segunda-feira, 28 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22323: Notas de leitura (1363): “As Voltas do Passado, a Guerra Colonial e as Lutas de Libertação”, organização de Manuel Cardina e de Bruno Sena Martins; Edições Tinta-da-China, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Trata-se de um projeto científico pertinente e não hesito em dizê-lo original, pelas opções temáticas que foram tidas em conta: a partir das datas marcantes da luta anticolonial, dezenas de autores de diferentes áreas de conhecimento puseram-se a questionar a História e o legado desses tempos de mudança. Denunciam-se mitologias e o mais importante é que aqui se esboça um outro modo de contar a memória de uma guerra que se viveu em muitos teatros e que ainda hoje nos contagia pelo cotejo de críticas ideológicas. É por isso uma leitura a que não nos devemos furtar.

Um abraço do
Mário



As voltas do passado, a guerra colonial e as lutas de libertação

Beja Santos


“As Voltas do Passado, a Guerra Colonial e as Lutas de Libertação”, organização de Manuel Cardina e de Bruno Sena Martins, Edições Tinta-da-China, 2018, é uma detalhada evocação, em voz plural, de acontecimentos influentes, eventos selecionados que, como justificam os coordenadores, “têm em comum o facto de terem produzido um lastro memorial presente em discursos e monumentos públicos, em mobilizações sociais, em apropriações políticas. Escolhemos 47 eventos que, tomados em conjunto, podem ser vistos como partes de um caleidoscópio ainda vivo”

É uma tentativa historiográfica para ler um outro modo de contar Portugal e as diferentes nações africanas emergentes da luta anticolonial. Daí o leitor ter oportunidade de recordar em sequência cronológica eventos como o Massacre de Batepá, em São Tomé e Príncipe (1953), o início da vaga de prisões de militantes nacionalistas em Angola e o Massacre do Pidjiquiti, em Bissau (1959), o Massacre do Mueda, Moçambique (1960), a revolta camponesa na baixa de Kasanje, Angola (1961), até ao 25 de Abril, onde terão peso acontecimentos como a libertação dos presos políticos do Tarrafal, a fundação da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, o fim do exercício Alcora, as independências de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola e a ponte aérea da TAP, em 1975. 

Obviamente que há textos de bom quilate e outros que não deixarão memória, escritos em água chilra, acontece. Michel Cahen deixa-nos um texto muitíssimo bem elaborado sobre o Massacre do Mueda, em 16 de junho de 1960. É cortante e denunciador da muita mistificação sobre a propaganda de Mueda. O governador de Cabo Delgado não atinou com as razões de fundo que traziam de volta os Macondes à região, eles voltavam para Moçambique porque a independência do Tanganhica os inquietava, na medida em que os fazendeiros europeus do sisal, sob pressão dos sindicatos, tinham aumentado os salários e já não necessitavam de mão-de-obra estrangeira. E escreve Michel Cahen: 

“Não vinham para pedir com clareza a independência, e ainda menos a independência de Moçambique, mas a liberdade para voltarem livremente à sua terra. Pode-se perfeitamente chamar a isto nacionalismo, mas não era nacionalismo moçambicano”

Referindo-se à tese de outra investigação baseada na memória oral, ele trabalhou principalmente com fontes arquivistas coloniais e fontes orais portuguesas. E termina o seu texto de forma primorosa, lembrando que há equívocos que bem retorcidos ganham foro de lenda ao serviço dos poderes do dia:

“Os arquivos coloniais veiculam a narrativa do colonizador. Mas têm uma vantagem: não mudam. Além disso, os atores coloniais que entrevistei nos anos 1980, um após outro, nunca mais tinham vivido em Mueda. Encontrei obviamente várias contradições nas suas narrativas, mas pude confrontá-las. E também utilizei fontes orais africanas.

Não é uma questão de saber ‘quem tem razão’. Este debate é muitíssimo interessante e deverá ser aprofundado. Trata-se, no fundo, de conhecer as condições de produção da memória. Condensarei essas linhas citando este pequeno debate que tive, em 2000, com uma testemunha africana da tragédia de 16 de junho de 1960:
- Houve muitos mortos?
- Sim, muitos! Foram 16!
- Ah! Pensava que eram 600…
- Sim, depois recebemos a orientação de que eram 600.


Marcelo Bittencourt, relativamente aos ataques em Luanda, em 4 de fevereiro de 1961, também adota uma versão que procura remover a poalha da propaganda e a apropriação da aura dourada de quem vem invocar que é o personificador do evento:

“O fator mais importante na vinculação do 4 de fevereiro ao MPLA é o ingresso dos principais protagonistas da ação na legenda, após a detenção destes, como consequência da contraofensiva colonial que se instala em Luanda. Não tiveram de fazê-lo antes da ação que inaugura a luta de libertação angolana. O MPLA havia começado o processo de estruturação da sua rede clandestina em Luanda, no início do ano de 1960, mas passados alguns meses uma nova onda de prisões iria encarcerar seus líderes, como Agostinho Neto e Joaquim Pinto de Andrade.

Desta forma, o 4 de fevereiro é o primeiro e último ato insurrecional, violento e anticolonial a refletir essa constelação de organizações clandestinas ainda muito ligadas aos seus vínculos elementares de solidariedade, fossem eles o bairro, a profissão, a família, a escola ou a associação cultural aos quais estavam ligados. Ou seja, a luta no terreno da história e da memória entre as duas principais forças políticas do nacionalismo angolano nos anos de 1960 parece ser o melhor caminho para entender a gestação e o posterior embate pela paternidade do 4 de fevereiro”
.

O leitor passa a dispor de um conjunto de referências sequencialmente cronológicas, conhecer a criação do Movimento Nacional Feminino, a fuga de cem estudantes das colónias, a revogação do Estatuto do Indigenato, a criação dos Comandos, a Operação Tridente, o início da luta armada em Moçambique, o encerramento em Lisboa da Casa dos Estudantes do Império, Cabral na Conferência da Tricontinental em Havana, em janeiro de 1966, o I Congresso da UNITA, a criação em Cuba das Forças Armadas de Cabo-Verde, que acabarão por ser desviadas para a luta armada na Guiné, o assassinato de Eduardo Mondlane, a Operação Mar Verde, a morte de Josina Machel, o Massacre de Wiriamu, o assassinato de Amílcar Cabral (que o autor erradamente fixa pelas 20h30 de 20 de janeiro), a tomada do quartel de Guilege, a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, o fim do exercício Alcora, a independência de Moçambique, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe e depois de Angola.

De leitura obrigatória para quem pretenda aprofundar o conhecimento do período correspondente à guerra colonial. Haverá textos que vão ficar como referência.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22303: Notas de leitura (1362): “Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto; Rosa de Porcelana Editora, 2018 (Mário Beja Santos)

8 comentários:

Anónimo disse...

Está na hora, já é tempo de perder os complexos que se andam a desenvolver por estudiosos que enveredam pelo "politicamente correto", deixando para traz, escondendo mesmo, ou fechando os olhos criminosamente, àquilo que quase todos continuamos a fechar os olhos que foi o abandono e esquecimento dos muitos milhares de soldados africanos, que lutaram ao nosso lado e não foi reconhecido por Portugal o seu labor sem o qual não aguentaríamos nem um ano, quanto mais aqueles treze anos que a guerra durou.

Não foi apenas o esquecimento dos soldados africanos, que deveriam receber alguma protecção e alguma compensação, mas também imensos sobas e régulos, que afrontando abertamente os movimentos de libertação, em que não acreditavam, e tinham imensa razão que o futuro demonstrou, se puseram ao lado dos governadores portugueses, mas que foram "cuspidos" borda fora por Portugal, sem lhe ser prestada a mais pequena satisfação.

Os historiadores nossos contemporâneos, sejam portugueses ou sejam afro descentes, não podem esquecer estas maiorias de que nós aqui neste blog testemunhámos, uns mais outros menos.

E hoje em Portugal, principalmente na área de Lisboa, onde se abrigam muitos afro descendentes, que fique testemunhado que a maioria desses portadores de BI português, poucos serão os descendentes daqueles aliados dos portugueses, que "perderam", mas mais daqueles que "venceram", pois as filhas destes ficaram com mais possibilidades financeiras para virem na TAP dar â luz na maternidade Alfredo da Costa.

Os anos vão passando, e a Europa, mas no caso Portugal, continua com imensa vergonha de contar as independências africanas no seu todo.

Alguém acredita que se a maioria dos africanos acreditasse nos seus independentistas, a guerra duraria mais dias do que durou a guerra da India contra o Neru?

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Assino por baixo.

AMM

António Martins Matos disse...

Apareceu como anónimo, sorry.

AMM

Anónimo disse...

Pois é António Rosinha, como sempre escreves desasombradamente preto no branco, passe o termo (falo de escrita) mas isso ninguém quer ver.E não é só o caso da Guiné.De Angola que é um país rico só para alguns e de Moçambique continuam a afluir os mesmos filhos dos então vencedores, quer para estudar quer para serem tratados nos hospitais e até para viverem aqui.Falhanço total dos seus lideres que prometeram tudo mas não tiveram capacidade para nada.E diga-se sem rodeios com a cumplicidade de alguns "(iluminados" fardados da nossa praça de então.
Carlos Gaspar

Anónimo disse...

António Rosinha o que mais me aborrece é que não tarda muito mandam tropas portuguesas para Moçambique, mas agora está tudo bem.E o caso de Cabinda que é de bradar aos céus, mas está tudo calado, "não se passa nada". Os nossos governantes e os "media" são cegos aos direitos humanos naquela parcela de território.
Carlos Gaspar

antonio graça de abreu disse...

O Mário Beja Santos a alinhar com o Miguel Cardina, etc. A nossa História mal contada, politicamente enviesada.Há quem goste.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

António Graça de Abreu, precisamos de Beja Santos, como do pão para a boca.

O labor de Beja Santos, é indispensável, pelo menos quando nos traz leituras de terceiros sobre a guerra que nos calhou.

As opiniões pessoais dele é outra conversa, e cada um deve ter a sua própria opinião.

Ele tem direito à sua própria opinião.

Por exemplo eu, que estou nos antípodas de Beja Santos, e tu mais ou menos também, eu penso que devemos continuar a ler Beja Santos como incentivo para continuar com as suas leituras de quem escreve sobre o tema.

Valdemar Silva disse...

Realmente, Beja Santos apresenta-nos cada uma, e aquelas histórias da Sociedade de Geografia que ninguém conhecia, nem sequer apareciam nos livros de História da 4ª. classe.
É uma chatice, nem os nomes das serras da Guiné ou o nome dos rios e afluentes do rio Geba que todos gostávamos de saber, já que não havia linhas de caminho de ferro e seus ramais. E o Gungunhana não era da Guiné.
Eu até acho muito interessante os temas apresentados e o dar-nos a conhecer documentos importantes da Sociedade de Geografia de Lisboa, mas isso sou eu, embora não sabendo ao certo a longitude da minha rua em relação à dele, morávamos muito próximo.

Valdemar Queiroz