segunda-feira, 15 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19683: A galeria dos meus heróis (27): Éramos todos bons rapazes!...(Luís Graça)

Luís Graça, CIM Contuboel, c. jun/jul 1968
A galeria dos meus heróis > Éramos todos bons rapazes!...


por Luís Graça


 − E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Chegou a major, ainda a guerra não tinha acabado para nós...

A taça ?!...− ouviu-se a voz do "Vagomestre", que estava com um ouvido atento à conversa do grupinho do "Campanhã", e outro orientado para as graçolas do "Peniche" que assegurava que ainda queria mudar de sexo...

−  Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês…

−  Mas, ó "Campanhã", era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes miliciano Azevedo, transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhou o "vagomestre", tentando, com sua proverbial falta de sentido de humor, deitar água na fervura.

− E, nós, soldados do contingente geral! – ripostou o "Campanhã".

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa!  opinou, por sua vez, o "Pastilhas", agora o "xô dôtor" Andrade.

 Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão, que eu sou um homem do Norte! – vocês até eram uns fidalgotes: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, pretas ou verdianas, de vez em quando, em Bafatá e em Bissau; iam de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do "Campanhã" a vociferar contra os privilegiados dos milicianos que na guerra tinham messe, com direito a comer de garfo e faca, toalha branca na mesa e... criados de libré!... 


Recorde-se que o capitão, um minhoto (de sangue azul, dizia-se, com solar lá na terra, e todo cheio de nove horas), até lhes arranjou, aos impedidos na messe, uma farpela a condizer!... Um deles era o "Peniche", soldado básico, ex-desertor ou ex-refractário, que tinha vindo a "ferros" no Niassa.
 

 Criados de libré, que coisa mais ridícula! − comentou, à nossa mesa, o "Campanhã".

 Dizia o nosso capitão que era para "os senhores oficiais e sargentos se sentirem em casa"...  recordou o Azevedo.

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena aqui citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato, a embrulhar e a foder o coirão!... Mais: alguns milicianos que eu conheci, na tropa e depois na Guiné, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser talvez a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó "Campanhã"! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas ! - interrompeu, de chofre, o Azevedo, que tinha vindo direitinho do seminário para a Máfrica e depois para Lamego.

−  Ó "Campanhã", muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos... - comentei eu, ajudando a cortar o fio à meada do seu discurso torrencial, e sabendo que os primeiros goles da zurrapa do espumante do Zé dos Leitões começava a abrir as goelas da desinibição.

 Cá o Zé Soldado como eu já era chefe de família e há muito que fossava no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam disto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos iguais, brancos e pretos, oficiais, sargentos e praças, que elas no mato não traziam código postal!

O "Campanhã", o nosso valente "Campanhã", o "herói da companhia"!... Era com emoção, com alguma emoção, mal disfarçada, que eu voltava a abraçar, ali na Anadia, num lá longínquo ano de 1991, o "Campanhã", com o seu inimitável sotaque tripeiro e a franqueza que era timbre da boa gente do Norte.


Tínhamo-nos tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia amigos do peito, mas apenas gente que partilhava a mesma condição, o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo bivaque, o mesmo abrigo, a mesma tenda, o mesmo beliche, a mesma cama, o mesmo buraco) nessa longa noite em que viajáramos juntos, de comboio, do Campo Militar de Santa Margarida até ao cais de embarque, em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o "Campanhã" fora-me contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, mas também os seus tropeções, a mim, seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, lucidamente deprimido, à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras 
banhadas pelo Tejo, sonolento e lúgubre, pela calada da noite, e o "quarteleiro" tirava uns acordes sinistros da sua sanfona.

Muitos de nós ainda nos tratávamos pelas alcunhas da tropa. E, em rigor, eu já não me lembrava sequer dos nomes próprios da maioria dos meus camaradas de companhia. O "quarteleiro", por exemplo, sempre o conheci por "quarteleiro" e era um gajo impecável que nos punha a G3 sempre num brinquinho, quando regressávamos do mato, cobertos de pó ou enlameados, a tresandar a merda.

Do "Campanhã", tinha, porém, tomado notas, no meu diário, da sua dura história de vida. Lá em Baião, o último concelho do distrito do Porto, ficava uma infância pobre, e no Porto, em Campanhã, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário da ferrugem. Filho de pequenos rendeiros pobres, cedo pegara na trouxa, num ato de rebeldia contra o "pai e patrão", para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa "ilha" na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa. Tinha um irmão mais velho, operário na CP, que trabalhava na manutenção da via férrea.

 Parti, sem a benção do meu pai, e com a minha mãe em alta berraria, em som estereofónico que era para as vizinhas ouvirem bem... Fui em busca de melhores dias no Porto, já que em casa o caldo, a broa e a pinga mal chegavam para dez bocas. Nem sequer tinha graveto para comprar o bilhete. Viajei escondido num vagão de mercadorias.

 Falas em fome... mesmo, a sério ?   insinuei eu, timidamente.

 Não, vocês, lá na capital, nem sabem o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; o ranço da salgadeira na loja quando eu ia buscar o verdasco; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não. Digamos que passei ...necessidades!... Até ir para o Porto, nunca soube o que era o leite da vaca, nem queijo nem manteiga, nem muito menos cerveja. Nem calças sem remendos. Sabe o que são socas ?

 Não, não faço ideia!

 Tarocas, tamancos, chinelos, um calçado aberto, com um tira de couro por cima e sola de pau... Era o que a gente usava, quando ia à vila ou à escola.
E no Porto, na sua Campanhã (onde ainda hoje mora), zona popular e operária da cidade na altura, faria entretanto a sua "universidade da vida": marçano, barbeiro, trolha, futebolista júnior, empregado de café, barman, "chulo de puta fina" – "azeiteiro, como se diz na minha terra"…  – até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da ferrugem (leia-se: da fábrica).

 "Cães grandes" ?!.. Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, de socas, mas já com pêlo na venta e os tomates inchados, depois de feita a 4ª classe, acompanhava o velho pai na visita anual à Casa da Fidalga, pelo São Miguel, para acertar a renda e renovar o contrato: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista do Supremo Tribunal de Justiça que tinha mais quintas na zona, entre o Marco e Baião, do que eu dedos na mão…


"Cães grandes" era uma expressão que lhe era querida, e suficientemente ampla para nela caber todos os que lhe podiam morder o fundilho das calças e "foder o coirão", do 1º sargento ao oficial superior. Em Santa Margarida, tinha levado uma porrada do "sorja" por evidente abuso do poder do seu superior hieráquico, acrescento eu, que fui contemporâneo dos acontecimentos...


Já não me recordo ao certo que se passou, em Santa Margarida: o 1º sargento era um "chicalhão" de cavalaria e não gozava das simpatias de ninguém, a começar pelos furriéis milicianos... Por outro lado, esperava ir passar apenas umas férias na Guiné, antes de ser chamado para a Escola Central de Sargentos em Águeda. Às praças não perdoava que se esquecessem de lhe bater a pala!... Foi o azar do "Campanhã", para mais "reguila" desde o início da formação da companhia. Andava já debaixo de olho do "nosso primeiro"...

De nada valeram os pedidos pungentes que lhe fizemos, para rasgar a participação. Era um homem inflexível, e irascível, para mais oriundo da arma de cavalaria como o Spínola. E alguns de nós até tinham um certo ascendente sobre ele, começámos, ainda em Santa Margarida, a dar-lhe explicações de português, francês, matemática e outras disciplinas essenciais para uma futuro tenente SGE (Serviços Gerais do Exército)... 


O "Campanhã", que era uma figura popular, acabou mesmo por levar uma porrada, na véspera de ser promovido a cabo, e lá partiu para a Guiné, "com muita raiva", como simples soldado de infantaria. O capitão, que precisava dos bons ofícios do 1º sargento, para mais logo no início da formação da companhia, nada fez para limpar a ficha do "Campanhã", o que causou evidente mal-estar entre alguns de nós , milicianos.

Falava do seu velho pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. A "porrada", injusta, do nosso 1º sargento ainda me dói, e vai-me continuar a doer pela Guiné fora. Fui despromovido, podia ir hoje, no "Niassa", com as divisas de 1º cabo, com toda a cagança e mérito, porque as conquistei com muito suor... Acha justo eu ir comandar uma secção com o reles posto de soldado ?... Nunca lhe perdoarei, àquele "cão grande"...

E prosseguiu:


 As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... As fodas, um gajo vem-se e, ala, moço, que se faz tarde... Qual amor, qual carapuça!... Nunca soube o que era isso.

Não conseguiu disfarçar uma lágrima quando evocou a figura do pai:

 − Veja o meu falecido pai: trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Jó, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro ou cigano sem eira nem beira. Sem saber sequer uma letra, nunca foi à escola, tal como a minha mãezinha que Deus já lá tem, um e outra. Sem nunca ter ido sequer ao Porto visitar-me e ir à Foz, de elétrico, para ver o mar… Nunca viu o mar, o meu velho!... Nem ele nem ela... Conheceu muitos 'fidalgos', como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, uma casa térrea e uns socalcos, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestada, viveu por favor dos que mandavam neste mundo... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila, corrécio, estroina ou pior...Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem. Olhe, até fiz uma filha a uma gaja, menor, com quem fui obrigado a casar...

Recordo estas palavras, ouvidas com empatia, no tal comboio da noite que transportava carne para canhão, no longínquo ano de 1969... Curiosamente, verificava ali naquele almoço de convívio de antigos combatentes, vinte anos depois de "tudo ter acabado em bem", como dizia o safado do Azevedo, que nenhum de nós se desculpava por feito aquela guerra e, muito menos, não de a ter perdido, mas de ter perdido a sua juventude. 

Para alguns de nós, por ventura para a maior parte de nós, agora "despidos e despedidos" (, a expressão era do Oliveira), desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que fomos à inspecção, alcunhados de ex-combatentes do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, "mal amados" (pelo poder democrático do pós-25 de Abril) - "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do "Peniche", o básico, que sempre acabara por ir parar à "vida artística da noite") - , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das nossas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. 

 Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes...- completou, a meu lado, irónico, o mais lúcido de todos nós, o ex-furriel de transmissões, o Oliveira, que era de Coimbra e que, entretanto, se formara em direito.

− Um longo parto, meu furriel, um longo parto! - arrematava o "Peniche", no meio da galhofa geral.- Ainda hei-de ficar grávido e dar à luz, com a ajuda da ciência.

Talvez, eu, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do restaurante do Zé dos Leitões, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar connosco. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a anacrónica, tardia, guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas não, nenhum dos presentes levantara o copo de espumante para gritar "Viva ou Morra" !...

 Éramos todos bons rapazes! 
 confidenciei eu para os meus botões...

É que todos fazíamos o jogo da cumplicidade e da camaradagem, jogo cujas regras tacitamente ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabíamos que nunca mais voltaria a repetir-se, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irmos comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Azevedo, "agora autarca do poder local democrático" e empresário do setor agroalimentar).

 Para o ano em França de Bragança, camaradas!... São todos meus convidados!

 Eu já lá pus os butes, na França de Bragança, na quinta do Azevedo, e bibu no Porto, é longe como o carago!... O nosso alferes faz o favor de continuar a ser meu amigo e camarada - ironizou o "Campanhã" que continuava, amiúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul.

No fundo, sabíamos que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, imperceptíveis, do futuro no século XXI que se aproximava a passos de gigante, deveriam perturbar este insólito e fugaz encontro de umas escassas dezenas de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do almoço e depois de uma nova rodada de uísques (de duas Old Parr de 1970 que o vagomestre trouxera de lembrança, daqueles ainda com a etiqueta "From Scotland with love to the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto (ou o azar) de evocar os mortos da companhia...

 Agora é que foderam tudo! – exclamou, desolado, o "Campanhã".

Nunca conheci nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: nenhum ator, nenhum pantomineiro, com lágrima tão fácil como a dele...Ele e o "Peniche" eram verdadeiros "artistas" da palavra e do sentimento, nunca se sabendo ao certo quando falavam "a sério" e abriam o "livro"...


Foi o primeiro encontro da companhia, depois do regresso da Guiné, não foi fácil descobrir nomes, endereços e telefones...E juntar "boas vontades". Faltou muita gente, a começar pelo ex-capitão, ainda no ativo, agora na Guarda Fiscal ou na GNR, ninguém sabia ao certo. E alguns disseram ao organizador: "Guiné, meu ?!... Nunca mais!"...

Estavam presentes sobretudo alferes e furriéís e outras tantas praças, primeiros cabos e soldados, sobretudo do Centro e Norte. Ao todo uns quarenta e picos, cerca de um quarto da companhia. O "vagomestre", de alcunha, o "Unhas de fome", fora o organizador. Era de Aveiro, e tinha agora uma empresa de contabilidade ligada ao setor das pescas. O Oliveira, o "transmissões", esse, ia fazendo pela vida, sendo assessor jurídico de uma poderosa federação de sindicatos, ligada à CGTP-IN.

Por seu turno, o "Pastilhas", a quem fazíamos tropelias no nosso "bunker" feito de troncos de cibe, chapa de bidão e terra, era agora tratado com outra deferência: conseguira, logo a seguir ao 25 de Abril, entrar em medicina, feito o exame "adhoc"... Concorrera para saúde pública e era médico do trabalho numa fábrica de montagem de motores para automóveis.

O "Campanhã", esse, ninguém sabia ao certo o que fazia agora: mas apresentava alguns sinais exteriores de riqueza, a avaliar pelo BMW (, "em segunda mão, nada de insinuações!",)com que viera do Porto, com 
mais dois ou três camaradas "da corda". Eu, ainda continuava, infeliz e mal pago, num jornal diário, onde trabalhava como jornalista, desde os tempos de Saramago. 

O único que tinha "subido na vida" era, na realidade, o Azevedo, autarca social-democrata e empresário (deu-me o cartão de visita, que guardei, faço coleção, tenho centenas de cartões de gajos que têm subido na vida)... E o "Peniche", esse, continuava a ser o mesmo "básico" de sempre, o "bobo da companhia", mas agora talentoso e popular artista de circo. Não sei como ele nos descobriu, ou se fomos nós que o descobrimos...

Falou-se pouco da guerra. E de mortos e feridos. E de minas e armadilhas. E de emboscadas. E de ataques e flagelações ao quartel e aos destacamentos da companhia,que era de quadrícula. E de prisioneiros e de interrogatórios de prisioneiros... Havia um lado "sujo" da guerra que ninguém queria relembrar, pelo menos naquela hora e lugar. E eu, ingénuo, descobri que, nestes convívios, só se falava das coisas boas da guerra, as tainadas, as bajudas, as lavadeiras, as anedotas...

Por outro lado, nenhum destes "bravos da Guiné" fora condecorado por feitos em combate, à exceção do "Campanhã" que, esse, sim, tivera uma cruz de guerra do Spínola depois de, "em luta corpo a corpo", ter "limpo o sebo" a um roqueteiro do PAIGC que, atrás de um bagabaga, se preparava para arrancar a cabeça do Azevedo. 

Esta foi, pelo menos, a versão do Azevedo que, sendo o segundo comandante da companhia e o comandante da operação, fez o relatório do sucedido e foi, em abono da verdade, advogado em causa própria... (Sendo embora um bom operacional, gostava sempre de ficar bem na fotografia!)


O "Campanhã" fazia parte da 2ª secção do 1º Grupo de Combate, que era comandado justamente pelo "ranger" Azevedo. O "Campanhã", que era reconhecidamente um grande operacional, um "chanfrado dos cornos", também manteve sempre ess versão oficiosa que alguns, talvez "mais invejosos", consideravam "fantasiosa"... Eu não posso confirmar ou infirmar os factos que ocorreram nessa operação. Estava com paludismo nessa ocasião, safei-me desse embrulhanço mas não de outros, que não foram melhores. Era o comandante da 3ª secção. Andávamos sempre na frente.

E eu era o único furriel do 1º pelotão. Os outros dois foram mais espertos do que eu, e procuraram outros ares. Não apareceram no convívio, para meu conforto e minha tranquilidade de espírito. Não tinha mesmo vontade nenhuma em revê-los, sobretudo ao Pires, que desertara, aproveitando a licença de férias na metrópole, em 1970, segundo notícia que nos deu depois o capitão, e que nos deixou, a todos, "descolhoados"... Nada o fazia prever, nem nunca ele tinha dado a entender que o poderia fazer... Para todos nós, o Pires era o exemplo do mais que improvável desertor...

De qualquer modo, sempre achei que a cruz de guerra, com mais ou menos água benta da caldeirinha do padreco do Azevedo, ficava bem no peito do bravo "Campanhã".

Ao que parece, a 1ª secção do 1º grupo de combate já estava na "zona de morte" de um grupo IN emboscado, com o Azevedo e o nosso guia Jero à frente. O "Campanhã", que vinha com a 2ª secção, viu o tubo do RPG2 a sair do bagabaga, com a granada pronta a disparar.

 Parecia um c... das Caldas, a sair do forno, a passo de caracol. Só tive tempo de gritar: 'Todos pró chão, seus c...!', e disparar uma rajadada, a matar, sobre o vulto que estava por detrás do bagabaga. Despejei-lhe um carregador em cima do bucho!...


Não terá havido nenhuma luta corpo a corpo. Mas quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... O "Campanhã" recuperou apenas o RPG2 com a granada e salvou a secção do Azevedo de um massacre. Este ficou-lhe reconhecido para o resto da vida... Ainda hoje são amigos e o "Campanhã" é visita da sua casa em Bragança... No relatório, redigido e assinado pelo Azevedo, "o IN teve várias baixas, uma confirmada e 3 estimadas, pelos rastos de sangue"...


Lembro-me do gozo interior, e do ar sereno, do "Campanhã", quando recebeu, de peito inchado, a cruz de guerra e o capitão lhe voltou a pôr as divisas de 1º cabo, no 2º ano da nossa comissão, já o "nosso primeiro" tinha seguido para a grande escola de guerra de Águeda...

 Tenho pena que esse "cão grande" já não esteja aqui entre nós... Fazia questão de lhe enfiar a cruz de guerra pelo cu acima e depois mandar-lhe uma traulitada direta à caixa dos fusíveis ...- disse-me ele ao ouvido, no gozo. 


Naturalmente que eu desculpava-lhe este lado de fanfarrão a que também têm direito os heróis de guerra. Confesso que conheci muito poucos: o "Campanhã" foi um deles e o Azevedo nunca chegou a sê-lo, com muita pena dele. "Herói ou santo", era o lema de vida do Azevedo, já do tempo de menino e moço. Nunca foi uma coisa nem outra, e soube, entretanto, que infelizmente já morreu há dois ou três anos... A vida prega-nos destas partidas. De resto, nunca mais estivera com ele depois do convívio na Anadia, em 1991.

Mas, em verdade, nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam ter existido: afinal, perdemos a guerra, justamente por falta de heróis improváveis como o "Campanhã". Não foram heróis, não se consideravam heróis, eram apenas bons rapazes que, agora, no ocaso da vida, se juntavam para comer e beber, e matar saudades do tempo perdido. Em todo o caso, qualquer semelhança com a realidade é sempre, nestas histórias de guerra e paz, pura coincidência.

Revistro: 24/11/2022
________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19647: A galeria dos meus heróis (26): Aquele rapaz de Cinfães que queria ser pintor em Montmartre (Luís Graça)


Alguns dos postes da série, mais recentes (2019/2018):

23 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19614: A galeria dos meus heróis (25): E na hora da nossa morte, ámen! (Luís Graça)

9 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19564: A Galeria dos Meus Heróis (24): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - II (e última) Parte (Luís Graça)

8 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19563: A Galeria dos Meus Heróis (23): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - Parte I (Luís Graça)
12 de fevereiro e 2019 > Guiné 61/74 - P19491: A Galeria dos Meus Heróis (22): O "Duque de Palmela" ou o pão que o diabo amassou - II (e última) Parte (Luís Graça)

11 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19489: A Galeria dos Meus Heróis (21): O "Duque de Palmela" ou o pão que o diabo amassou - Parte I (Luís Graça)

23 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19431. A Galeria dos meus Heróis (20): - A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (III e última Parte ) (Luís Graça)

22 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19428: A Galeria dos Meus Heróis (19): A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (Parte II) (Luís Graça)

21 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19426: A Galeria dos Meus Heróis (18): A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (Parte I) (Luís Graça)

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes! (Luís Graça)

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)


9 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19085: A galeria dos meus heróis (10): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) Parte (Luís Graça)

9 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19084: A Galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)


24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)


4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tenho ideia que, no TO da Guiné, sabia-se fazer uma clara distinção entre um "porrada" justa, merecida, à luz do RDM, e uma "porrada" arbitrária, desproporciniada, injusta, resultante do uso e abuso do poder dos superiores hierárquicos...

Nestes casos, as "vítimas" eram tentadas a "fazer justiça pelas suas próprias mãos"... Sabemos que houve casos de vinganças, algumas acalentadas durante meses e meses, á espera de uma oportunidade...

Não sei o que poderia acontecer se o 1º sargento desta história não tivesse regressado à metrópole, três ou quatro meses depois da chegada...O "Campanhã" que eu conheci era gajo para lhe dar um tiro, pela calada da noite, dentro ou fora do arame farpado... Mais dentro do que fora, que os "nossos primeiros" não gostavam lá muito de sair do quartel... LG

Valdemar Silva disse...

Luis
Mais um interessante texto da tua 'Galeria dos meus heróis'.
A propósito de socas/socos, tarocas(mulher) e tamancos, tudo calçado aberto no calcanhar feito com uma base de madeira e cobertura de couro simples, também havia as chancas.
As chancas, também com base de madeira e a parte superior em couro, eram fechadas tinham atacadores de couro e ultrapassavam os tornozelos, como se fossem umas botas de pau e couro.
Os holandeses, principalmente fora das cidades, ainda usam os seus socos para se deslocarem nos quintais que depois os deixam à porta da casa.
Ab.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O "verdasco" que se bebia na época, na casa dos rendeiros pobres do Minho e do Douro Litoral, era o "vinho tinto verde", feito de Jacquet (ou Jaquê), um produtor direto, de baixa graduação alcoólica, que mal chegava a maio do ano seguinte... Uma autêntica "zurrapa"... Felizmente que é hoje proibida esta casta híbrida, na região do Vinho Verde...

Nessa época, mal se conhecia do vinho verde branco... E mesmo o que bebíamos na Guiné, engarrafado, e que era vendido a preço de ouro, era vinho branco "leve", da Estremadura, Oeste, "martelado", isto, gaseificado, e vendido com rótulos de vinho verde, de algumas marcadas conhecidas... Muita aldrabice se fazia nessa época, muita gente ganhou bom, dinheiro com o "vinho para o preto"... O preto éramos nós, que tínhamos o patacão da guerra...

Valdemar Silva disse...

Pois, no tempo da vida barata havia dessas guloseimas e, afinal, o vinho dava de comer a milhões de portugueses. Aos de cá e de além mar.
Mas, deixemo-nos de ironias com coisas sérias e verdadeiras.
Já agora, que dizer das sopas de cabalo cansado? (ou cavalo, como dizemos cá pra baixo). Tratava-se de um hábito alimentar enraizado no norte de país.
Dizia-se que estas sopas com vinho e açúcar se davam aos animais, que os deixavam mais refrescados e cheios de energia.
Depois, em tempos de abundância de alimentos davam aos filhos na primeira refeição do dia, para as crianças enfrentarem o dia de trabalho. Em casa de pobres com o verdasco quente e broa de milho e em casas dos ricos (?) faziam-se com vinho verde tinto, mel, gema de ovo e pedaços de pão.
Agora, 'Sopas de cavalo cansado' virou em festival gastronómico.

Valdemar Queiroz

P.S. Estas 'Galerias dos meus heróis' dão sempre pano pra mangas.