Queridos amigos,
São coisas da vida, uma mudança de casa obriga a mexer em papéis e é neste insano guardar ou deitar fora que se atiça a memória, num contexto quase improvável, tudo se julgava já no seu devido lugar, o caso da correspondência que se entregou ao camarada Luís Graça, não se conhecia melhor prova de confiança e dedicação ao entrar de corpo inteiro no blogue. E aqui se fazem desabafos e se pede fraternalmente desculpa por alguma lamechice nesta polvorosa de recordações, cada um tem direito às suas, o absurdo (ou talvez não) é como elas estão tão vivas, pois a dedicação a tais pessoas, mesmo enviesada pelos alcatruzes da vida, foi e é plena.
Um abraço do
Mário
José Jamanca, Ussumane Baldé, o eterno retorno dos meus bravos
Beja Santos
Tudo começou com uma mudança de trastes, sai-se de uma casa e entra-se noutra, parece que nasce uma nova ordem, o que estava emparelhado pede agora uma outra configuração. Com a estante dos livros, é relativamente simples: o que está a mais, o que não se voltará a ler, é para oferecer, o resto aproxima-se entre a Literatura, a Arte, a História e tudo o mais. O pior são os papéis, as pastas de plástico com notas de viagem, até bilhetes de entrada em museus ou concertos, programas disto e daquilo, há que rasoirar, não se pode acumular tudo e portanto há que selecionar o que irremediavelmente vai para o lixo e aquilo que tem valor estimativo ou até mesmo sacramental, está metido na pele, deve conservar-se até ao último dia das nossas vidas, justifica a nossa presença, tem a ver com a nossa memória.
É nisto que se encontram papéis que já deviam estar noutros sítios, noutras mãos, coisas da Guiné, que falam alto de afetos, de gente desaparecida. Uma carta de Cherno Suane, o guarda-costas de alfero, o irmão que quis vir para Lisboa, que aqui trabalhou numa loja de eletrodomésticos, vivia no Largo de São Paulo, bem perto do Cais do Sodré. Desaparecido, uma terrível doença do foro respiratório liquidou-o em lume brando.
Cherno Suane.
Uma carta garatujada de Mamadu Camará, o 221, um turbulento Dom João que arranjava problemas na tabanca Mandinga, sempre endividado, a cobiçar os sapatos de alfero, a pedir adiantamentos, um soldado destimidíssimo, foi incorporado na 2.ª Companhia de Comandos, em Salancaur um tiro desfez-lhe um calcanhar, tudo se tentou até se chegar à amputação da perna. Vive entre a Pontinha e várias casas em Belfast, como ele diz, vai visitar os netos cor café com leite. Deve ser um tique irlandês, em qualquer estação do ano anda de gravata e colete, o que vemos aqui com pé firme no capim já não existe, temos agora um gentleman, um avô bondoso, de cabelo integralmente branco.
Mamadu Camará.
Entre folhas desirmanadas, solta-se esta fotografia do José Jamanca, uma saudade larvar toma-me por inteiro, regresso a Missirá, regulado do Cuor, em agosto de 1968, depois de Albino Amadu Baldé, o sargento que de facto comandava o pelotão de milícias n.º 101, quem falava o melhor português era Mamadu Baldé, o 86, que tinha vindo quase um ano a Lisboa, fazer cirurgia a um braço metralhado, e José Jamanca, que estudara numa escola missionária, com aproveitamento excecional. Exprimia-se soltando as sílabas todas, oferecendo-se para dar aulas aos meninos de Missirá, ainda na falta de professor, por decisão própria seguia à frente do nosso alfero, tal como aconteceu naquele dia de dezembro de 1968, em Chicri, num súbito encontro com uma coluna que vinha de Madina. Adorava conversar, queria continuar os seus estudos. Um dia partiu, rescindira o seu contrato como milícia. E anos depois, bateu à porta de alfero, em Lisboa. Tirara um curso de eletricista em Leningrado, trabalho em Lisboa não lhe faltava, explicava minuciosamente o que fazia e pediu ao alfero para passear com ele pela cidade. Os anos passaram, veio anunciar que estava tuberculoso, não queria ir tratar-se sem despedir-se, foi um encontro memorável, duas memórias ao desafio, e neste preciso instante estou a vê-lo a caminhar com uma bolsa de pano a tiracolo, com andar pausado, pés em sandálias de plástico, sorri-me em Mato de Cão, chove copiosamente, viemos sem poncho, tem que se estar naquele ponto alto na observação, não se preocupe, alfero, depois vem aí o sol, tudo seca, e vamos comer as laranjas de Canturé. É uma saudade imensa, ter consciência de uma dedicação que não se tratou por igual, registar este olhar com o seu pequeno estrabismo no olho direito que em nada compromete a força de caráter que salta da imagem. Fotografia que andava desviada, José Jamanca vai ficar no meu escritório para me lembrar a qualquer instante a verdadeira cor da amizade.
José Jamanca.
E por fim a mais esquecida das cartas, veio de Ussumane Baldé, o 104, o meu soldado prussiano, quando abordado empertigava-se, punha-se em posição rígida, os braços colados às pernas, as mãos com os dedos todos fechados, ao princípio parecia que falava a medo ou que se sentia atemorizado, com os anos a tensão diminuiu, confiava na fraternidade, fora permanente a camaradagem. A carta vem datada de perto do Natal de 1991, talvez mesmo no dia em que nosso alfero regressara a Portugal depois de uma cooperação cheia de vicissitudes, com êxitos e desastres. Ussumane fala do querido pai, da confiança que ganhara nos anos de tropa em comum, pede para vir trabalhar em Portugal, tinha perdido os seus documentos, como se fosse necessário envia-me o número mecanográfico 820332/66, estivera também na 2.ª Companhia de Comandos, manda referências de todos os seus documentos e pede a este seu querido pai que satisfaça o pedido daquele filho, pede resposta urgente, que nunca chegou.
Uma nota final. Quando, em 2010, combinei com Fodé Dahaba a viagem ao Cuor para me despedir dos meus soldados, ao chegar a Bambadinca fez-se um exame de quem fora abordado ou faltara abordar. E vieram os disparos brutais: Mamadu Silá morrera há pouco tempo, outros havia que viviam longe e não tinham dinheiro para tal viagem. E Ussumane, vive ainda no Cossé? Ao lado de Fodé estava Sadjo Seidi, outro dos bravos, a viver em Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, e sussurrou: morreu súbito, de paludismo, o ano passado, falava muito em ti.
É este o meu eterno retorno, a despeito de pensar ter todos os papéis arrumados e a carga emocional em ordem, há sempre estes imprevistos, na arrumação dos trastes todos os bravos, ou quase, reaparecem, têm este precioso condão de trazer ânimo ao presente pois se lembra que foram anos intensos e ali se lançou à terra uma semente de camaradagem para esta memória de longo porte, sempre a pedir mais água, os troncos das árvores sobem até às nuvens. E ponto final.
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Nota do editor
Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22513: Nota de leitura (1377): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte II (Luís Graça)
1 comentário:
Beja santos terminou a sua guerra em 1970 e tem estes sentimentos, e fala "olhando olhos nos olhos" os soldados do seu pelotão.
Se os ex-alferes que tiveram a ocasião de passados 4 anos (1974) de fechar as portas da guerra lerem estas palavras de Beja Santos, devem ter uns sentimentos algo estranhos e diferentes.
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