o maior da Guiné, que percorria três territórios),  mas não pôde fazer nada. Eles eram poderosos, donos da Guiné. O filho mais velho também trabalhava lá. 

A história que se contava na família (teria o Tó 8 ou 9 anos) é que o pai ter-se-ia  sentido mal quando ia a conduzir, tinha saído para apanhar ar e acabara por cair ao rio. A verdade é que o corpo nunca apareceu. 

A Gouveia terá abafado o caso. Não se sabe se a PIDE investigou. O irmão mais velho teve de substituir o pai no sustento da família.  A mãe e os irmãos mais velhos passaram a ser ainda mais hostis ao partido do Amílcar Cabral, que nessa altura andava já a fazer trabalho de sapa nas tabancas e a sabotar algumas infraestruturas (postes telefónicos, etc.),

Passados uns anos a mãe do Tó vai passar por outro grande desgosto: o filho, o António,  decide "entrar na luta" (sic),   quando estava destinado a ser padre...

Quando o PAIGC se sentou à mesa do Estado, em Bissau, em 1974,  já só havia sobras... Quem as apanhou foram os primeiros a chegar a Bissau. Ele fora dos últimos... Ficaria na tropa por mais uns anos até ao golpe de Estado do 'Nino' Vieira, que lançou uma onda de veneno e  ódio contra os cabo-verdianos e os mestiços... 

Aos 36 anos arrumou as botas, a farda e a kalash. E entrou numa nova vida. Foi professor, foi agente comercial, andou na campanha do caju, etc. Até finalmente conhecer a ONGD que lhe deu a mão.  

Era uma daquelas ONGD com generoso financiamento estrangeiro (e, mais tarde, da CEE), que preenchia, em muitos setores (saúde, educação, cultura, agricultura, ambiente, etc.) as funções que o frágil (e quase inexistente) aparelho de Estado guineense não conseguia cumprir. 

Viajava bastante, pela Guiné (regiões de Cacheu,Bafatá e Tombali, onde a ONGD tinham projetos).

***


− E agora, António ?

Bebeu mais uma golada de cerveja, pigarreou, deixou passar mais uns tantos segundos e disse-te mais ou menos isto, num longo monólogo, à laia de confissão:

−  Só tenho que me queixar das decisões que não fui eu a tomar. As que os outros tomaram por mim. 

Não quis particularizar, mas estava, se calhar, a referir-se a família, à mãe (que era uma mulher "poderosa, dominadora"), aos irmãos mais velhos, aos missionários , aos colegas de liceu que já eram paigêcistas e que o empurraram para a luta armada. E, claro, ao próprio Amílcar Cabral que foi para ele o pai que "ele nunca tivera", o seu herói, o seu ídolo... Nunca mais o voltaria a ver desde   que, em 1969,  o mandou para formação em Cuba. Terá chorado como ninguém a sua morte, em 1973.

Confessou-te (ou deu a entender) que, no seio do Partido (como ele ainda dizia), chegou a sentir-se, por  vezes, discriminado por ser "mais branco do que preto".  Quem disse que na cúpula do PAIGC não havia racismo ?

Não quis entrar en grandes detalhes sobre a sua vida no mato, nas "áreas libertadas". Como comissário político", depois de vir de Cuba, teve que mostrar que era tão ou mais "cabra-matchu" do que os "mais velhos". Teve que dar o exemplo aos outros: ser frugal, casto, disciplinado e disciplinador, respeitar as bajudas, defender a população...Tinha que garantir a "pureza ideológica", os valores do Partido... Sobretudo tinha que se impor pelo exemplo. Havia conflitos com os "mais velhos", e sobretudo com os mandingas.

− Conflitos ?... Entre camaradas ?...

Sem concretizar, o Brandão referia-se aos "pequenos abusos", os privilégios dos comandantes: vinho de palma, "água de Lisboa", bajudas para dormir, "bianda com mafé", relógio de pulso,caneta e papel,  amuletos, saco-cama, medicamentos, cigarros, guarda-costas.... 

Percebeste o ele que queria dizer, por meias palavras. 

Havia quem andasse na luta há muitos anos. Desde o princípio e, com sorte, estava vivo. Um jovem, de 19/20/21 anos,  só por ter estudos e ser comissário político, não ia mudar aquelas "cabeças duras"...

 Havia o culto do "cabra-matchu", denunciado aliás nos discursos do Amílcar Cabral. Mas o líder histórico não andava com eles no mato. Muitos nunca o tinham visto em carne e osso, só em fotografia. Conacri ficava longe. Tal como as Colinas do Boé.

Sobre os ajustes de contas com os "cães dos colonialistas", a seguir à independência, não quis falar. A expressão era usada pelo Cabral para se referir aos fulas e outros "colaboracionistas"...  O assunto incomodava-o visivelmente, e tu não insististe. Era delicado demais para uma conversa entre antigos inimigos, logo nos primeiros tempos em que se conheciam.

Ainda houve tempo de ir ao cais do Pijiguiti para dar um último adeus e ouvir o silêncio do Geba, que ali já era estuário,  barrento, misturando-se com as águas azuis do Atlântico. O Xaianga, o Geba Estreito, era a montante, a partir do Xime... Um enorme braço de água que serpenteava pela Guiné e os seus dois países vizinhos... 

Tiveste pena de não poder parar no Mato Cão, no regresso da viagem ao Cantanhez, e aguardar a chegada do macaréu, quando aquela gigantesca serpente de água irrompe pelas margens lodosas, na maré-alta, com o seu rugido de meter medo... 

Que diriam aquelas margens se pudessem falar dos silêncios e dos macaréus dos últimos 500 anos de História ?

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Guiné 61/74 - P26575: Nunca Tantos Deveram Tanto a Tão Poucas (6): Homenagem às enfermeiras paraquedistas em livro recente sobre a "História da Enfermagem em Portugal"... Por sua vez, reproduzimos excerto de um depoimento de Aura Teles sobre a morte da fur grad enfermeira pqdt Maria Celeste Ferreira da Costa (Tarouca, 1945 - Bissalanca, 1973)




Capa  de "História da Enfermagem em Portugal (1143 - 1988). Ed lit: Ana Pires, Ana Paula Gato, Analisa Candeias, Carlos Subtil, Constança Festas, Lucília Nunes,  Paulo Queirós, Rui Costa. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2025, 301 pp. 


1. Com a contribuição de duas dezenas de autores  (quase todos enfermeiros, doutores e mestres em enfermagem ou outras áreas da saúde), publica-se a primeira história da enfermagem portuguesa, abarcando oito séculos. 

Independentemente de uma posterior nota de leitura mais extensa e aprofundada, registe-se aqui o evento editorial e a estrutura da obra, dividida em duas partes: 

(i)  a "história de longa duração" (Parte I: dos primórdios da nacionalidade até ao 25 de Abril de 1974k pp. 19-143);  

(ii) a historiografia focada nos espaços de prestação de cuidados e  de formação, nas questões de géneros, na assistência a populações específicas e na assistência em cenários de guerra e de catástrofe (Parte II, pp. 1147-292).

É nesta Parte II que vamos encontrar um pequeno capítulo (todos eles são sintéticos) dedicado  às enfermeiras paraquedistas, da autoria de Ana Paulo Gato (pp. 210-215) (que é doutorada em saúde pública pela Universidade NOVA de Lisboa  e professora coordenadora da Escola Superior de Saúde / IP Setúbal). 

O artigo  não traz nada de novo, é uma compilação de várias fontes, em todo o caso dá-se o devido destaque ao pioneirismo das 46 enfermeiras que não só saltaram em paraquedas e cumpriram missões em teatros de guerra, como também "saltaram" para a história das mulheres portugueses.

Cite-se apenas este parágrafo: 

"Enfrentando a desconfiança do meio militar, as convençóes sociais sobre o papel da mulher, os preconceitos em relação as mulheres trabalhadores e independentes e até a oposição  e/ou preocupação das suas famílias e amigos, várias mulheres enfermeiras enfrentaram o desconmhecido e os múltiplos riscos associados à vida militar em tempo de guerra com um grande sentido de dever" (op. cit., pág. 212).


Moçambique > Vila Cabral> 1967 > A Cristina Silva (seria ferida em 1973, na sua segunda passagem por Moçambique)



Não é demais lembrar aqui as duas vítimas entre as 46 enfermeiras paraquedistas que passaram pelos diferentes teatros de operações: 

(i)  a Maria Cristina Silva (que foi ferida em combate, em 1973, durante uma evacuação, no TO de Moçambique, na região de Mueda,  alvejada com um tiro na cabeça que, felizmente, não foi fatal) (*);

(ii) a  Maria Celeste Ferreira da Costa (ferida mortalmente pela hélice de uma DO-27, em Bissalanca, em 10/2/1973) (**) 



Furriel graduada enfermeira paraquedista Maria Celeste Ferreira da Costa 
(Tarouca, 1945 - Bissalanca, Guiné, 1973)


No Cap IX ("Os riscos que corríamos"), do livro coletivo "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2ª ed.  (ed. Rosa Serra, Porto, Fronteira do Caos, 2014), há uma  descrição, sintética mas notável, da nossa camarada Aura Rico Teles, membro da Tabanca Grande, sobre o fatídico acidente que vitimou mortalmente a Celeste, na BA 12, Bissalanca, em 10 de fevereiro de 1973. 

É uma pequena história, intensa, de dor, solidariedade e camaradagem entre mulheres e enfermeiras paraquedistas.  Repare-se na sua derradeira preocupação: (...) "decidimos as duas (eu e a Eugénia) começar a reconstruir-lhe a face e o ombro para que (...) partisse bonita como ela era.  Durante três horas foi esse o nosso trabalho" (...)

Publicamos um excerto, com a devida vénia. É também o contributo da Aura Teles para o blogue, para o qual entrou pela mão da Maria Arminda Santos. Tem 7 referências no blogue. (Além da Arminda e da Aura, sentam-se também à sombra do nosso poilão a Giselda e a Rosa Serra; a Ivone Reis, essa, infelizmente já faleceu em 2022).



A Maria Arminda (Setúbal) e a Aura Teles (Vendas NOvas), em visita ao navio-escola Sagres. S/d. Fonte:  Cortesia de Rui Manuel Soares, ex-paraquedista (Maia)


A morte da minha colega Celeste

por Aura Teles




Fonte: Excerto de "Nós, enfermeiras paraquedistas", 2ª ed., org. Rosa Serra, prefácio do Prof. Adriano Moreira (Porto: Fronteira do Caos, 2014), pp. 304-305 (com a devida vénia). (***)

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Notas do editor:



Guiné 61/74 - P26574: Parabéns a você (2357): Sargento Ajudante Ref da GNR Manuel Luís Rodrigues de Sousa, ex-Soldado At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512/72 (Jumbembém, 1972/74)

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Nota do editor

Último post da série de 5 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26553: Parabéns a você (2356): Gil Moutinho, ex-Fur Mil Piloto, DO e T6, da BA 12 (Bissau, 1972/73)

terça-feira, 11 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26573: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (2): Partida para Nova Sintra - Chegada a Nova Sintra - Em Nova Sintra

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


4 - PARTIDA PARA NOVA SINTRA
Paragem no Enxudé
Cais de Bolama
Desembarque em Lala

A 3 de Março de 1969 a minha companhia foi transportada em duas LDM (lancha dedesembarque média). Fizemos uma primeira escala no Enxudé e depois aportamos a Bolama onde dormimos duas noites. Na manhã do dia 5 retomamos a viagem e depois chegamos finalmente a Lala, onde desembarcamos.

As LDM baixaram as empanadas sobre o tarrafo (arvoredo rasteiro) e ordeiramente fomos saindo. Iniciámos o primeiro trajeto por entre a mata verdejante. Às tantas ouviu-se um tiro. Foi o furriel Barriga, caçador nato, que não resistiu a atirar sobre uma gazela. O comandante do Batalhão, que nos acompanhava, queria aplicar-lhe uma sanção disciplinar (vulgo porrada) mas ficou-se pela advertência e um raspanete. Nova Sintra estava a seis quilómetros de distância



5 - CHEGADA A NOVA SINTRA
Vista aérea do quartel
Entrada em Nova Sintra
A messe de oficiais e secretaria

Finalmente chegamos e tive a primeira desilusão. Ao entrar dentro do arame farpado, parei e perguntei a mim mesmo: é aqui que vou viver durante seis meses? Na verdade, não foram seis, mas vinte. Os únicos edifícios à superfície, se lhes podia chamar assim, eram toscos e mal amanhados. Havia o abrigo dos oficiais, secretaria, cantina, depósito de géneros, transmissões e posto médico. Não havia camaratas mas sim abrigos subterrâneos, cobertos por troncos de palmeira com um metro de terra em cima e placas de zinco a fazer de telhado, tendo duas entradas nas extremidades, em zig-zag, para evitar eventual entrada de granadas. Estavam dispersos ao redor do quartel. 

Não havia refeitório único, pois cada abrigo tinha o seu, o que em termos de segurança era uma boa estratégia. Luz elétrica só havia à noite, fornecida por um gerador. Messe de sargentos também não havia e os furriéis estavam distribuídos pelos diversos abrigos. Quanto à latrina não digo nada, recuso-me. 

A pista de aviação era a descer e com muitos sulcos, principalmente na época das chuvas. As viaturas ficavam estacionadas na “garagem estrela “, a céu aberto. Também a céu aberto era a cozinha, tendo posteriormente arranjado uma solução melhor. A água era obtida numa fonte a dois quilómetros de distância. Enfim, um condomínio fechado, um resort, se quiserem, do tempo pré histórico.


6 - EM NOVA SINTRA
O meu abrigo/dormitório
A cozinha ao ar livre
Cantina/Depósito de géneros/material

A minha companhia foi destacada para Nova Sintra com a promessa de ao fim de seis meses ser feita uma rotação de companhias. Dizia o comando do Batalhão que era a mais bem preparada para enfrentar o primeiro impacto, liderada pelo capitão Bernardo, o mais jovem e mais bem capacitado relativamente aos outros dois capitães, da CCAV 2482 e CCAV 2484, destacadas em Fulacunda e Jabadá, respetivamente. 

Mas o azar bateu-nos à porta. No dia 11 de Julho de 1969, num trilho em direção a um acampamento IN, de madrugada, o capitão Bernardo pisou uma mina que lhe amputou uma perna e provocou ferimentos graves na outra. Foi o primeiro ferido e logo com tamanha gravidade. 

Ficamos sem capitão até Setembro de 1969. Nesse intervalo assumiu o comando o alferes Luís Martinho, dado ser o mais bem classificado entre os alferes. Esta perda ocasionou que ficássemos sem força para reivindicar a prometida rotação. Os outros capitães tudo fizeram para que assim fosse. Numa visita ao nosso aquartelamento, ouvi o capitão Morais, de Fulacunda os (BoinasNegras), onde estava o meu amigo e conterrâneo Fausto, dizer ao seu alferes Sousa e Silva, que o acompanhava, que iria fazer todos os possíveis para não levar os seus homens para aquele fim de mundo. O certo é que conseguiu, pois acabamos por ficar em Nova Sintra vinte meses.

 Depois tivemos mais dois capitães, desta vez, milicianos. Primeiro o capitão Loureiro e depois o capitão Gamado. O capitão Loureiro, natural de Cedofeita, no Porto, dizia que estava ali para ganhar dinheiro para poder terminar o curso de direito. Bom operacional, nas colunas e não só, ia sempre à frente junto dos picadores. As minas detetadas eram levantadas por ele e ainda foram algumas. O capitão Gamado estava descansado em casa, pois já tinha feito o tempo normal de tropa, mas foi mobilizado, dada a falta de oficiais do quadro.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26551: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (1) Formação do BCAV 2867 - Partida para a Guiné e Chegada a Bissau

Guiné 61/74 - P26572: O melhor de... Valdemar Queiroz (1945-2025) - Parte III: fevereiro de 1969, a festa de despedida dos "Lacraus", em Silvade, Espinho, antes de partirem para a guerra

 




 Espinho > Silvade > Fevereiro de 1969 > Jantar de despedida antes da partida, a 18, para o TO da Guiné... Um grupo (14) de sargentos e furriéis milicianos da CART 2479, futura CART 11, "Os Lacraus" (1969/70). (*)  (Ao fundo, um "emplastro", que fazia parte da "mobília"do restaurante".)


À esquerda, sentados: 

(1) Canatário (armas pesadas);
(2) Cândido Cunha; 

em pé:

(3)  Silva (transm.)

(4) Abílio Duarte:

(5) Pinto;

atrás:

(6)  Manuel Macias;

(7) Pechincha (operações especiais); 

ao alto:

(8) Sousa;

ao centro:

(9) 1º. srgt Ferreira Jr. (já falecido);

(10) Renato Monteiro (1946-2021);

(11) Ferreira (vagomestre);

(12) Edmond (enfermeiro);

(13) Pais de Sousa (mecânico);

sentado, à direita:

(14) Valdemar Queiroz ("armado em finório") (nasceu em 30/3/1945, em Afife, Viana do Castelo; faleceu em Agualva-Cacém, a 3/3/2025, a escassas 4 semanas de celebrar os  80 anos) (*)

Para completar a classe de sargentos da CART 2479 (futura CART 11),  faltava:

  • o 2º. srgt Almeida (o velho Lacrau) (já falecido);
  • o fur mil Vera Cruz ;
  • o fur mil Aurélio Duarte (também já falecido).


Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Valdemar Queiroz (1945-2025)

ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


1. Mensagem de Valdemar Queiroz, a dez dias do Natal de 2021 (apesar de já doente, teve a melhor prenda que lhe podiam: passou a consoada com os "holandeses", o filho Zé da Silva, a nora Maaike da Silva,  o neto, e as duas netas mais novas)


Data -  14 dez 2021 15:23

Assunto - Foto à procura de uma legenda

Luís,

Esta fotografia foi tirada em Espinho num jantar de despedida (?!)  na semana anterior (05-02-1969) ao embarque, não para a colónia de férias, para a guerra na colónia da Guiné, também chamada "de jure" Guiné Portuguesa e por cá Província da Guiné. Chamem o que quiserem: fomos para a guerra na Guiné.

Vemos na foto, exceção feita ao 1º. sargento, uma  rapaziada de furriéis milicianos de 20/21 anos de idade. 

Para completar a classe de sargentos da CART 2479 (futura CART 11), alta o 2º. sarg. Almeida (o velho Lacrau), o fur mil Vera Cruz e o fur mil Aurélio Duarte que já tinha partido à frente para tratar dos "hotéis e aluguer de carros de passeio".

Na legenda da fotografia vão todos identificados, e destes, infelizmente, já faleceram o 1º. srgt Ferreira Jr, o meu amigo Renato Monteiro  e o outro meu amigo Aurélio Duarte  que não está na fotografia.

Temos na fotografia, à esquerda,  sentados,  o Canatário (armas pesadas) e o Cunha; em pé o Silva (trms), o Abílio Duarte e o Pinto; atrás, o Macias e o Pechincha (op especiais); ao alto, o Sousa; ao centro, o  1º. srgt Ferreira Jr., o  Renato Monteiro (já falecido), o Ferreira (vagomestre), o Edmond (enfermeiro), o Pais (mecânico) e sentado eu, o Valdemar Queiroz (armado em finório). (**)

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

2. Comentário do editor LG:

Dos cinco "Lacraus" que são membros registados da Tabanca Grande, três já deixaram a Terra da Alegria, o Aurélio Duarte (1947-2017),  o Renato Monteiro (1945-2019) e agora o Valdemar Queiroz (1945-2025). Estão felizmente vivos o Abílio Duarte e o Manuel Macias.

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Notas do editor:


segunda-feira, 10 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26571: Notas de leitura (1779): Habitação para indígenas em Bissau, 1968 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
A cidade de Bissau que conheci em 1968 ganhou outra fisionomia quando lá estive a última vez, em 2010. Sou capaz de identificar as imagens deste artigo de 1968 e custa-me dizer o que senti quando percorri os bairros de Missirá, Santa Luzia e Militar, instalou-se o caos urbano, via-se à vista desarmada que o crescimento demográfico não era acompanhado de infraestruturas minimamente capazes. Não sei a que título o arquiteto Fernando Varanda estudou os bairros do tempo de Sarmento Rodrigues e Arnaldo Schulz, mas há que reconhecer que faz observações pertinentes e a sua crítica assentava num tipo de habitação aberto à convivência e ao diálogo interétnicos, já que, do que vira em Safim e no Biombo, as etnias revelavam-se fechadas e seccionadas. Fernando Varanda, como poderão ver no Google, teve uma lustrosa carreira internacional em vários continentes trabalhando em planeamento urbano. Pode dar-se o caso de quem trabalha no planeamento urbano na Guiné-Bissau ache interessante as suas propostas.

Um abraço do
Mário



Habitação para indígenas em Bissau, 1968

Mário Beja Santos

A revista Geographica, da Sociedade de Geografia de Lisboa, publicou no número relativo a julho de 1968 um trabalho do arquiteto Fernando Varanda (1941-2023), doutor em Geografia Urbana, com assinalável carreira internacional, um artigo intitulado “Um estudo de habitação para indígenas em Bissau”. 

Refere o autor que no propósito do seu estudo se visa um princípio de organização de habitação para as populações indígenas alojadas em Bissau em condições muito precárias. A guerra provocara um autêntico êxodo para os centros urbanos, a população negra de Bissau aumentara nos últimos 5 anos de 22 mil para 30 mil habitantes (números aproximados). Em Bissorã, a população era de mil habitantes antes do início da guerrilha, ascendia agora a 12 mil. Impunha-se, pois, encontrar soluções para integrar as populações que poderiam não mais voltar aos seus ambientes anteriores.

A população negra envolvia a cidade branca, eram cerca de 30 mil habitantes alojados em construções feitas de materiais de ocasião, a falta de alojamento era enorme, os preços incomportáveis. A população distribuía-se por zonas de afinidade étnica. Tomavam-se medidas administrativas para distribuir os alojamentos por colunas ao longo das vias principais de acesso, tinha-se em linha de conta a segurança das populações e a segurança militar.

O arquiteto começou por observar alguns aspetos da habitação urbana indígena em Bissau e nos arredores – povoações das etnias Papel, do Biombo, Mancanha e Balanta, em Safim. Verificou-se que as zonas habitacionais estavam sombreadas por árvores de grande porte; quanto às zonas suburbanas, fez-se a observação da zona dos Papeis do Biombo, a 60 km de Bissau e a zona dos Mancanhas e Balantas de Safim, a 15 km da cidade. 

O esquema de agrupamento é sensivelmente o mesmo: famílias que se agrupam numa morança, e conjunto de moranças, relativamente próximas, formando uma espécie de povoação. Cada morança tem, em média, de uma a seis famílias. A casa é de planta redonda, na sua forma mais tradicional. Mas por influência de costumes europeus caminha-se cada vez mais pela opção para a planta retangular ou quadrada.

Do inquérito efetuado abrangendo os regulados de Antula, Bandim, Intim, apurou-se haver sensivelmente 28,250 habitantes. O inquérito, na parte referente ao alojamento, foi dirigido a cerca de 200 chefes de família, amostragem pequena, verificou-se a composição do agrupamento familiar, os salários, o valor das rendas, quem tinha casa própria ou arrendada. 

As habitações são quase totalmente de planta retangular em Bissau, a área de cada casa era de cerca de 60 m2, excluindo quintais e zonas sanitárias. Cada casa tem entre quatro a seis divisões, servem de quartos. Os materiais de construção eram dos mais variados, veem-se casas de paredes de adobe e cobertura de folha de palmeira, veem-se outras com paredes em blocos de betão e cobertura de zinco e até de telha; o chão é de terra batida ou de cimento (este em caso de blocos de betão e cobertura de zinco). As instalações sanitárias e de banho existem foram de casa, nos chamados “cercados”. Não há esgotos, não há balneários ou retretes públicas. A cozinha existe no alpendrado ou no quintal. A água é fornecida por poços ou fontes abertas pela administração de Bissau. O mobiliário é escasso, camas ou esteiras, uma arca, bancos e cadeiras. 

Apenas os Fulas e Mandigas se mantêm fiéis às casas de planta circular, a planta retangular deve-se à influência europeia. Os espaços de convivência são praticamente inexistentes: cada família vive para si, dentro de casa ou ao alpendrado sempre existente, as crianças brincam na rua. Os arruamentos são os que a administração europeia criou.

Fernando Varanda analisa a solução apresentada pelas entidades administrativas e procede à sua crítica. O primeiro esquema de organização vinha do tempo do governador Sarmento Rodrigues, pretendeu-se, nessa altura, criar um bairro na estrada de Santa Luzia, uma casa por família, com dois quartos, sala, cozinha e instalações sanitárias, o projeto ficou na construção de umas 38 casas. 

Ao longo do tempo foi-se verificando uma infiltração progressiva de “palhotas” no meio das casas existentes. Estava em construção já muito avançada o bairro da Ajuda, a 6 km do limite da cidade, iniciativa de Arnaldo Schulz depois do bairro original ter sido destruído por um incêndio, em 1965; este bairro da Ajuda situa-se em frente ao Hospital Militar. 

O plano geral deste bairro era o seguinte: numa primeira fase, estavam já construídas 140 casas, numa área de 700 por 300 metros, isto num plano que incluía mercado, estabelecimentos comerciais, escola primária, posto médico, igreja católica, mesquita, centro social, cinema, lavadores públicos, oficina de carpintaria mecânica. São casas de planta quase quadrangular, com um alpendrado em toda a volta. A divisão interior da casa é uma sala grande, dois quartos, um quarto independente (para hóspedes), cozinha e instalações sanitárias, no alpendre.

Na admissão ao bairro privilegiava as vítimas do incêndio. A crítica de Fernando Varanda era de que no caso de Santa Luzia como no caso da Ajuda se escolher um planeamento urbano de régua e esquadro, dividindo regularmente uma área em retângulos e situando-a ao longo de uma grande via de comunicação. 

A solução não tem nada a ver com o sistema de vida em comunidade que faz parte da tradição guineense. Por tal razão, o arquiteto apresenta uma solução. Ele parte de um agrupamento de várias famílias, normalmente da mesma etnia, em disposição mais ou menos concêntrica, núcleo que está em relações de vizinhança próxima com outros. O conjunto de vários núcleos constituirá uma unidade dotada de equipamento próprio. A sua intenção era agrupar núcleos de 10 famílias em unidades de 6 núcleos, constituiria uma zona com serviços públicos bem definidos. As zonas separar-se-ão por amplos espaços verdes, tanto quanto possível naturais, com acessos próprios utilizáveis por viaturas. A intenção é proteger a intimidade dos habitantes permitindo-lhes a criação ou a continuação das suas estruturas tradicionais, mas também para abrir caminho a uma aculturação progressiva e compreendida.

Os núcleos eram concebidos em torno de uma origem de água, o espaço central serviria para recinto de convívio diário entre as famílias. E justifica a essência da sua solução que era a de visar a possibilidade de poderem habitar próximo três tipos de famílias: pequena, média e grande, em que a pequena terá 3 ou 4 elementos e a maior poderá ir dos 12 aos 15. 

Diz ter optado por uma forma poligonal de planta, faz-se assim convergir a vida de cada casa para um pátio interior alpendrado. Justifica dois tipos de casas, conforme a dimensão familiar; as paredes seriam em betão de adobe, assentes sobre uma fundação em betão ciclópico sobre-elevada, para evitar a entrada de água das chuvas no interior da habitação; a cobertura seria em folha de palmeira. Era propósito do arquiteto dar toda a facilidade aos habitantes para serem eles próprios a construir as suas casas, fornecia-se a planta base, o tipo geral de construção, permitindo aos habitantes que adequassem as suas casas à sua maneira de viver.

A evolução dos acontecimentos alterou tudo, os planeadores urbanos que me ditem as soluções propostas por Fernando Varanda como forma de criar condições confortáveis nos bairros caóticos que hoje existem em Bissau. É um estudo que vale como propósito de um tempo, mas a visão do arquiteto, conceituado geógrafo urbano, é merecedora da observação de todos aqueles que pretendem dar mais dignidade à vida dos habitantes em Bissau e em todos os outros aglomerados.

Estrada de Safim, as novas edificações, construídas pela administração. Quilómetros de casas em duas filas largamente separadas por uma faixa de trânsito para veículos
Morança Mancanha (estrada de Safim – embora de um tipo já decadente, aqui ainda é possível a vida com um certo intimismo e conforto). Foram aldeamentos deste tipo que a administração substituiu
Biombo, casa Papel. Trata-se de um agrupamento cuja unidade é a função da unidade familiar. Constrói-se um núcleo; aumentando a família, outro se ergue ligado por um alpendre
Bairro de Santa Luzia, a estrada passa junto à margem esquerda
Bissau, zona indígena, Chão Papel
Cupelom de Baixo
Cupelom de Cima
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Nota do editor

Último post da série de 7 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26561: Notas de leitura (1778): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1 (Mário Beja Santos)