segunda-feira, 15 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
É tempo de tirar do limbo uma figura altamente representativa da cultura luso-guineense, Fausto Duarte, escritor singular, divulgador emérito e um desbravador de documentos históricos guardados na poeira dos arquivos. Tinha formação superior e revelou ao longo da sua curta vida uma enorme paixão pela cultura guineense. Impôs a temática logo em "Auá", romance premiado em 1934.
Deixou o seu nome ligado a projetos incontornáveis, os anuários da Guiné de 1946 e 1948 e o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
Merecia ser melhor estudado por portugueses e guineenses.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1)

Beja Santos

Entrei na Biblioteca da Gulbenkian para consultar uma obra sobre património africano, acabei nos reservados a ler uma tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre o escritor Fausto Duarte, documento de leitura aliciante. Fausto Duarte não merecia o injusto silêncio que rodeia hoje o seu nome, foi grande escritor e investigador e deixou uma obra assinalável na Guiné.

A tese de Pinto Bull começa por contextualizar os ambientes de Cabo Verde e Guiné. Fausto Castilho Duarte nasceu na Praia, ilha de Santiago ou em 1902 ou 1903, não se sabe exatamente, era filho de padre. Passou a infância na Praia, foi enviado, concluída a instrução primária, para Lisboa, percorreu vários liceus, o Pedro Nunes, o Passos Manuel, o Camões, o Gil Vicente. Vivia no Colégio Universal, na Calçada de Santana n.º 180. Findo o liceu, inscreveu-se no Instituto Superior de Agronomia onde estudou principalmente Geodesia e Topografia. Em 1928, fez exame final do curso de Topografia e Elementos de Geodesia. Nesse ano viaja para a Guiné e trabalha para um empresário alemão, Frederick Karsten, como agrimensor. Entre 1929 e 1930 trabalha na delimitação das fronteiras da Guiné sob a direção do Tenente-Coronel Soares Zilhão, mais tarde o Governador da Guiné.
Ao percorrer a colónia, entusiasma-se com a natureza luxuriante e caprichosa, deixará as observações das suas descobertas na sua obra, caso dos morros de bagabaga que descreve no livro “Negro sem Alma”:
“A termiteira lembra uma pirâmide egípcia em miniatura. Um é habitação de vivos, outras jazida de mortos, mas ambas são fantasias de arquitectura ciclópica, ambas objectivam encarcerar a sombra e fazer dela o manto de um rei cujo corpo mumificado zomba dos cegos, ou de uma rainha-insecto extravagante – que governa com despotismo, porque perpetua a espécie, porque seu abdómen é um constante viveiro; ambas são ogivas de pedras trabalhadas por gerações inteiras. Numa falta a unidade interior, na outra há a fronteira religiosa. Desfeita a pirâmide, que resta da termiteira? Simples torrões, habitados por insectos que se refugiam instintivamente na treva, porque elas lhes extinguiu para sempre a luz dos olhos”.

Regressa a Lisboa em 1931, casa com Ilda Massano Sereno e volta à Guiné. No ano seguinte, temo-lo novamente em Lisboa onde vem frequentar o Curso Superior Colonial, que termina com brilho quatro anos mais tarde. Em 1934, publica "Auá", que obtém o primeiro prémio de literatura colonial desse ano. Tem 32 anos. Já deram pelos seus dotes Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, faz amizades, uma delas com um distinto médico, o professor Fernando da Fonseca, encontraram-se em Berlim. Nesse mesmo ano de 1934, na Exposição Colonial do Porto faz uma conferência sobre o tema “Da literatura colonial e da morna”.

Segue-se a novela “Um crime” e depois “O Negro sem Alma” e “Rumo ao Degredo”. Em 1936, regressa à Guiné, fora nomeado Secretário-Geral da Câmara Municipal de Bolama. Em 1942, publica “A Revolta”, que obtém o segundo prémio do concurso de literatura colonial. Em 1945, aparecem em Lisboa os contos “Foram estes os vencidos”. De 1946 a Janeiro de 1953, Fausto Duarte participa ativamente na redação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, tem a seu cargo a secção “História da Guiné”. Em 1950, depois de uma longa estadia na Guiné, é colocado no Gabinete de Urbanismo do Ministério do Ultramar. Em 1952, descobre-se que tem um cancro no estômago. Escreve sem parar, nessa época a censura exige-lhe a supressão de parágrafos no seu livro mais recente “Mãe Joaninha”. É operado duas vezes e morre em 1953, com 51 anos.

Inegavelmente que foi o romance "Auá" que lhe deu notoriedade como escritor, a Guiné encontrara um narrador de altíssima qualidade. O tema do romance é o conflito permanente entre duas civilizações, a europeia e a africana, mais precisamente a civilização ocidental e a civilização arábico-islâmica. Quem personifica esse conflito? Entre Malam, jovem Fula, que vem trabalhar para a cidade de Bissau como criado de um casal alemão, e que se vai imbuindo de preconceitos e valores ocidentais, e outro jovem Fula, Abdulai, que permanece enraizado nas suas tradições e convicções. Malam volta à sua terra para casar com Auá que 10 meses depois dá luz um bebé “branco”. Malam rejeita a criança enquanto na povoação todos afirmam que “o filho pertence a Malam porque foi gerado no ventre da mulher que ele escolheu. É uma recompensa de Deus”.

Para o leitor ocidental, esta trama tem o poderoso ingrediente de uma escrita cuidada, que detalha perfis e situações. Mais adiante, dar-se-ão exemplos da cultura europeia deste escritor embevecido com as culturas guineenses onde se mostra com solidez os seus conhecimentos de etnografia e religião islâmica. Benjamim Pinto Bull aventa a hipótese de que este mestiço que tinha orgulho em ser cabo-verdiano e que tinha uma forte atração pelas linhas dominantes da cultura europeia sentia-se vexado pelos preconceitos raciais que experimentou, tendo sido a experiência mais dolorosa a sua visita à Alemanha, num período já de ascensão nazi, que nunca mais esqueceu. A sua resposta foi o desenvolvimento de um processo cultural singular, onde predominava uma linguagem cultíssima, quase de pesquisa laboratorial, e o apego à temática colonial, em diferentes situações. Revelou-se um estudioso de gabarito, qualidades que lhe foram reconhecidas por outros estudiosos, como Teixeira da Mota. O topógrafo transforma-se em homem de secretária e dedica-se a projetos de fôlego, caso de dois trabalhos de indiscutível qualidade como foram os anuários de 1946 e 1948, hoje obras de consulta obrigatória dado o acervo de informações que ele coligiu, apensando imagens elucidativas, muitas delas aproveitadas das edições do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

Vejamos agora como "Auá" é um monumento literário referencial da Guiné colonial. Para o leitor mais interessado, recomenda-se o que sobre "Auá" já se escreveu no blogue:

Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19673: Notas de leitura (1168): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (1) (Mário Beja Santos)

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