quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22525: Historiografia da presença portuguesa em África (279): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (16) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Devo aos técnicos da Sociedade de Geografia de Lisboa a atenção de me indicarem a bibliografia mais pertinente que pudesse de alguma forma trazer outros olhares sobre os conteúdos das atas das sessões do período referente desde a fundação da Sociedade até 1900. Obviamente que o leitor interessado tem ainda ao seu dispor o boletim da Sociedade, outro complemento útil para ir verificar os interesses científicos, as obras de engenharia, os rudimentos da Antropologia, o estudo das línguas étnicas, e muito mais. A questão central posta neste modesto levantamento foi o que pensavam, em termos de ideologia imperial, os fundadores da Sociedade de Geografia, e um conjunto de autores aqui indicados parece contextualizar bem as grandes pressões internacionais. Há, no entanto, uma lacuna que, em meu modesto entender, tem que ser preenchida por outra via historiográfica. Com efeito, não existia somente a via migratória para o Brasil, sucediam-se as crises políticas, e se é facto que o fontismo gerara a Regeneração, o sistema de alternância, o rotativismo, revelou-se incapaz de fazer associar a generalidade do país a poder abraçar, com genuíno entusiasmo, a causa do III Império, foi necessário produzir heróis entre exploradores das travessias africanas e conquistadores, como Mouzinho de Albuquerque. Mas toda aquela África Portuguesa teve uma ocupação incipiente, com todas as consequências que iremos conhecer em meados do século XX e que desaguarão nas independências da década de 1970.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (16)

Mário Beja Santos

"Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África", por Maria Emília Madeira Santos, conheceu duas edições, a que me foi dado ler na Biblioteca da Sociedade de Geografia é da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, dada a ligação que a investigadora tinha com o Centro de Estudos de Cartografia Antiga, mas como o leitor pode ver na imagem há duas edições.

Classifico este trabalho como da maior importância, logo pelo seu sumário, tão atrativo para quem queira conhecer as ligações entre a Expansão Portuguesa e África ao longo dos séculos: fontes do conhecimento de África na Europa cristã antes da Expansão Portuguesa; primeiras viagens em terras do noroeste africano; caminhos para desvendar África no final do século XV, penetração na Guiné; o reino do Congo; o império do Preste João – mito e realidade; revelação do império de Monomotapa: missionários, soldados e mercadores neste império; o Cabo da Boa Esperança; Madagáscar e as naus da Índia; a Etiópia e o Nilo: dois enigmas; projetos de travessia – conquista da África Austral no século XVII; governantes, sertanejos, engenheiros, pilotos preparam a travessia de África; a expansão sertaneja no final do século XVIII a caminho da África Austral; a primeira tentativa de travessia científica da África Austral – o Dr. Lacerda e Almeida e a via Cazembe-Muatiânvua; a Lunda aceita o comércio português mas não a influência política; Portugal e o movimento geográfico europeu: expedição portuguesa ao interior da África Austral em 1877; Serpa Pinto atravessa África; a corrida a África: Capelo e Ivens executam a ligação das duas costas; Henrique de Carvalho explora a Lunda; expedição Pinheiro Chagas – a nova exploração africana.

A investigadora recorda-nos que entre 1876 e 1885 triunfara na Europa a ideologia colonial. Além da procura de matérias-primas e de novos mercados, os países europeus desejavam garantir-se pelo poder político e arvoraram-se em executivos predestinados de uma missão civilizadora. Em 1875, a Enciclopédia Britânica ao dar a explicação da palavra África insistia várias vezes no desconhecimento sobre aquele continente. As tentativas de penetração operaram-se através do Mediterrâneo, pela Tunísia e o Egito, foram pontos de partida para penetrações em direção à África Negra. A França utilizou a Argélia para atingir a foz do Níger e o oeste africano. A Inglaterra utilizou o vale do Nilo para penetrar na África Oriental. E, entretanto, apareceram novos competidores, a Bélgica e a Alemanha. Era exatamente na África Austral que o Império Colonial Português possuía as suas maiores colónias, era o polo de atração. Apercebendo-se desses apetites internacionais, gerou-se um entusiasmo em Portugal, era preciso conhecer a geografia e demarcar o nosso império africano. Teve entre nós forte repercussão a Conferência Geográfica de Bruxelas, convocada por Leopoldo II da Bélgica, em 1876 e em que tomaram parte a anfitriã, a Bélgica, a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Rússia, Portugal não foi convidado. Leopoldo II criou a Associação Internacional Africana destinada a servir os seus projetos colonialistas e surgiu um fenómeno novo, apareceram exploradores ao serviço das grandes potências, dispondo de muitas facilidades: Brazza, ao serviço da França, Stanley contratado por Leopoldo, disputam o domínio do Zaire, a grande via para o interior de África. A Inglaterra, pressionada pelas aspirações dos colonos do Cabo, segue o movimento dos Bóeres em direção ao Norte e lança as vistas para a Bechuanalândia, que se estendia do Zambeze até ao Orange. Progressivamente, entre 1876-1884, a África Central iria transformar-se no campo de rivalidades das potências europeias. Portugal ou era ignorado ou denegrido. Exploradores prestigiados, como Livingstone e Cameron, lançaram fortes críticas à administração portuguesa em África, acusavam o Governo Português de continuar a permitir o comércio de escravos. Portugal tinha uma questão de emigração que não era de fácil alteração: o polo de atração continuava a ser o Brasil, só a classe mercantil e um grupo de cientistas se interessava por África. Impunha-se uma nova via, veja-se os antecedentes do estudo da Geografia.

Estes estudos estavam muito prejudicados desde o encerramento da Sociedade Real Marítima, no princípio do século XIX. Em 1876 fundava-se a Comissão Central Permanente de Geografia, que surgiu pouco depois da Sociedade de Geografia de Lisboa. Nesse tempo o principal problema da geografia africana era ainda o estudo da sua complexa hidrografia. O curso do Zaire fora apenas contornado por Cameron, desconhecia-se a sua nascente. Na opinião de Luciano Cordeiro, a expedição portuguesa devia internar-se na bacia do Zaire, descobrindo-lhe as origens e quais as relações com o Zambeze e com os grandes lagos. Estes sócios-fundadores da Sociedade de Geografia acalentavam a esperança de ver os portugueses encontrarem melhores caminhos entre Angola e Moçambique. A opinião de Luciano Cordeiro era que se deveria fazer a travessia, opinião que contrastava com a de José Júlio Rodrigues, secretário da Comissão Central Permanente de Geografia, este considerava que o centro de África estava irremediavelmente perdido para Portugal, advogava que a expedição devia fazer somente o reconhecimento geográfico e económico das partes menos conhecidas.

O principal objetivo da expedição de 1877 acabou por ser o estudo do rio Cuango nas suas relações com o Zaire e com os territórios portugueses da costa ocidental. Nomearam-se três exploradores: Serpa Pinto, oficial do Exército, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, oficiais da Marinha. Desconhecia-se por esta altura que Stanley já tinha iniciado a descida do Grande Rio, o que tornava assim extemporâneos os projetos dos portugueses. Encetada a viagem, encontraram Stanley em Cabinda, ele acabava de descer o curso do rio. Decidiram então os exploradores portugueses fazer a viagem pelo Sul, partindo de Benguela e daqui dirigiram-se ao Bié. Começaram aqui os desentendimentos entre Serpa Pinto, Capelo e Ivens. No Bié, em casa de Silva Porto, manifestas as divergências, Serpa Pinto optou pela travessia de África enquanto que Capelo e Ivens definiram como objetivo da viagem o estudo do Cuango. Já separados, Capelo e Ivens dirigem-se para as nascentes do Cuanza, seguem depois para os Quiocos, um vai estudar o curso superior do Cuango e o outro segue a linha divisória das águas do Cuanza e do Cuango. Passaram por inúmeras dificuldades, atingem Malange, encontram o rio local e chegam à Fortaleza do Duque de Bragança e daqui seguem para o Cuango. Concluíram que era impossível o levantamento do Cuango.

Quanto a Serpa Pinto, ele atravessou o rico país dos Ambuelas, desceu o rio Ninda e chegou ao Zambeze; daqui alcançou o reino de Barotze onde obteve pirogas e navegou pelo Zambeze abaixo. Próximo da confluência do Cuango com o Zambeze encontrou os primeiros ingleses. Depois de muito penar chegou ao Transval. Em Pretória envia um telegrama para Lisboa, sossegou quem andava inquieto, o seu paradeiro era desconhecido. A parte da viagem que apresenta maior interesse, como Serpa Pinto reconheceu, é o percurso entre o Bié e o Zambeze, região completamente desconhecida dos geógrafos. Estava feita a travessia de África, mas a ligação entre Angola e Moçambique mais uma vez falhara.

A Sociedade de Geografia de Lisboa pede ao governo em 1880 a continuação das explorações geográficas e a fundação de missões religiosas e estações civilizadoras. Foi durante o ministério de Manuel Pinheiro Chagas que se pôs em marcha o vasto plano mais tarde conhecido pelo Mapa Cor-de-Rosa. Neste tempo o objetivo era bem claro: tentava-se definir o domínio português em África. Em novembro de 1883, Pinheiro Chagas criava a Comissão de Cartografia junto do Ministério da Marinha e Ultramar. Iniciaram-se imediatamente os trabalhos para a elaboração de um atlas geral de todas as colónias. Em 1884 organizaram-se nada menos do que três grandes exposições: Capelo e Ivens cruzaram a África de Angola a Moçambique; Serpa Pinto e Augusto Cardoso exploraram o norte de Moçambique, tendo o segundo atingido o Niassa; Henrique de Carvalho percorria a Lunda até ao Muatiânvua. António Maria Cardoso viajava nas terras de Gaza e Inhambane, Paiva de Andrade avançava de Quelimane até Gaza, Artur de Paiva explorava o Cubango, e enquanto tudo isto se passa as missões católicas de S. Salvador do Congo e do Huíla entraram em intensa atividade.

Com a recensão desta obra de Maria Emília Madeira Santos dá-se por concluída a apresentação de uma bibliografia complementar que permite aos interessados encontrar fontes documentais que expliquem com mais desenvolvimento o pensamento imperial destes fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, eles foram determinantes para a consolidação do III Império Português.

Mapa do continente africano do século XVII, elaborado por Guilherme Blaeu (1571-1638).
Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22503: Historiografia da presença portuguesa em África (278): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (15) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

(...) Próximo da confluência do Cuango com o Zambeze encontrou os primeiros ingleses. (...)

Este parágrafo deve ler-se:

Próximo da confluência do Cuando com o Zambeze encontrou os primeiros ingleses.

Depois de um longo parágrafo a falar sobre o rio Cuango, Beja Santos cometeu o lapso de chamar Cuango ao rio Cuando. Este rio, sim, é que é afluente do Zambeze, já em território da Zâmbia, depois de fazer fronteira entre este país e Angola, mais concretamente com o Cuando-Cubango. O antigo distrito angolano do Cuando-Cubango (agora chamado província), por si só, era tão grande como a Metrópole inteira!!! O Antº Rosinha deve ter conhecido bem este distrito.

Antº Rosinha disse...

É verdade Fernando, que foi ao longo da margem esquerda do rio Cubango, onde este faz fronteira Namibia/Angola, que fui apanhado pelo 25 de Abril.

Arrumei aí as minhas botas em Angola, vim ver o verão há metrópole, e no dia 25 d Abril de 1975 (coincidência) comecei a trabalhar no Brasil.

Mas também trabalhei junto a alguns afluentes do Cuango que corre para norte junto à fronteira do ex-congo belga RDC.

Este fica na Lunda, hoje Lunda norte e Lunda Sul, onde a Diamang era dona e senhora, e hoje mais que antigamente são os diamantes a dar ordens.

Mas Beja Santos chega a duas conclusões, duas verdades inegáveis, mas que não acasalam uma com a outra.

Diz Beja Santos: "Mas toda aquela África Portuguesa teve uma ocupação incipiente, com todas as consequências que iremos conhecer em meados do século XX e que desaguarão nas independências da década de 1970."

Ou seja, se não fosse "ocupação incipiente" não havia tais consequências?

Uma coisa é que implicou a outra?

O que teria acontecido se não fosse "ocupação incipiente"?


Valdemar Silva disse...

'...segue os movimentos os Bóeres em direcção...'
Interessante como a palavra neerlandesa boer*, significando camponês/fazendeiro, ter passado para português como bóer e o plural bóeres, sendo boeren o plural em neerlandês.

Valdemar Queiroz

*pronuncia-se bôeaar