Excerto da reportagem de Joana Gorjão Henriques (texto, em Bissau, Bafatá e Cacheu), Adriano Miranda (fotos) e Frederico Batista (vídeo). Série: Racismo em português
Público, 06/12/2015 - 00:00
Público, 06/12/2015 - 00:00
1. Excerto da reportagem, com a devida vénia, destacando as declarações do Leopoldo Amado, que é membro da nossa Tabanca Grande [, tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue; foi cronologicamente um dos 30 primeiros membros da Tabanca Grande (*)]:
Leopoldo Amado ma Feira do Livro de Lisboa, em 2012, posando ao lado da Alice Carneiro, do Luís Graça e do João Graça. Foto de LG |
“Em 1940, este muro ainda existia, foi derrubado quando o nacionalismo começou a despertar”, no final dos anos 1950, explica. “Nesse território com o muro em Bissau, na pequena cidadela, alguém usava um apito às seis da tarde e os africanos sabiam que era hora de saíram daquele espaço, a urbe colonial. Voltava-se a apitar às seis da manhã para entrarem e darem início aos trabalhos domésticos. A presença dos negros era admitida apenas para os trabalhos domésticos” ou de baixa qualificação.
A época colonial de que Fodé Mané, 50 anos, se lembra é a do governador António de Spínola (1968-73), altura em que estava em marcha a política Por Uma Guiné Melhor (que ficaria registada em livro, 1970). “Já não havia a implementação da segregação do indígena”, comenta. Era a política de criar mais escolas, mais infra-estruturas para travar a luta de libertação que estava a crescer. “Mas uma revogação não desaparece da mentalidade das pessoas”, continua. “Vivemos a diferenciação entre os que tinham beneficiado do estatuto do indigenato, dos que não tinham a possibilidade de ser assimilados e de ter o estatuto de cidadãos com plenos direitos, e aqueles que eram filhos de funcionários públicos e podiam estudar nas escolas do Estado. Para estudar, a pessoa tinha de ter registo ou certidão de nascimento ou um conjunto de documentos que o grosso da população não tinha.” (...)
Com pouco mais de 1,6 milhões de habitantes, a Guiné-Bissau foi a primeira colónia portuguesa a obter a independência em 1973, fruto da luta de libertação liderada por homens como Amílcar Cabral, iniciada no princípio dos anos 1960. Tem uma história marcada pela resistência, orgulho de muitos guineenses. Tendo feito parte do Império Mali e do Reino Gabu, a Guiné-Bissau nunca seria ocupada totalmente pelos portugueses. Historiadores como Leopoldo Amado defendem que a colonização efectiva durou apenas de 1936 (a data oficial do final das campanhas de pacificação) até ao despertar do nacionalismo, por volta dos anos 1960.
A Guiné foi administrada por Cabo Verde até 1879 como Guiné de Cabo Verde e até à descolonização eram os cabo-verdianos que formavam o grosso da administração pública colonial — daí dizer-se que a Guiné era uma colónia da colónia.
(...) Leopoldo Amado (n. 1960) é hoje um dos mais conhecidos e respeitados historiadores bissau-guineenses e é ele quem afirma: a partir de determinada altura, a Guiné era um fardo para o sistema colonial português. É uma terra com tradição guerreira que não permitiu que a colonização fosse efectiva e há relatórios que, a dada altura, mostram Portugal a ter mais despesa do que lucros com o país. Portugal não se desfez da Guiné apenas porque o império colonial era tido como um todo: se a Guiné-Bissau caísse, as restantes colónias tentariam seguir-lhe os passos, acredita.
Como Portugal tinha muito poucos meios, usou o sistema de “engavetamento étnico”: inventou etnias; dividiu para melhor reinar. “Houve casos em que os portugueses tiveram o desplante de colocar fulas a dirigir manjacos, manjacos a dirigir bijagós, provocando movimentações de etnias com o propósito de os dividir, e colocando sobre eles uma autoridade a que chamavam Assuntos Indígenas.”
No colonialismo existiam quatro categorias raciais, contextualiza: os grumetes (permaneciam na tradição, viviam à beira das cidades), tangomãos (participavam no comércio e eram uma espécie de assimilados), os brancos, e os lançados, os filhos da terra (brancos que nasceram na Guiné-Bissau). “Um dos factores de submissão foi exactamente a interiorização no negro da sua inferioridade pela via da separação”, sublinha. Por isso usavam o muro de Bissau, por exemplo. “Não que os portugueses fossem mais racistas que os outros, mas tinham de utilizar isso como método, a ideia de inferioridade para levarem avante os seus propósitos. Tudo isso foi feito num ambiente em que os portugueses, eles próprios, assimilavam valores africanos. Os colonos que se deixavam levar pela cultura africana e viviam com os africanos eram considerados ‘cafre’, o termo para classificar as pessoas que se tinham degenerado, e eram considerados do ponto de vista religioso como almas perdidas porque se submetiam à forma de estar do africano — aliás, criou-se o termo ‘cafrealização’. (...)
Como estratégia, os portugueses aproximaram-se dos fula, criaram exércitos de fula, de balanta, de outras etnias, com o objectivo de acicatar as diferenças. Com o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, criado em 1945, forneciam-se elementos ao poder político para melhor compreender as dinâmicas étnicas. “O contrário do racismo é exactamente isso, trazer à nossa convivência, viver com eles, permitir que tenham acesso à escola, à saúde, que melhorem as condições de vida. Na Guiné-Bissau isso não aconteceu: as poucas infra-estruturas só foram construídas porque havia necessidade de dar vazão às questões da guerra.”
Apesar de tudo, o sistema dava oportunidade de ascensão social a alguns guineenses. O pai de Leopoldo Amado, por exemplo, era director dos correios, posição à qual chegou no final da carreira, “não sem problemas pelo meio”, sendo “alvo de discriminação de todo o tipo”. A ideia era o sistema colonial usar uma parte ínfima da população como intermediária entre os seus interesses e as populações.
Depois apareceu uma literatura colonial etnográfica para estudar a psique do negro, adianta o historiador. “O negro praticava a gula, o pecado dos cristãos, logo era preciso civilizá-lo. O negro é um ente que tem uma potência sexual acima da média, quase boçal, quase um animal, que tem atitudes animalescas. Todas estas ideias foram reproduzidas nesta literatura colonial. Reproduziu-se também a ideia de que o negro é um irresponsável, propenso a bebedeira; no caso das mulheres, são lascivas, têm propensão para promiscuidade sexual, vivem na degenerescência moral. A par de tudo quanto era racismo, criava-se uma ideologia para poderem continuar com a empresa da colonização.”
A teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987) suportou a ideologia do Estado Novo sobre a excepcionalidade portuguesa de estar nos trópicos, baseada na cordialidade, miscigenação, capacidade de adaptação e assimilação. Tem, para Leopoldo Amado, “algum substrato” porque “há uma maneira particular de ser português”: mas “isso não isenta de maneira nenhuma” o “ser racista”. “Salazar e Marcelo precisavam de uma teoria como a de Gilberto Freyre. A tese de Salazar era a de que havia portugueses de outra cor, mas isto era para consumo externo, porque entre os portugueses de outra cor existia o trabalho forçado, o sistema que substituiu a escravatura.” (...)
Ler aqui o resto do excelente trabalho de investigação jornalística de Joana Gorjão Henriques
Vd. também os vídeos de Frederico Batista, que estão disponibilizados no portal do Público Multimédia, com os diferentes entrevistados (onde se incluem alguns dos melhores e promissores quadros guineenses como o sociólogo e diretor executivo da ONGD Tiniguena, Miguel Barros, o historiador Leopoldo Amado, diretor do INEP, o antropólogo Fodé Mané, a arquiteta Djamila Gomes, o sociólogo Dautarin Costa, o escritor Abdulai Sila, o investigador e doutorando Saico Baldé, o economista e político Mário Cabral (, velho militante do PAIGC), a Augusta Henriques, neta de colono português, fundadora da ONG Tiniguena, o gestor Mamadu Baldé, a jurista Samantha Fernandes, etc.: No tempo em que ser guineense não era suficiente para ser cidadão (**).
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P159: Tabanca Grande: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia
Fui com alegria que, ao chegar de férias, vi na minha caixa do correio a sua mensagem. Começo por dizer-lhe que as suas palavras me sensibilizaram. De facto, eu e a generalidade dos meus camaradas, ex-combatentes da guerra colonial (ou do Ultramar, como outros preferem dizer), que vivemos quase dois anos das nossas vidas na Guiné, sentimo-nos guineenses e nada do que se lá passou (e até do que se lá passa hoje) nos é indiferente. É impossível não amar a Guiné e o povo guineense. E nessa medida todos somos guineenses, de alma e coração… A história aproximou-nos e afastou-nos. O nosso modesto contributo, através dos nossos escritos na Net, visam de algum modo manter e se possível fortalecer os laços (que são sobretudo culturais e afectivos…) que nos unem às gentes da Guiné.
Leopoldo: O seu nome e alguns dos seus escritos já não nos eram desconhecidos. Fico entusiasmado ao saber que tem um longo trabalho de investigação sobre os aspectos políticos e militares da guerra colonial na Guiné, e que está é está a ultimar uma tese sobre este tópico. O que é ainda mais interessante (e inédito) é a sua dupla abordagem da guerra, vista pelos dois lados. Além disso, você era djubi nesse tempo (tal como o nosso amigo de tertúlia o José Carlos Mussá Biai, natural do Xime) e, como criança, foi uma vítima especial da guerra, tal como nós fomos actores.
É, por isso, que me sinto honrado em aceitá-lo na nossa tertúlia. Falo, em meu nome pessoal. Mas creio também interpretar o sentir dos restantes membros da tertúlia (que já são quase treze dezenas). Seja bem vindo. Temos muito que conversar. Um abraço e até breve. Luís Graça (...) (***)
(**) Último poste da série > 13 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15361: Recortes de imprensa (77): Recensão ao livro "Nacionalismo, Regionalismo e Autoritarismo nos Açores Durante a I República", da autoria do Professor Carlos Cordeiro, por Santos Narciso, incluída em Leituras do Atlântico, no Jornal Atlântico Expresso
(***) Vd. também entrevsita de Leopoldo Amado ao semanário O Democrata, de 29/9/2014: "Grandes comandantes do PAIGC estavam com a PIDE".
5 comentários:
“Grandes Comandantes do PAIGC estavam com a PIDE”, disse o Professor Doutor Leopoldo Amado.
Talvez se possa acrescentar que algumas Praças “U” e Caçadores Nativos estavam dos dois lados?
Mário Vitorino Gaspar
É uma utopia pensar-se que a luta revolucionária forja uma "homem novo"... Amílcar Cabral perseguia essa utopia... Com um Estado, duas Nações, um só partido... Era um projeto perigosos porque potencialmente totalitário... É verdade que a experiência democrática pluripartidária tem sido, em África, e não só, muito dececionante... Mas quem somos nós, europeus e americanos, para "dar lições" aos outros povos ?!.. Tenhamos a humildade de aprender uns com os outros...
Um dos "erros!" de Amílcar Cabral terá sido porventura, e tanto quanto sei, não ter feito a crítica do papel histórico dos "agentes caboverdianos" no aparelho colonial português... É verdade que a administração colonial na Guiné tinha um "rosto", na Guiné, pelo menos até ao tempo de Spínola: o administrador de concelho ou circunscrição (por ex., Bafatá), o chefe de posto administrativo (por ex., Bambadinca), e a polícia administrativa (o cipaio, que era indígena, em geral fula)... Não me recordo de ver a cara do chefe de posto administrativo (que era caboverdiano) em Bambadinca no tempo em que lá estive (julho de 1969/ março de 1971)...
Até que ponto a história dos "cavalos" e "cavaleiros", no seio do PAIGC, minou o moral da guerrilha e foi, hábil ou demagogicamente explorada pelos inimigos (internos e externos) de Cabral ? Há algum escrito de Cabral sobre o papel (de alegada predominância) dos caboverdianos no seio da administração colonial portuguesa como na direção do PAIGC ? Essa influência não terá sido hipervalorizada depois da independência e da fratura entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde ?
Há alguma ligeireza (?) em certas afirmações que depois ficam para a história...
"Os colonos que se deixavam levar pela cultura africana e viviam com os africanos eram considerados ‘cafre’," diz bem Leopoldo Amado
E digo eu: Quem assim definia depreciativamente esses portugueses eram os Europeus do apartheid, franceses, ingleses, Boers e belgas e uma elite privilegiada burguesa lusa.
Esse português "cafre" que na Guiné poucos havia, era definido de várias maneiras, principalmente em Angola onde tudo era mais numeroso.
Era o Branco cafrealizado; Branco de sanzala; Branco do mato; Funante, Comerciante dos pretos...e no caso de Luanda havia o celebérrimo "comerciante do muceque", este, o tal que todos os brancos finos conheciam bem, e também os militares da guerra do Ultramar se devem ter apercebido.
Ser "empregado de muceque" era uma especialidade rara em Luanda anunciada em jornais com salários apetitosos.
Esse empregado tinha que ser jovem branco ou mestiço de preferência, falar à maneira como escrevia Luandino Vieira (luandês, defino eu), e compreender mais que um idioma indígena.
Podia eventualmente vir a tornar-se um próspero comerciante ou fazendeiro.
Normalmente era jovem, tinha sido criado nos bairros periféricos, tinha a sua «nega», os pais em geral oriundos do Minho/Trás os Montes/Beiras/Madeira.
Quem não tenha conhecido este tipo de portugueses nos seus "habitat" e não tenha lido com atenção Jorge Amado, e não tenha vivido em Luanda, São Salvador e Benguela, não tenha entrado numa rebita (kuduro de hoje), dificilmente compreenderá o que se quer dizer com Luso-tropicalismo.
Sem essa gente, não havia o Brasil e os PALOP e se o Estado Novo, também como diz Leopoldo Amado se apoiou nesse fenómeno, também o MPLA o PAIGC e a FRELIMO se apoiaram em filhos e netos desses portugueses.
Na Guiné, devido aos inúmeros Gilas e Libaneses, quase não houve espaço para "cafres"
E o tal Funante, o comerciante aventureiro que entrava por África a dentro, na pequena Guiné nem tinha sentido.
E sobre a "colonização suave", só mesmo aquela onde o "europeu, ou árabe" nunca pôs os pés..
Porque só um europeu ou árabe aparecer no interior de África, sem pedir licença, já era uma violência que transtornava a cabeça de toda a gente.
E a cabeça jamais voltava ao lugar.
Cumprimentos
Caro amigo Leopoldo:
É bom saber de ti!...E saber que voltas à tua terra com esperança de poder fazer coisas importantes e úteis para o teu povo. E nada mais importante e útil de que o conhecimento do que fomos e somos, enquanto povos!... Espero boa sorte e boa... estadia!....
Conta connosco, com os nossos fracos préstimos!... Vê em que é que te podemos ajudar, e ao INEP. Ainda ontem fui buscar uma poste antigo com referências à tua entrada na nossa tertúlia ou Tabanca Grande: foste dos primeiros a aparecer e a valorizar esta iniciativa de partilhar memórias (e afetos)...
Teremos sempre muito gosto e honra em publicar escritos teus.
Um grande abraço do tamanho do Geba!... Luís
Sempre desconcertante, surpreendente, original, politicamente incorreto, autêntico... este nosso mais velho!... È uma delícia poder lê-lo, e tê-lo aqui ao pé de nós, de pleno direito, ao nosso querido amigo e camarada Antº Rosinha... Ele nunca pede para estarmos de acordo com ele, nem precisa: ele fala do que sabe, do que viu e viveu... E essa autencidade existencial ninguém lha pode tirar, roubar ou negar.
Atenção: estes tugas, com 500 anos de vidas pelas sete partidas do mundo, estão a acabar. Temos a obrigação de os ouvir, estimar, acarinhar... Em África ainda há de respeito pelo "mais velho"... Um xicoração, António.
Enviar um comentário