1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Janeiro de 2019:
Queridos amigos,
Santos Andrade está agora a fazer recruta, todos a fizemos. Podem dar um contributo aqui para a história do BCAV 490 em verso? Filipe Leandro Martins em "O Pé na Paisagem" lembra as botas da tropa, texto de rara impressividade: "Os dois pares que tínhamos iam sempre brilhar nas formaturas, nas revistas, nas chamadas. Quando as recebíamos elas vinham tão grosseiras que era difícil amaciar-lhes o pelo, bebiam frascos de tinta e latas de graxa, aguentavam escovadelas dementes, duras de roer. Alguns havia que passavam o fim de semana a dar-lhes pomada e a queimar-lhes o pelo. Outros passavam o dia à volta dos dois pares. Eram engraxadores de coração, a graxa entrara-lhes na alma através dos dedos, o prazer que tinham era mirarem-se no espelho das botas, ouvirem elogios do alferes na parada".
Mas mais, muito mais, aconteceu na nossa recruta. Toca a lembrar!
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (2)
Beja Santos
“Missão Cumprida”, de Santos Andrade, é a história em verso do BCAV 490. Foi composto e impresso na Tipografia das Missões, Guiné Portuguesa, em julho de 1965, o que significa que o autor antes de regressar da sua comissão tinha a obra acabada. O bardo conta como vai para a vida militar, como chega a Mafra, passa por Estremoz, fala das desditas das perdas, da vida em Bissorã, da Batalha do Como, da chegada a Jumbembem, fala-se de Farim, Cuntima, Guidage, de operações, muitas, de emboscadas, de armadilhas, de valentia, do retorno a Bissau, há memórias de tudo, apelos sentimentais, até o termo da gesta, com o fado do regresso.
É verdade que há já um conjunto de histórias de unidades militares em verso, creio, salvo melhor opinião, que esta é a primeira que se escreveu na literatura da guerra da Guiné, presta-se a uma homenagem a Santos Andrade, a quem fez parte do BCAV 490 e a quem tanto escreveu, por artes colaterais, incidentais, no que aqui em verso se nomeia. E assim ocorreu um projeto, com algo de mobilizador, ir publicando o que Santos Andrade versejou e lembrar outros autores, dando a possibilidade a muitos, a começar por quem esteve nas fileiras do BCAV 490 a quem tem histórias similares ir depondo ao longo de uma série de transcrições desta tão impressiva “Missão Cumprida”.
Assim, ao encetar o que o bardo conta de si e do seu batalhão, convida-se a que muitos testemunhem e aumentem esta missão cumprida que continuamos a cumprir até que o último dos combatentes entregue em definitivo o estandarte nos labirintos da História. Valeu?
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Santos Andrade já chegou às Caldas da Rainha, começa a vida militar:
Algum tempo se passou
até que cheguei ao quartel.
Dei a guia a um Furriel
que para uma bicha me levou.
Um Soldado me informou
que tinha muito que passar
e eu comecei a admirar
este grande curralão.
Entrei eu nesta prisão
para a recrutar tirar.
Desta vida amargurada
vou-lhes contar um bocado:
até ao juramento de bandeira
andei sempre constipado.
Começámos a instrução
Com todas as impertinências:
aprender a fazer continências:
e a rastejar pelo chão.
Ficou-me de recordação
aquela terra enlameada:
ficar com a farda molhada
e com um frio de tremer
nunca mais me hei-de esquecer
Desta vida amargurada.
Quando toca a alvorada,
tudo sem se levantar.
Às sete horas vai-se formar
p’ró café e marmelada;
às oito horas na parada
já está tudo alinhado
já a corneta tem tocado
para a Companhia avançar.
De tudo o que estou a passar
vou-lhes contar um bocado.
Eu não estava acostumado
à vida militar
Tive que me habituar,
mas vi-me atrapalhado:
uma vez, arregaçado,
passei por dentro duma Ribeira,
caí numa ribanceira,
fiquei todo esfolado,
e andei sempre adoentado
até ao juramento de bandeira
Toda a gente deve saber
que isto é para enrijar
para quando se for lutar
nós já saibamos sofrer
para podermos vencer
quem se opõe ao nosso lado.
Por isso o tempo foi passado
assim com tanto sofrimento
e aqui neste Regimento
andei sempre constipado.
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E de novo veio à tona da memória mais trechos de “O Pé na Paisagem”, de Filipe Leandro Martins:
“Toda a gente estava a pé, o murmúrio tornava-se algazarra, batiam-se portas metálicas sem cuidados na azáfama de chegar primeiro. E nisto acenderam-se as luzes: todos de verde ou quase. Havia quem desistisse de se fardar, olhando para o chão com desânimo ou trocando uma vez mais os atacadores e as fivelas difíceis. Os espertos andavam numa roda-viva, a rir e ensinar.
À porta dois ou três grupos barbeados de fresco e abotoados conversavam e batiam com os pés no chão para assustar o frio. Alguns verificavam nos placardes os horários, listas de nomes, avisos velhos”.
E, mais adiante:
“Depois começou a chamada, milhões de nomes a acertar com números, e a fome a roer. Depois firme. Sentido. Os braços esticados, dedos juntos, olhar em frente. Não mexe. O furriel deu um passo em direcção a nós, perna estendida, patada no chão. Deu meia volta, muito teso. Fez a continência a um homem franzino, enquanto a malta bichanava que era um alferes. O alferes fez um gesto mole em resposta, virámo-nos para a direita e lá fomos a caminho do refeitório, a toque de caixa.
Grandes mesas de mármore, molhadas de gordura, arrastar cadeiras, firme, sentido, sentar, arrastar cadeiras. Café com leite aguado, pão escuro com margarina, mastigar, guardar uma bucha dura nos bolsos. Os monitores começaram a berrar e nunca mais pararam durante três meses, levantar, sentar, marchar, comer, dormir, correr, sair, entrar, lavar, correr, deitar, rastejar, saltar, disparar, limpar, engraxar, marchar, correr, ouvir e calar.”
É sempre bom retornar ao diário do soldado Inácio Maria Góis. É faxineiro na cozinha, tem o condão de nos revoltar o estômago:
“O feijão é retirado de dentro dos sacos, não é lavado nem limpo, leva alguns quilos de sódio para ser cozido mais rápido. As couves são cortadas ao meio e não são lavadas, atiram-nas assim para dentro das panelas, apenas as batatas são lavadas. É por isso que aparecem nos nossos pratos lesmas e lagartas".
E consta do seu diário:
“Aqui nos encontramos aproximadamente mil jovens a tirar a recruta. As suas idades variam entre os 21 e os 22 anos. Na sua maioria são do Alentejo e Algarve e os restantes vêm do Ribatejo, Norte e Lisboa”.
O abaixo assinado Mário Beja Santos deu-lhe para recordar estas facetas e facécias quando escreveu “A Viagem do Tangomau”, recebeu guia de marcha foi da estação do Rossio até à Malveira, daqui até ao convento em autocarro. Foi praxado, como era usual. Cuidara de ir ao barbeiro na véspera, pedira corte a preceito. Na receção, um quarteleiro manganão observou-lhe que levava as tranças compridas, já para o corte, aqui não se quer gente com canos no cabelo, chamam lêndeas, tentou protestar, veio a ameaça do corte de fim de semana, resignado, lá foi para a tosquia.
Como o Santos Andrade depois da recruta foi para Mafra, vamos os dois, a seguir, entrar num certo despique.
(continua)
Escola de Sargentos do Exército, Caldas da Rainha.
____________Notas do editor
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