1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do
BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
As minhas memórias de Gabu
Recordando o saudoso camarada Damásio
Camaradas,
Lancei, há tempos, no nosso blogue - Luís Graça & Camaradas da Guiné - um tema onde falo da fatídica morte do soldado Damásio.
Não vou exceder-me em considerações sobre o trágico acontecimento, entendo sim como preferível voltar a recolocar parte do meu texto, acrescentado agora uma obra cuja narração refere o horroroso caso.
Tudo se prende com a chegada à minha mão do livro “HERÓIS LIMIANOS da Guerra do Ultramar” cujo autor é Mário Leitão, um dos nossos companheiros nestas lides bloguistas, precisamente num espaço que é de todos e para todos,com o qual tive oportunidade em almoçar a seu lado no último convívio anual que teve lugar em Monte Real, aliás, como vem sendo hábito.
A minha convicção é que todos temos direito a imitar opiniões pessoais e comentar textos, mas alertando que “a perna não deve ir para além do lençol”.Digo bem “chefe” Luís Graça?
A possibilidade em introduzir este tema surgiu quando o meu amigo de longa data Manuel Lourenço Casteleiro Góis, um ex-furriel miliciano que passou, também, como camarada de armas pela Guiné, me falou de um livro que tem em seu poder e que refere em determinado momento o meu nome.
O Mário Leitão, farmacêutico e professor aposentado, faz uma descrição de mortes de vários camaradas limianos que morreram na guerra do Ultramar e lá está o meu companheiro Damásio.
Refere camaradas com os quais lidei diariamente no interior do arame farpado. Fala do processo de averiguações conduzido pelo alferes Santos, sendo o escrivão o furriel Dias, um rapaz de Setúbal, e adianta os nomes das testemunhas ouvidas.
Na página 97 lá está o nome do furriel Saúde que por determinação do QG de Bissau se encarregou de prestar assistência à família. É verdade. Mas adianto mais: todo o espólio angariado foi da minha inteira responsabilidade. Reuni literalmente todos os seus bens pessoais entregando-os depois ao capitão Rijo, comandante da nossa companhia.
Com a devida vénia ao Mário Leitão, reproduzimos uma pequeníssima parte do livro “HERÓIS LIMIANOS da Guerra do Ultramar” do qual é autor, onde refere a morte do soldado Damásio e a angústia de uma família que se deparou com a infeliz notícia.
Obrigado Mário pela tua gentileza.
“Foi socorrido momentos depois pelo médico militar Dr Amílcar Silva de Nobre Neto, que se encontrava na placa de estacionamento a preparar as referidas evacuações, quem declarou o óbito.
O processo de averiguações, conduzido pelo Alf Mil Cav Manuel Ribeiro dos Santos e assistido pelo escrivão Fur Mil SAM Leonel Vicente de Jesus Dias, teve como testemunhas : 1.º Cabo José Augusto Oliveira, 1.º Cabo Armando Fernandes Alves de Sousa, 1,º Cabo José Luís de Magalhães Pacheco, Sold Manuel Marques Rodrigues, Braima Daimô (civil, condutor da firma TECNIL) e José André Dias (civil). O Fur Mil José Romeiro Saúde foi encarregado de prestar assistência à família, por determinação do QG de Bissau.
O Relatório de Cerimónias Fúnebres do CTIG, datado de 25 de Abril de 1974, refere que nesse dia, na Casa Mortuária do Hospital Militar de Bissau, foram prestadas homenagens a três militares: Fur Mil José Manuel Augusto Rosa (CCaç 3545/BCaç 3883), Sold Damásio Cervães e Sold Manuel Agostinho Mendonça Oliveira (CCaç 4150). “Após a velada de armas foi celebrada Missa de Corpo Presente e seguidamente as urnas foram transportadas, cobertas com a Bandeira Nacional, para a Casa Mortuária do Cemitério de Bissau”, estando presentes oficiais do Batalhão de Intendência, do Hospital Militar, do Comando-Chefe e Senhoras do MNF.
Sua irmã Marinha Fernandes Cervães, então com 18 anos, estava hospedada em casa de uma senhora, na Rua da Junqueira, quando trabalhava na Marinha, na Cordoaria Nacional (extinta em 1974). Alguns dias depois do desastre chegou um carteiro a sua casa com um telegrama. “Isto não é para mim! Não, deve ser para a senhora da casa! Não, é mesmo para a menina!” Foi um diálogo curto, com o carteiro a fugir. De repente a jovem caiu em si. Percebeu o sentido dos sonhos que a atormentaram durante a semana, especialmente aquele em que o irmão lhe dizia que só ela o poderia salvar. Vagueou durante horas em lágrimas pelas ruas de Belém, até que foi para a casa. A senhoria levou-a ao comboio. Para trás deixou na modista um vestido que andava a provar, que ficaria guardado para a festa da chegada do Damásio. No comboio foi confortada por um jovem, que lhe partilhou a dor pessoal por ter perdido um irmão no Brasil. Adormeceu durante a viagem e quando acordou sentiu que tinha ouvido a voz do irmão pedindo-lhe que tivesse força, porque os pais precisavam dela.
Quando entrou em casa, na Lacada, seu pai estava sentado na cozinha, a chorar. “Era eu que devia ter morrido! Não o meu filho!” Repetia sem cessar essas palavras, exausto de tanto chorar. A mãe estava no quarto, deitada e aos gritos, sem querer ver ninguém. Marinha, cheia de força, contou-lhe pouco a pouco sobre a voz do irmão que ouvira no comboio. Foi surpreendente! Lentamente a mãe foi deixando o torpor em que se encontrava, abriu os olhos e abraçou a filha, tentando posteriormente animar o marido. Outro telegrama havia chegado a Lacada, trazido por um carteiro apressado que viera de bicicleta entregar uma morte ao domicílio, como já tantas vezes fizera. Lucinda, irmã mais nova de Damásio, conta-nos como foi: Quando a tristeza se abateu sobre a nossa casa (caixa),
No ano de 1974, tinha eu 7 anos de idade, era a mais nova de 4 irmãos. Os meus pais eram pessoas simples, agricultores que trabalhavam arduamente para terem o seu sustento. Nesse ano de 1974 só eu me encontrava a viver com os meus pais, pois meus irmãos já estavam a começar as suas vidas de adultos: o meu irmão mais velho encontrava-se na tropa, na Guiné; o segundo já estava casado e até já tinha dois gémeos; e a minha irmã estava a trabalhar em Lisboa como funcionária da Marinha de Guerra. Só eu estava em casa com os meus pais, frequentando a escola e ajudando-os conforme a minha condição de criança permitia.
Num determinado dia de 1974, a minha mãe estava a trabalhar num campo perto de casa, quando cá chegou um senhor que se identificou como sendo dos Correios. Trazia um telegrama para a minha mãe e pediu-me que eu a chamasse, dizendo-me, entretanto, para eu assinar um papel. A minha mãe chegou e perguntou: – “Que se passa!? Não gosto nada de receber telegramas!”. O senhor respondeu-lhe, simplesmente: - “Minha senhora, o seu filho morreu, na tropa”.
Nesse instante, o mundo desabou para a minha mãe. Esqueceu tudo que a rodeava, ficando tolhida, apática e esquecendo-se até de mim, que ali estava ao seu lado, a olhar para ela sem saber o que fazer nem o que se passava. O homem só dizia para mim: -“Assina! Assina!”.
Depois de ele ir embora, a minha chorava descontroladamente e gritava como eu nunca vira. Eu não entendia o que se passava. Levou muito tempo até eu compreender realmente tudo, o que era natural, pois só tinha 7 anos.
Cá em casa nunca mais foi a mesma coisa. Nunca mais houve festas de família e eu não tenho nenhumas recordações do Natal da minha infância, porque, havia sempre a lembrança de meu irmão.
Eu cresci sempre a ouvir os meus pais, os meus irmãos e os amigos a falarem do que ele gostava. Tenho poucas memórias dele, pois era 16 anos mais velho do que eu. Mas como sempre ouvi a minha mãe a falar dele acabei por o conhecer melhor, criando uma imagem mental das suas feições, da sua maneira de ser e da sua vida.
E deste sofrimento familiar, tudo veio! Todos os problemas de saúde que minha mãe sofreu pela vida fora foram derivados desse triste acontecimento. E com o meu pai aconteceu o mesmo, pois o desgosto abalou para sempre a sua saúde.
Já estão os três juntos, na Eternidade! E sei que onde o meu irmão Damásio, a minha mãe e o meu pai estiverem, se encontrarão em paz e serenos, pois sabem que alguém está a deixar a lembrança de um filho querido que morreu na tropa.
Por isso, um bem hajam a todos os que estão envolvidos neste projecto, porque não se esqueceram destes Heróis Limianos que perderam as suas vidas em defesa da Pátria. O meu muito obrigado!
a) Lucinda de Jesus Fernandes Cervães
Foram dois pais sofredores, que tiveram que andar pelos médicos ao longo das suas vidas, porque socos no estômago desta violência afectam irreversivelmente os nossos cérebros e, por tabela, abalam todos os sistemas orgânicos. A Medicina sabe bem o que é o stress pós-traumático e conhece as suas consequências psicossomáticas. Os governantes é que não. Está sepultado em Estorãos”.
Damásio (à esquerda) com o enfermeiro Dinis no navio Niassa a caminho da Guiné (foto do saudoso Dinis retirada do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)
Aquela morte estúpida na pista de aviação
Damásio, até sempre!
Diz-nos o teor da veracidade do BART 6523 que nos 14 meses de comissão em território da Guiné, o seu efetivo não registou baixas em combate. É certo que o período normal de incumbência das nossas tropas naquela antiga província ultramarina ia para além deste ciclo, porém, a Revolução de Abril de 1974 acelerou o regresso do nosso exército das três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné - com as quais Portugal estava envolvido.
O meu Batalhão, sediado em plena região de Gabu, não obstante os ataques noturnos, particularmente às companhias destacadas no mato – Madina Mandinga e Cabuca -, teve a sorte em não se deparar com eloquentes baixas resultantes de confrontos diretos com o IN, nem tão-pouco deparar-se com rebentamentos das famigeradas minas antipessoais ou anticarros que originavam efetivos para abater nas contas do exército português. As operações feitas no terreno passaram isentas de eventuais baixas que serviam para engrossar a lista de infelizes que perderam a vida em pleno campo de batalha.
A manhã destinou-se para receber correio, transportar feridos que normalmente chegavam a Nova Lamego e receber mantimentos frescos vindos de Bissau. O Damásio integrou o grupo de jovens soldados e lá partiu feliz da vida na esperança que a sua presença na pista seria certamente útil. Predispôs-se em ajudar e tomar conhecimento de camaradas que partiam para Bissau mas na condição de evacuados.
Porém, sem que nada o fizesse prever o nosso camarada Damásio foi colhido por uma das viaturas e teve morte imediata. O instante foi de dor e de extrema revolta. Ficámos estupefactos e a rapaziada exausta. Lembro o seu corpo inerte num chão vermelho mas onde as lágrimas de camaradas lançavam laivos de raiva numa guerra onde a imprevisibilidade da morte era uma constante.
Não foi fácil lidar com a situação. O Damásio era um moço educado. Fazia amigos, facilmente. Eu fui um deles. Sei que guardei durante vários anos um documento onde tinha descriminado todas as suas pertenças pessoais que na altura tinha como destino os seus familiares. Nada faltou. Lembro-me desse derradeiro adeus. O choro dos camaradas que o viram partir para a eternidade. Um jovem que vivia, certamente, um mundo de sonhos.
Senti o vazio nas almas que se abateu sobre os seus familiares. Como explicar-lhes tamanha fatalidade! E nós, homens que convivíamos com ele diariamente, lá longe sem nada podermos transmitir aos seus entes queridos. Impunha-se aconchegar o seu profundo desespero, mas a distância ditava, apenas, o carpir de mágoas pelo seu infeliz último adeus. Ficavam as despedidas mas estas integradas na sumptuosidade de amarras que nos atiravam meramente para um profundo silêncio.
O Damásio ficou-me perpetuamente na memória. Até sempre, camarada!
Conclusão: como foi dura a guerra do então Ultramar!...
Um
abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: ©
Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último
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