terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15460: Notas de leitura (784): “O Fedelho Exuberante”, por Mário Beja Santos, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 27 de Novembro de 2015:

Caros Camaradas
Como fui ao Lançamento do Livro do Camarada Mário Beja Santos resolvi fazer um rascunho sobre o livro.
Não é uma crítica. Faço um passeio pelo livro. Zonas e casos que conheço, até por ter a minha mulher e filhos terem frequentado a Escola Primária, uma excelente Escola. Depois é o percurso pelo Campo Grande, muito embora o Camarada diga Alvalade – Campo Grande pertence agora à Freguesia de Alvalade.
Nota-se a afeição que o Camarada tem pelo “Bairro das Caixas”. E é este passeio que faço com o Camarada.
Obrigado Mário, tens um bom livro, muito embora seja suspeito por habitar e ter frequentado todo este percurso, e continuar a habitar.

Abraço
Mário


“O Fedelho Exuberante” – Mário Beja Santos -1

Mário Vitorino Gaspar

No dia 18 de Novembro de 2015 foi Lançado o livro do nosso Camarada Beja Santos no Museu da Farmácia. Depois se sermos homens e termos passado por todas, e muitas fases, voltamos a ser meninos, é como uma subida íngreme e uma queda. E a infância, que é o início, fica sempre gravada na memória.

Com Beja Santos, ele voltou e nós voltámos a ser meninos. E as recordações da juventude ficam mais presentes que as recentes. Ao ler este livro – e afastei-me da leitura já há muitos anos, só poesia leio – mas este livro que deve ter sido para o Camarada uma ida ao Parque Infantil do Campo Pequeno – chamou-me a atenção após verificar anos, locais e coisas mais que tive a oportunidade de conhecer. Após a passagem por territórios do seu nascimento “olhando em todas as direcções, com uma vontade imensa de andar à procura de indícios de poeira que se tenha acumulado no pós-guerra”. E escreve a determinado momento a passagem por locais que uns recordam, e outros não sabem. Os cinemas Rex; Promotora; Lys; Pathé; Salão Lisboa; Ideal; Max e Cine Oriente. Recorda aquela zona histórica, e via entrarem na Avenida Almirante Reis Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral – a Casa dos Estudantes do Império. Fala de Alvalade e da sua ida para ao Bairro Social de Alvalade, em Março de 1952. E descreve com minúcia, inclusive a renda a pagar, 620$00. É uma quantia elevada. Na Rua Alberto de Oliveira uma casa Tipo 3 pagava 360$00. E é chegado o momento de chegar a zonas e datas que não confundo. Aqui volto a reencontrar esta Escola Primária N.º 151, onde estudaram a minha mulher e os meus dois filhos. E como o Mário Beja Santos descreve Alvalade: – “ Era um espaço rural, havia pastores, carros de bois, passarinhos… (…) “… Vivemos na Rua António Patrício… (…)… “visitas à Avenida da Igreja para ver passar jogadores de futebol gloriosos que vivem no bairro ou redondezas, como o Travassos ou o Vasques”.

Também lá vivia o Canário jogador do Sporting e autor de letras de fados, que bem conheci – para além de Travassos e Vasques, estabelecidos na então freguesia de São João de Brito. O autor entra no pormenor: – “ A leiteira passava de manhã cedo, fervia-se o leite e eu bebia-o com um aromatizante...”. Fala naquilo que a memória falha do Milo”… “Assim se construiu uma linha protectora deste lado do Bairro Social de Alvalade, ele está incólume, resiste ao tempo, os condóminos fazem obras, o Palácio dos Coruchéus, na Rua Alberto de Oliveira, que conheci ao abandono e armazém dos equipamentos dos varredores desta área da cidade…”.

E recorda: – “. “Quando cheguei ao Bairro Social de Alvalade, junto da Lisboa das Avenidas Novas, em 1952, era fácil ver as marcas do passado, olhar o consumo no presente, perceber que havia uma nova civilização a irromper. O bairro estava cercado de quintas, tinha olival, a dois passos estava o formoso e cuidado jardim do Campo Grande, descendo um enorme estradão, onde então se construía a Avenida dos Estados Unidos da América, havia a Rua de Entrecampos, com as suas cocheiras, moradias, umas modestas, outras graciosas e mais outras espampanantes, havia uma mercearia onde se podia comprar azeite a granel, uma quarta de banha, torresmos, grão e feijão metidos num cartuxo e pesados em medidas de madeira com a rasoira. Vi nascer a Avenida dos Estados Unidos da América com arquitectura aparatosa para a época, depois surgiram as sopas e os caldos Knorr, a seguir os detergentes, os produtos empacotados foram ganhando uma progressiva importância. Naquele tempo, havia poucos carros, Telheiras era feita de azinhagas, uma verdadeira área rural e de ócio, criavam-se coelhos e galinhas nos quintais, Lisboa estava cheia de figueiras e nespereiras, as varinas apregoavam o peixe, o amola-tesouras era um indicativo, omnipresente e claro de que naquele mundo os objectos eram reparáveis. Porque só há banalização do efémero no consumismo. Nos anos de 1960, a realidade mudou. As classes médias urbanas transfiguraram as necessidades deste país que vivia com hábitos regrados e brandos costumes”. E o Camarada Mário Beja Santos aviva a nossa memória: – “… Comecei a dar vazão às consultas no dicionário do Torrinha, era o que eu tinha à mão…”.“... A mãe diz: – “Mário habitua-te a distinguir a verdade da mentira, a pensar com a tua cabeça, há casos em que as verdades de hoje são as mentiras de amanhã. Vais crescer e ter a tua opinião sobre o que vês, o teu pensamento tem que ser livre, não te deixes escravizar pela propaganda política. Há o verso e o reverso, nunca te esqueças”.

Mais recordações, incluindo a Livraria Barata (a antiga), onde comprei alguns livros proibidos, por baixo do balcão: – “Todas as casas eram propriedade de Caixas de Providência, a nossa pertencia à Caixa de Providência dos Empregados da Assistência, os prédios ao lado pertenciam à Caixa de Providência dos Médicos e à Caixa dos Empregados da CUF. Na década de 1960, a prosperidade fez-se sentir de muitas maneiras. (…). “… As minhas recordações encaminham-se para outra direcção, os quintais. Todos os prédios têm quintais, nuns pequenas hortas vão satisfazendo os locatários nostálgicos que aprenderam a amanhar a terra, antes de chegar à cidade; noutros aparecem barracões, pombais, havia gente que carpinteirava ou usava o seu espaço de quintal para depósito. O que interessa é que a petizada se deslocava à vontade por esses terrenos baldios, ali se jogava às escondidas, se encontrava terreno para o jogo do berlinde e para dar uns chutos na bola. Usei muitas vezes a placa por cima do túnel que levava ao quintal, saltava da varanda da cozinha e fazia os meus espectáculos para na vizinhança e para a malta que convidava”. E… Ainda não tinham chegado as novelas à rádio”; “Recordo que aí por 1962 entrei na Livraria Barata, então com as suas portadas de modesta loja de bairro, como se fosse uma papelaria ou um cabeleireiro. Havia estantes pejadas de livros encostadas às paredes e um espaço central que estabelecia um diálogo perfeito com quem quisesse andar ali a catar as novidades. (…)

Surgem as radionovelas, e o Tide, o Omo, o Rex, Lys, Pathé, Imperial e o Império, muitos filmes estreados e logo retirados pela PIDE. E os pseudos, ditos intelectuais? – “…A primeira rádio novela era conhecida pelo “teatro Tide”, nome da marca de um detergente em pó que viria a ser destronado pelo Omo. Era um dramalhão de todo o tamanho, emitido depois de almoço”… “Teatro Laura Alves e é hoje loja de roupa), o Pathé, depois chamado Imperial, e mais tarde discoteca… “… a rua dos Condes, onde havia o Olympia e mais adiante o Coliseu; “sessões de verão do Capitólio e do Chiado Terrasse, em plena adolescência”. “…Cinema Estúdio, criado dentro do Cinema Império, e passámos a frequentar os cineclubes que se espalhavam pelo Jardim Cinema, Ávila, Roma, e outros espaços”. “Aparece um festival no Cinema Alvalade, uma sala deslumbrante, é um cinema moderno como o Império, mais pequeno mas muito acolhedor... e me habituo a ler jornais. O Século e o Diário de Notícias, interessam-me os seus suplementos culturais.

Surge a guerra. Diz a mãezinha: – “Tenho dúvidas que tudo isto se vá resolver depressa. Vê se estudas, vê se te aplicas, vê se preparas o teu futuro e tens a profissão que desejas. Nem quero pensar que um dia terás que fazer uma guerra. Nem quero pensar, já tive a minha dose de desgostos e sobressaltos. Os teus irmãos há muito que partiram, estou a envelhecer cheia de doenças, evita-me mais sofrimentos, estuda muito. Não pensemos mais nesta guerra. Oxalá tudo se resolva depressa, e tu fiques a bom recato”. (…).” E pela primeira vez oiço falar de episódios sobre fugas a salto. Os portugueses aventuram-se e passam fronteiras, é a fuga à guerra. O Camarada foca um período com história, repleto de acontecimentos. E é a libertação dos presos políticos em vários locais, neste caso Peniche. Em Janeiro de 1960, com o apoio de um Guarda Republicana fogem Álvaro Cunhal. Francisco Miguel, Jaime Serra, Carlos Costa. E fala de Fátima e ouviu: – “… o pai do Eduardo parecia espumar de raiva: “Ó rapaz, aquilo é um negócio monstruoso. Há um livro do Tomás da Fonseca que desmascara a burla do princípio ao fim. As crianças analfabetas foram induzidas a acreditar que tinham visto uma senhora que se passeava de branco e que era a mãe de Deus. (…).

A velha Livraria Barata, e é apaixonante o que descreve o Mário após ter sido apresentado a Senhor Barata: –“Ainda hoje estou para saber porquê, pedi ao senhor Barata para me vender um livro de Karl Marx, pedi num sussurro, não queria que ninguém mais ouvisse, sei lá se por timidez se por vergonha”.(…). “… E a Índia, o motim em Beja, o Paquete Santa Maria assaltado. Continua, sem esquecer o que afirmou Francisco Canto e Castro: – “… Ah, qualquer dia este regime sinistro vai abaixo, mesmo com a mordaça da imprensa, as pessoas já não escondem o descontentamento! Ah, vem aí a revolução!”. Descubro as reuniões dos católicos progressistas, guardo recato de que assisto a estas reuniões. Numa delas fiquei estupefacto, alguém, em tom compungido, disse que era preciso que os cristãos se manifestassem contra a guerra colonial, Angola não era nossa, era um território de exploração, os naturais tinham direito à autodeterminação.

Os Anos de 61/62 e 63 – Importantes e com história. Mário Beja Santos conseguiu um emprego, mas não esquece a malfadada guerra: “e em 1961, houve quem pensasse que a rebelião em Angola fosse flagelo de pouca dura, em 1962 havia já necessidade de mais efectivos, a guerrilha dispersava, depois, ao nível do topo político, sabia-se que a guerrilha iria explodir na Guiné, cada vez mais unidades militares chegavam a Bissau, a guerrilha eclodiu em Janeiro de 1963…

No Bairro de Alvalade, quando a malta se encontra a primeira notícia que se dá é de que o Zé Manel, o Chico, o Demétrio já embarcaram, ofereceram-se para os fuzileiros. (…). “A febre de cinema e inscrevo-me no ABC Cineclube, no Cineclube Católico, no Universitário, no Imagem, arrasto-me do ciclo Hitchcock para o ciclo Erich von Stroheim e daqui para o ciclo René Clair, é uma euforia contínua. (…).

O encontro de Mário Beja Santos, com o Nelo que narra a realidade daquela guerra. É nisto que num fim de tarde, no verão de 1966, caminhava para casa quando dei de frente com o Nelo”. Foi para os fuzileiros… ”e estava na Guiné, disse-me que tivera 35 dias de férias na metrópole. Fiquei impressionado com o desgaste, o rosto dessorado, a gesticulação nervosa, a fala precipitada, parecia-me ter envelhecido. E convidou-me: “Ainda bem que nos encontrámos, és a pessoa ideal para me ouvir. Preciso de desabafar, vem beber comigo qualquer coisa ali à Nova Iorque, tens de ter paciência e escutar-me”. Não pude recusar, o Nelo era um excelente rapaz, tínhamos um passado comum de brincadeiras de índios e cowboys, pontapés na bola, idas ao cinema naquelas inesquecíveis tardes de domingo, senti que o Nelo tinha coisas para dizer, estava mortinho por desembuchar. E fui, brindámos com uísque o reencontro (“Eh pá, a malta lá na guerra ou bebe cervejola ou um uísque!”), torneei o que me tinha a dizer contando-lhe como levava uma vida sonhadora, na estúrdia de espectáculos sem fim, que entrara num curso universitário mas estava sem pressa. E pela primeira vez vi acender-se o sinal de perigo, o Nelo não teve para mais contemplações, esporeou-me e depois gritou o seu sofrimento: “Olha, antes falar de mim, quero dizer-te que tens que te pôr a pau, ou estudas ou em breve vais malhar com os ossos na guerra. Toma conta do que te estou a dizer, é conselho de amigo. Serás oficial miliciano, mas não penses que é muito diferente da vida de soldado. Provavelmente cabe-te a tropa macaca, ficas metido num quartel lá no mato, talvez com pretos e famílias à mistura, a apanhar uns fogachos e de vez em quando vais fazer umas operações, arriscando minas e emboscadas. Bem podias estudar, fazer o teu curso direitinho, sempre eram mais uns anos de adiamento, talvez esta merda da guerra conheça outra solução. Não sabes o que estou a viver, ser fuzileiro é uma forma de tropa especial, um barco larga-nos de madrugada junto de um arrozal, às vezes enganam-se nas marés, andamos a patinhar na lama até às partes, há gajos que chegam a perder as armas no meio daquele lodo todo, depois avançamos para uma vegetação onde rasgamos a roupa e nos ferimos, e a seguir, se não levamos com uma emboscada nos cornos logo à chegada vamos à procura dos turras, somos capazes de encontrar velhos, mulheres e crianças numas barracas, disparamos rajadas, é um inferno. Levo dez meses nestas operações, aquilo está cada vez pior, os gajos vivem dentro de florestas densas, têm bom armamento e lá têm as suas razões para acreditar naquela guerra. Quando me ofereci como voluntário era só para despachar, até pensei que se ficasse na Marinha teria uma boa profissão. Estou numa grande angústia, pá. Vou voltar e todas aquelas cenas vão repetir-se, desembarques, tiros, morteiradas, bazucadas. E há os nossos mortos e os nossos feridos, não te passa pela ideia o que é trazermos às costas um gajo todo rasgado, tivemos um caso em que um camarada meu só pedia que o matássemos, não queria voltar para a mulher naquele estado. E estou confuso, pá. Aqui ninguém percebe o que andamos a fazer, o que ali penamos, parece que aquelas guerras não existem, cada vez que eu falo na minha vida sinto que as pessoas ficam mal dispostas, parece que eu estou a desencaminhá-las, que aquilo tudo é uma desconversa. Não sabes como é que eu me sinto, faltam-me palavras. Já chega de falar de mim. Cuida de ti, e já agora ficas com o meu SPM, de vês em quando escreve-me, preciso de falar com pessoas a quem eu posso contar o que me vai na alma, dás-me essa ajudinha, prometes?”. Claro que prometi, e até cumpri, dei-lhe um grande abraço, despedi-me do Nelo que seguiu cabisbaixo para casa. Não retive o sinal de perigo que o Nelo me transmitira. Leviano, a saborear as delícias do cosmopolitismo, arredei o espectro da guerra para trás das costas, tudo teria o seu tempo. Acontece que já tinha ido à inspecção militar, ficara apurado para todo o serviço.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

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