sábado, 12 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15479: Manuscrito(s) (Luís Graça) (72): "Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo" [Álvaro de Campos)

1. Um dos poemas mais doridos e pungentes da literatura portuguesa de todos os tempos...

Pô-lo-ei no meu poemário,
para levar comigo,
quando eu morrer
e fizer a atravessia do rio Caronte...
Na eternidade terei todo o tempo do mundo
para ler os livros que não li em tempo útil,
fixar e dizer em voz alta
os poemas que não sabia de cor
quando tinha idade para o fazer,
enfim, completar o "puzzle" (esburacado) da memória,
percorrer os rios, rias, braços de mar e lagoas da Guiné
que munca cheguei a percorrer de canoa...
E por aí fora:
há um lista interminável de tarefas,
mais ou menos heroicas,
ou mais ou menos mesquinhas,
que  ficam por fazer cá em baixo... 

Na eternidade, enfim,
vou ter todo o tempo do mundo
que na vida real nunca cheguei a ter...
É o que me prometem na agência de viagens
que oferece expedições
à tal terra donde não se regressa...

Na eternidade,
vou poder vingar-me das bravatas dos outros
e dos desaforos do  brutamontes que povoava a minha infância,
das esparrelas em que caí,
dos contos do vigário que me impingiram...

Na eternidade,
poderei dar-me ao luxo de me rir do otário
que sempre fui na vida terrena....

Na eternidade serei um príncipe!

... É a minha leitura, assim de repente,
do "Poema em linha recta",
do Álvaro de Campos / Fernando Pessoa... (LG)
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Álvaro de Campos | POEMA EM LINHA RECTA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


In Poesia, Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002



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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15420: Manuscrito(s) (Luís Graça) (71): o país onde os nossos pais nasceram, cresceram, amaram, casaram, viveram, trabalharam e morreram... e que nós herdámos


1 comentário:

Anónimo disse...



Lindos poemas, os dois, o do Álvaro de Campos e o teu inspirado no dele. O meu mal, a minha fraqueza, é não ser grande e não ter a coragem de assumir os meus erros, os meus defeitos e taras, em suma a minha pequenez. Só os grandes conseguem ter coragem e dar o peito às balas ao reconhecerem perante a opinião pública e as mulheres de soalheiro que são defeituosos porque como todos os humanos são feitos de água e barro. E ainda bem que houve algum deus que nos deu um sopro de vida para caminharmos pela terra alguns anos à procura de uma alma e de uma razão de existir.
Muito obrigado Luís por me despertares da minha sonolência e reacenderes a chama que me dá vida para sobreviver.
Um grande abraço. Francisco Baptista