Guiné > Região de Tombali > Nhala > 1974 > Foto nº 2 > Os "Unidos de Mampatá", CART 6250, em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).
Comentário do António Carvalho (ex-fur mil enf da CART 6250) (poste P2694) (*)
"Primeiramente devo manifestar a minha gratidão ao Murta, por ter guardado e nos ter proporcionado esta vista do regresso da nossa companhia a Bissau, via Nhala e Buba. As fotografias são muito interessantes, sob o ponto de vista da história da guerra do ultramar porque mostram a alegria transbordante pelo fim da comissão e a anarquia reinante com ausência de armamento, agora já imprestável naquele irrepetível tempo, posterior ao 25 de Abril.
Para trás ficava Mampatá e a memória dos nossos dois mortos - o Mata e o Albuquerque. Eu já não me lembrava daquela paragem em Nhala que não terá sido só para atazanar os periquitos mas para retemperar energias com mais umas cervejas. Aquela viajem foi gloriosa também porque estávamos a inaugurar a estrada nova Aldeia Formosa- Buba, agora percorrida em menos de uma hora."
Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Quem lê "Um Caminho de Quatro Passos", não precisa de chegar ao fim, ao posfácio nem à última página, a 218, a do "glossário", para poder concluir, sem margem para dúvidas, que... "temos escritor"!
Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Quem lê "Um Caminho de Quatro Passos", não precisa de chegar ao fim, ao posfácio nem à última página, a 218, a do "glossário", para poder concluir, sem margem para dúvidas, que... "temos escritor"!
O que é um escritor ? É quem sabe, em prosa (mas também em verso), contar histórias, construir personagens, desenhar cenários, arquitetar contextos, criar emoções… Não importa o género, conto, novela, romance, biografia, diário, poesia…
O António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores. E ficamos todos a ganhar, com este novo escritor: fica a ganhar Medas, a sua comunidade de nascença e de pertença, a sua família, os seus amigos, mas também todos nós, a Tabanca Grande, a que ele está associado desde 13 de setembro de 2008.
Obrigado, António, pelo teu livro, pelo exemplar do livro que me mandaste pelo correio com a dedicatória, singela mas sincera, que diz: "Ao meu prezado amigo e camarada, Luís Graça, que calcorreou, como eu, caminhos espinhosos, por terras da Guiné, a quem devo a benfazeja criação da Tabanca Grande, ofereço este modesto presente - o meu livro. Medas, 2021 - agosto - 10". Assina: A. S. Carvalho.
Parabéns, pelo teu livro, pela coragem, pela determinação, pelo empenho, pela motivação, por tudo o que significa escrever e editar um livro... Não é um parto fácil. Exige disciplina, talento, resiliência. Não esquecendo o apoio daqueles que nos estão mais próximos, no teu caso, a tua mulher, as tuas filhas, o teu neto.
Com este livro reafirmas o teu/nosso direito e dever de memória como antigos combatentes nós que nascemos no auge do Estado Novo, ou seja, em ditadura. Com ele não escamoteias ou branqueias as nossas memórias doridas, as da Guiné, as dores que sofremos e as dores que infligimos aos outros. Reafirmas, por fim, uma ideia que me é cara, a mim e a ti, e que perpassa pelo teu livro, e que a nossa geração tem de saber interiorizar e assumir: não somos os vencidos nem os vencedores de uma guerra, fizemos a guerra e a paz, com coragem e honra, na expetativa de o poder político de então encontrar uma solução política, ou seja negociada, para um conflito que nunca poderia ter uma solução militar.
E obrigado, António, pelo convite para estar aqui hoje, na Tabanca dos Melros, na tua festa, a festa a que tens direito Devo, porém, fazer uma prévia declaração de interesses: faço-o com algum sacrifício pessoal mas com todo o gosto. Acontece estar aqui, pelo Norte, esta semana. Segunda feira já volto para o pequeno calvário da minha fisioterapia, na Lourinhã. E faço-o com gosto porque é já o "enésimo" livro que sai da Tabanca Grande. Sem a chancela da Tabanca Grande (, não somos editora...) , mas sob a inspiração do magnífico, simbólico, protetor, mágico poilão da Tabanca Grande, onde nos sentamos, os vivos e os mortos. E já somos 840, dois batalhões.
Amigos e camaradas: o António Carvalho é um grande contador de histórias, e mais do que uma autobiografia faz aqui o retrato socioantropológico de sucessivas gerações de medenses, onde se cruza e entrecruza a sua família. Teve o privilégio raro de conviver com avós, pais, tia, irmãos e "moços de lavoura" (criados), numa família extensa, numa grande casa de lavoura, duas juntas de bois, trinta ou mais pipas de vinho, os campeões da batata... E que ele evoca com ternura e humor, quando descreve a sua primeira noite, de insónias e saudade, à chegada à sua nova casa, a do prior do Casal Comba e novo diretor do Colégio da Mealhada, e ainda seu parente. Estávamos em outubro de 1962:
"Verdadeiramente o que me impedia de dormir eram as recordações daquele bulício de uma família numerosa onde pontificava uma avó que julgava santa, uam mãe que providenciava tudo, um pai cuja primeira prioridade era o trabalho, um avô vaidoso, uma tia materna sempe disponível para atender às solicitações da família e os irmãos de dias sim dias não" (p. 158).
O último, o 4º passo, com uma escassa dúzia de páginas, tem por título "A revolução e o reencontro", o 25 de Abril (vivido na Guiné) e o regresso a casa. Dois valores que marcam o percurso do vida do António são afinal a justiça e a liberdade, sem as quais não pode haver verdadeira democracia nem um país com futuro ou povo com feliz e com esperança.
Muitos de nós, antigos combatentes, que nasceram em aldeias ou pequenas vilas, do interior do país, vão-se reconhecer neste retrato da infância e adolescência do autor. Em boa verdade, é retrato da nossa geração...
Calor, cansaço, suor
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior
pois há ali o Corubal
com sombras e água boa
nem tudo é mau afinal
não é o Douro, eu sei
nem o Tejo de Lisboa
são outros os horizontes
falta o xisto e o granito
as encostas e os montes
mas diga-se na verdade
há o Carvalho, há o Rosa
há um hino à amizade
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira
há o Farinha e o Polónia
gestos e solidariedade
há o Esteves e o Pinheiro
amigos e sinceridade
há o Nina e até amor
também sofrimento e dor
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.
Josema
Mampatá 1974
Como "apetite" para a leitura do livro do António Carvalho, aqui ficam dois trechos. Para efeitos de publicação no blogue, tomei a liberdade de "encurtar" os parágrafos, de modo a tornar a leitura mais fácil. O formato bloguístco é "inimigo" de parágrafos muito extensos. Perde-se algum "fôlego" e "oralidade", ganha-se em "legibilidade"... O autor, por certo, que nos perdoará esta "tropelia"... LG
Sapatos ou botas só ao domingo e tirados logo depois da Missa, para se não estragarem. Tínhamos ainda umas chancas, no inverno, calçado apropriado para os dias de chuva ou de geada. Mas para a maioria, socos ou tamancos eram, durante a semana, o calçado mais usado, no trabalho do campo e até, na falta de melhor, o que muitos usavam para ir à escola, fosse de verão ou de inverno, quase sempre sem meias. Mas à versão mais pobre de calçado chamávamos nós socas. A soca era constituída simplesmente por uma tábua serrada pelo formato do pé a que se pregava uma tira de cabedal aproveitada de qualquer ponta de uma apeaça ou de um cinto velho.
Também cheguei a usar este calçado muito rudimentar, o verdadeiro calçado dos mais pobres, mais propriamente para me identificar com a maioria dos meus companheiros de escola do que por necessidade. Quando crianças, mais do que em adultos, tendemos a adotar os comportamentos, a indumentária e adereços dos que nos rodeiam. Por isso eu andava algumas vezes de socas, nos dias de calor, confecionadas por mim, com a ajuda de algum amigo mais velho. Mas depressa as atirava para um canto, porque, no verão e no outono, o que eu queria mesmo era andar descalço, correr pelos caminhos de terra traçados pelo meio dos campos, na companhia dos da minha idade. E a única forma de não ficar para trás era libertar-me daqueles espartilhos que me empecilhavam os movimentos.
Algumas vezes espetava-me num pico de alguma silva seca, mas não podia dar parte de fraco, tinha que ser como o Neca Pinto, que conseguia andar descalço sobre chão áspero de estrepes, como eram aqueles onde se tinha acabado de cortar o mato. Ele, de tanto calcorrear, nesses inamistosos pisos, com feixes de carqueja às costas, que sua mãe talhava a golpes esforçados de fouce, tinha uma camada calosa na planta dos pés que nem um arame se lhe espetava. Calos era coisa que lhe não faltava, nos pés como nas mãos, talvez até os tivesse na alma, impedido de ser menino, para compensar com o seu labor forçado a incapacidade precoce de seu pai, sobrevinda por uma topada da vida. Mais tarde a vida ensinou-me que os pobres levam sempre mais topadas dos que os ricos e têm sempre muito mais dificuldade em fazê-las sarar.
A topada, no sentido literal do termo, era um acidente muito frequente para quem estivesse pouco afeito a andar descalço pelos caminhos. Acontecia sempre que não levantássemos bem os pés e batíamos então com as pontas dos dedos numa pedra mais saliente, normalmente era a falangeta do polegar que ficava coberta de sangue e com a unha levantada, o mais afetado por ser o da frente. Eu não gostava nada de topadas, não só por serem dolorosas , mas por ter ainda de as esconder do meu pai, que nunca me queria ver descalço.
Irritava-se por o sobrinho não lha querer mostrar, como se tivesse algo a esconder-lhe. Ambos sabiam que ela estava magra, mas o Miguel, que vinha ali todos os domingos à tarde, à casa onde nascera, visitar a mãe, aproveitava para mandar o Manuel abrir a porta da vaca para a ver cá fora. Nas tardes soalheiras, ao domingo, era costume os lavradores soltarem os bois no quinteiro onde sempre havia uma pia de xisto ou granito com água para o gado beber. O Manuel aborrecia-se por o tio o culpar reiteradamente da magreza da vaca e foi por isso que, naquele domingo, se recusou, nos seus dezoito anos, a abrir a porta à leiteira, limitando-se a mostrar-lhe, orgulhosamente, as duas bem tratadas juntas de bois.
O Manuel habituara-se, desde muito cedo, com a perda do pai, quando tinha apenas oito anos e do avô aos quinze, a ser o único varão naquela casa onde vivia com a avó, a mãe, uma tia e duas irmãs. Desde os quinze anos já lhe vinham a desagradar os conselhos do outro tio, do António, que se imiscuía nas tarefas mais comezinhas do quotidiano, da casa até ao negócio das madeiras das sortes ou à compra de uns bois. O Manuel queria desenvencilhar-se da tutela do tio António e da de qualquer outro tio. Então não viam eles como crescera e sabia organizar o seu serviço?
Na década de vinte do século passado havia, em toda a minha freguesia, duzentas e vinte e cinco cabeças de gado bovino, nas quais se incluíam apenas quatro vacas leiteiras. Por esse tempo os lavradores interessavam-se só por bois para trabalho que eram vendidos, após alguns anos de jugo, depois de engordados. Curiosamente as quatro vacas leiteiras eram pertença de bem minguados lavradores, proprietários, apenas, de um ou dois pequenos campos, que vendiam o leite para alimentar pessoas idosas e doentes ou até uma ou outra criança que se agarrava mal ao caldo com broa.
O leite espremido do úbere da vaca da casa da Estivada de Cima que tinha sido comprada pelo Miguel, por ordem dos dois irmãos do Brasil, e ali propositadamente aquartelada, a cargo do novo homem da casa, destinava-se ao consumo da mãe dos “brasileiros”, embora todo o remanescente ficasse à disposição de quem dele quisesse fazer uso. Na verdade os dois irmãos “brasileiros” do Miguel eram já, por esta altura, dois emigrantes de sucesso no Rio de Janeiro. O primeiro, o Manuel, que tinha saído de casa, com catorze anos, em agosto de 1889, tinha o tio Francisco, no Rio de Janeiro, à sua espera, quando lá chegou, no dia 4 de setembro desse ano. Seguiram-se-lhe, na aventura, o Vicente, em 1892 e o malogrado Joaquim, dois ou três anos depois, tendo perecido de doença quando acabara de fazer dezanove anos.
O Miguel era o irmão predileto que os “brasileiros” tinham deixado em Portugal, quase um delegado ou procurador, sobretudo depois do falecimento do José, com trinta e nove anos, o irmão primogénito, pai do Manuel da Estivada..
A prosperidade daqueles dois irmãos no Rio de Janeiro tornou-se notória, sobretudo quando ambos resolveram construir um palacete de férias, luxuoso para a época, mesmo ao lado da casa onde tinham nascido e crescido, concluído em 1914, meses antes do falecimento do pai. As viagens, em navios a vapor, com escala em Leixões, eram cada vez mais confortáveis e, com a nova casa, era agora raro o ano em que não passavam férias nas Medas, em anos alternados, o Manuel só com a esposa e o Vicente com toda a sua prole. Sempre que chegavam eram visitados pelas pessoas do poder da freguesia, do Padre ao Presidente da Junta, não faltando pelo meio o Regedor. E não iam sem resposta animadora, prometendo e cumprindo, com donativos de vulto, para a aquisição de instrumentos em falta na orquestra da terra, para a construção da primeira estrada da freguesia, para a ereção da torre sineira, para além de muitos outros pequenos benefícios.
Mas sem o aval do irmão Miguel, nenhuma obra era comparticipada pelos “brasileiros” que tinham nele os seus olhos e os seus ouvidos.
A freguesia, muito montanhosa, exígua de solo arável, obrigou a um forte fluxo migratório para o Brasil, sobretudo depois da libertação das populações escravizadas e da implantação da República neste país irmão, em 1888 e 1889, respetivamente. Ao incremento desta onda migratória, neste período, não será estranha a imposição definitiva da navegação a vapor, cada vez com maior capacidade, mais segurança, conforto e previsibilidade no tempo de viagem. Já não se ia de barco à vela, em penosas viagens que podiam demorar dois meses, sujeitas a naufrágios. Num barco destes tinha emigrado para o Brasil o pai do Miguel e dos outros oito irmãos, João Gonçalves Viana, na década de cinquenta, tendo-se demorado por lá o tempo suficiente para se elevar ao patamar que lhe permitiu casar na casa da Estivada, falida mas com estatuto.
Mesmo os maiores lavradores das Medas, trabalhando de sol a sol, só se davam ao luxo de calçar uns sapatos, para entrarem na Igreja, em dias festivos ou numa ida ao Porto. O Miguel Viana era o único lavrador das Medas que calçava sapatos à semana, e não precisava de se sujar no trabalho, porque tinha entregado toda a lavoura a três caseiros. Aceitou até a nomeação para Presidente da Junta no mandato de 1919 a 1922, na crença de que poderia assim acelerar a promoção da terra.
Aquilo só lhe trouxe chatices e depressa se apercebeu que lhe era mais de feição trabalhar por fora, instando os irmãos do Brasil a ajudarem a freguesia. Eles, depois que construíram o palacete de férias, vinham mais vezes a Portugal , mas viriam ainda com mais frequência se não tivessem que suportar aquele incómodo trajeto, pelo rio acima, num frágil valboeiro, desde a Ribeira do Porto até ao embarcadoiro do Carreiro. Depois era preciso ainda um carro de bois para os trazer, ao longo de um caminho pedregoso, do Carreiro até ao palacete.
Mas não era só para sua comodidade que os “brasileiros” da Estivada estavam dispostos a contribuir para a chegada da estrada às Medas, era também por quererem bem à terra que lhes tinha sido berço. Nas cartas que, do Brasil, escreviam ao seu irmão Miguel, não deixavam de lhe lembrar que não fazia sentido avançarem com o seu contributo enquanto os poderes públicos não dessem o primeiro passo, definindo o seu traçado e elaborando o respetivo projeto.
Por isso, aproveitando a ocorrência da festa do Senhor, na freguesia, no dia 21 de setembro de 1924, o Miguel da Mota deu, em sua casa, um grande jantar, em honra do deputado Correia Gomes, a quem empenhou em favor da estrada, junto do governo. O deputado, inebriado pelo lauto jantar, a que não faltaram as melhores carnes e os melhores vinhos, havia de lhe prometer que tudo faria, em Lisboa, para trazer tão útil e desejada obra a Medas. E foi isso que o Miguel da Mota transmitiu a seus irmãos, numa missiva que lhes mandou para o Rio de Janeiro, logo na semana seguinte.
Em 1925, o Miguel, amuado por o sobrinho não lhe ter mostrado a vaca, naquele domingo soalheiro, dele fez queixa ao irmão Vicente, enquanto seguiam naquele ronceiro e incómodo carro de bois, a caminho do barco que os esperava no Carreiro para os conduzir até ao Porto, de onde seguiriam para o vapor, de regresso ao Rio de Janeiro, depois de mais umas férias de três meses por cá. Não se sabe como decorreu a conversa, certo é que, no dia seguinte, o Miguel mudou a vaca, da Estivada para a sua casa, na Mota, incumbindo-se a partir dessa data, de mandar o leite à sua mãe, minha bisavó paterna. Mas a vaca, se mal comia na Estivada, mal continuou a comer, mesmo vendo-se num aido novo, e morreu passados poucos meses, de mal desconhecido.
Não era só a falta de uma estrada que aborrecia os irmãos do Miguel, quando por cá passavam férias, era o telefone que teimava em não chegar e a luz elétrica que se sabia estar ainda mais distante. Para eles , habituados a todas as comodidades, na Rua do Uruguai, no Rio de Janeiro, que estavam dispostos a despender significativas comparticipações para estas obras, este atraso era inaceitável. A estrada, impulsionada por um grande subsídio destes brasileiros da Estivada, chegou, em 1930, à Igreja das Medas, finalmente. Ao mesmo tempo eles mesmos, assumiram integralmente o custo total da construção da torre da Igreja.
Não admira que, em 1933, a freguesia lhes tivesse dispensado, na sua primeira viagem de automóvel, do Porto de Leixões às Medas, uma receção festiva, com a estrada engalanada no lugar de Canas, foguetório e a atuação da Banda de Música de Lever.
No centro daqueles festejos estava o tio materno do meu pai, o Miguel, eufórico e orgulhoso da prosperidade dos irmãos. Tinha razões para isso, ele que, no decurso da obra da estrada, não se cansava de trazer de casa um gigo com broa e garrafões de vinho que dava de merenda aos trabalhadores.
O telefone só havia de chegar em 1936, quanto à rede de energia elétrica, empancada pelos constrangimentos da 2ªGuerra Mundial só em 1947 se viram as primeiras lâmpadas acesas nos lugares principais da freguesia. Do Brasil, apagado o meu tio avô, o Vicente, por morte repentina, em 1937, foi-se extinguindo a chama que deu alento à freguesia, durante quase três dezenas de anos, embora o irmão Manuel, que faleceu em 1964, continuasse a ajudar a terra natal, mas com contributos bem mais modestos, porque tinha menos riqueza que seu falecido irmão. As obras da residência paroquial e a instalação da rede elétrica beneficiaram dos seus contributos. Era costume, sobretudo no período da Guerra Civil de Espanha e da 2.ª Guerra Mundial, todos os anos, ser distribuída, pelos mais pobres da freguesia, uma verba de um conto de reis ou mais, fruto da sua generosidade.
O Miguel Viana, o lavrador de sapatos, que morreu na sua casa do lugar da Mota, em 1953, depois de passar pela indizível desdita de assistir à morte dos seus dois filhos e de três netos, ainda encontrou energia para dirigir as obras da reabilitação da residência paroquial, em 1948.
Amigos e camaradas: o António Carvalho é um grande contador de histórias, e mais do que uma autobiografia faz aqui o retrato socioantropológico de sucessivas gerações de medenses, onde se cruza e entrecruza a sua família. Teve o privilégio raro de conviver com avós, pais, tia, irmãos e "moços de lavoura" (criados), numa família extensa, numa grande casa de lavoura, duas juntas de bois, trinta ou mais pipas de vinho, os campeões da batata... E que ele evoca com ternura e humor, quando descreve a sua primeira noite, de insónias e saudade, à chegada à sua nova casa, a do prior do Casal Comba e novo diretor do Colégio da Mealhada, e ainda seu parente. Estávamos em outubro de 1962:
"Verdadeiramente o que me impedia de dormir eram as recordações daquele bulício de uma família numerosa onde pontificava uma avó que julgava santa, uam mãe que providenciava tudo, um pai cuja primeira prioridade era o trabalho, um avô vaidoso, uma tia materna sempe disponível para atender às solicitações da família e os irmãos de dias sim dias não" (p. 158).
Uma família de lavradores que se enquadrava, sociologicamente falando, no grupo do médio campesinato, em que a família é uma unidade económico e o chefe e pai e patrão. E em que saída da casa paterna, o "home leaving", era retardado ao máximo por razões económicas. Um homem a menos não era uma boca a menos, eram dois braços a menos...
É um livro, também, de "geografias emocionais", que, irradiando de Medas, na margem direita do rio Douro. justamente no ponto mais a sul do seu percurso (e a escassos 20 km de distância, em linha recta, da foz), passam pelo Porto, o porto de Leixões, o Brasil, a Mealhada, a Guiné (Bolama, Buba, Mampatá, Nhala, Nhacobá...), com regresso de novo às origens.
(...) No meu caso, a crer na qualidade daquela obra monográfica sobre a minha freguesia, eu tenho, na minha ascendência, uma costela de um ser humano aprisionado na costa ocidental africana e vendido, como escravo, no Brasil, de quem provieram aqueles três criados que o padre do Paço trouxe das terras de Santa Cruz, e o meu fenótipo traduzirá exatamente um produto compósito." (p. 215).
Da terceira parte ("Contra os canhões marchar marchar", pp. 175-204) já publicámos 8 excertos, sob a forma de outros tantos postes (**). Mas o livro vale como um todo, é uma história de vida contada na primeira pessoa... E que tem esta coisa original: não ques e ler de fio a pavio, do princípio ao fim, pode ler-se um pouco ao acaso, folheando esta ou aquela página, de frente para trás, de trás para a frente.
Por modéstia, o autor recusa-se a chamar, ao seu livro, "obra literária" e mesmo em relação ao género tem relutância em usar o termo "autobiografia". Justifica-se:
(...) Não pretendi relatar a minha vida integralmente, apenas tentei narrar casos e episódios enquadrados por determinadas circunstâncias, ao longo do meu trajeto, que me marcaram imperecivelmente" (pág. 8).
O autor podia ter escrito uma biografia ficcionada, ou ter arranjado um "alter ego". Preferiu mesmo assim dar a cara, e falar na primeira pessoa do singular: o livro vai ser lido por familiares, vizinhos, conterrâneos, amigos, antigos condiscípulos do Colégio da Mealhada, antigos camaradas de armas, etc.
E, como tal, fica sujeito também ao escrutínio público. Para mais, foi um dedicado autarca na sua terra natal, durante quase três décadas, experiência de intervenção política e cívica que lhe trouxe alegrias (como a criação da escola secundária de Medas em 1988) mas também alguns dissabores, inevitáveis quando há conflitos, ou seja, quando há direitos e valores a defender acima dos interesses particulares ou grupais.
É um livro, também, de "geografias emocionais", que, irradiando de Medas, na margem direita do rio Douro. justamente no ponto mais a sul do seu percurso (e a escassos 20 km de distância, em linha recta, da foz), passam pelo Porto, o porto de Leixões, o Brasil, a Mealhada, a Guiné (Bolama, Buba, Mampatá, Nhala, Nhacobá...), com regresso de novo às origens.
"Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro, e pela serra dos Açores" (, hoje, serra das Flores) (...), como aqui nasceram também, pelo menos alguns dos meus octvós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho" (p. 212).
Se consideramos um intervalo de 25 anos entre cada geração, oito gerações de avós, são dois séculos, o que faz remontar a sua narrativa, ou algumas das histórias, a meados do Séc. XVIII, ainda no reinado do Dom João V, quando regressa a Portugal um padre, nascido em Penafiel, em 1699, que se irá instala na Quinta do Paço, em Medas. Vindo do Brasil, trazia no porão do veleiro, não apenas um farto baú mas também três jovens escravos, negros, um rapaz e duas raparigas, Beneficiariam, entretanto, das primeiras medidas pombalinas (a partir de 1761), em prol da abolição da escravatura no Portugal Continental. Agora livres, são criados de servir, mas dois deles (ou elas) irão casar e gerar descendência.
(...) "Um neto da Ana, chamado José Ferreira, é, segundo afirmação de Albino dos Santos, na sua obra “Monografia da Freguesia das Medas”, um antepassado dos Ferreiras de Pombal. Ora, o meu avô paterno, José Ferreira de Carvalho, nasceu nessa casa dos Ferreiras de Pombal."
(...) No meu caso, a crer na qualidade daquela obra monográfica sobre a minha freguesia, eu tenho, na minha ascendência, uma costela de um ser humano aprisionado na costa ocidental africana e vendido, como escravo, no Brasil, de quem provieram aqueles três criados que o padre do Paço trouxe das terras de Santa Cruz, e o meu fenótipo traduzirá exatamente um produto compósito." (p. 215).
Muito antes desta recente revelação do seu possível passado genealógico, já o António Carvalho tinha dado provas da recusa do etnocentrismo, atitude a que não será alheia a sua experiência como homem e militar no território da Guiné, durante a guerra colonial (1972/74). Veja-se por exemplo episódios como "A vaca" (pp. 191/193) ou "Dormir com o inimigo" (pp. 193/195). E esse enternecedor conto "A cor das lágrimas e a laranjeira azeda" (pp. 125/132), um verdadeiro libelo conta o racismo e a xenofobia.
As geografias emocionais também passam por Lisboa, ainda na infância, em 1959. A Lisboa ia-se poucas vezes na vida, os "magníficos" da terra para mendigar pequenos favores aos senhores do poder, ou a canalha da escola, a mais afortunada, embarcada na camioneta de excursão (4 dias, um ó para lá e outro ó para cá, com dois dias úteis para arregalar aos olhos às coisas e gentes que só existiam na "cidade grande", dormindo o pessoal no carro)...
As páginas (cerca de 140), mais portentosas, escritas em estilo oral, com parágrafos extensos, são, no meu entender as da primeira parte, a do primeiro passo, a do capítulo I, a Meda da infância do autor, nascido em 1950, antes da ida, aos doze anos para o Colégio da Mealhada (2º passo) (16 pp.) e, depois, no início de 1971, a chamada para a tropa e a mobilização para a Guiné (3º passo, "Contra os canhões. marchar, marchar) (c. 30 pp.).
As páginas (cerca de 140), mais portentosas, escritas em estilo oral, com parágrafos extensos, são, no meu entender as da primeira parte, a do primeiro passo, a do capítulo I, a Meda da infância do autor, nascido em 1950, antes da ida, aos doze anos para o Colégio da Mealhada (2º passo) (16 pp.) e, depois, no início de 1971, a chamada para a tropa e a mobilização para a Guiné (3º passo, "Contra os canhões. marchar, marchar) (c. 30 pp.).
É pena que o livro não tenha um índice, já que é constituído por cerca de 8 dezenas de histórias, episódios ou microcontos, alguns dos quais são verdadeiros "contos morais". Alguns deles têm, explicitamente, duas linhas com um conclusão ou consideração de natureza ética ou filosófica. Como por exemplo, o excerto que publicamos abaixo, "Topadas", ou o já citado conto, "A cor das lágrimas... ", uma pequena obra-prima.
Muitos de nós, antigos combatentes, que nasceram em aldeias ou pequenas vilas, do interior do país, vão-se reconhecer neste retrato da infância e adolescência do autor. Em boa verdade, é retrato da nossa geração...
Muitos de nós, para não dizer a grande maioria,
(i) nascemos de parto com dor, em casa, sem assistência médica;
(ii) fomos batizados segundo os cânones da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana;
(iii) fomos alimentados a caldo e broa, e alguns provaram pela primeira vez o leite, ainda não pasteurizado, da vaquinha;
(iv) assistimos ao espetáculo, hoje cruel, da matança do porco (, fabulosa a sua reconstituição, em "O festim", pp. 20/22):
(v) aprendemos as primeiras letras à luz do candeeiro a petróleo e, muitas vezes, íamos descalços até à escola da vila, com os sapatos de ir à missa atados ao ombro;
(vi) viviamos em casas sem saneamento básico, sem eletricidade, muito menos rádio, telefone e televisão;
(vii) fomos a 1ª geração de portugueses a ser vacinada contra algumas das mais temíveis doenças infetocontagiosas que no passado causaram elevada morbimortalidade;
(viii) passou a dispor, a partir de 1945, da bala mágica, a penicilina;
(ix) só conhecemos a capital do país, quando embarcámos para a guerra da Guiné, que a mobilidade espacial (ainda era um luxo)...
(x) mas começámos também a perceber a importância da educação como forma de mobilidade social, ou seja, para se poder sair do círculo vicioso da pobreza;
(xi) num tempo em que a democratização do ensino (e a universalização da proteção social) só começaria a chegar no final do consulado de Marcelo Caetano;
(xii) é também a geração que sai, das suas casas da aldeia e das vilas, para fazer a última guerra do Império, ou para emigrar, a salto, para o Eldorado transpirenaico.
No meu caso, no caso do António, e de tantos de nós, foi uma guerra que começámos a viver por antecipação, aos 12, aos 13, aos 14 anos... Portanto, não foram apenas dois anos de vivência num teatro de operações, tramado como o da Guiné, mais um ano de tropa... Foram anos e anos pouco verdes, amargos, marcados de incerteza e angústia, entrecortados por algumas veleidades próprias da idade, a infundada esperança do fim da guerra, antes de chegar a nossa vez, e a tentação do "salto" para a redenção e a liberdade, que tinha, na maior dos casos, um preço demasiado alto... A liberdade, individual e coletiva, que, afinal, só chegaria com o 25 de Abril. Mas na guerra, e nomeadamente, na Guiné aprendemos a dar o devido valor à camaradagem e à amizade.
Termino esta nota de leitura (***), com um poema do nosso Josema, o Zé Manel Lopes, que eu, ainda sem o conhecer pessoalmente, saudei em março de 2008 como "uma voz muito original, pessoal, uma surpreendente revelação da escrita poética sobre a guerra colonial na Guiné... Até agora guardada o baú do sótão"... É um dos poemas que mais gosto e nele está o António Carvalho, de corpo inteiro.
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior
pois há ali o Corubal
com sombras e água boa
nem tudo é mau afinal
não é o Douro, eu sei
nem o Tejo de Lisboa
são outros os horizontes
falta o xisto e o granito
as encostas e os montes
mas diga-se na verdade
há o Carvalho, há o Rosa
há um hino à amizade
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira
há o Farinha e o Polónia
gestos e solidariedade
há o Esteves e o Pinheiro
amigos e sinceridade
há o Nina e até amor
também sofrimento e dor
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.
Josema
Mampatá 1974
Como "apetite" para a leitura do livro do António Carvalho, aqui ficam dois trechos. Para efeitos de publicação no blogue, tomei a liberdade de "encurtar" os parágrafos, de modo a tornar a leitura mais fácil. O formato bloguístco é "inimigo" de parágrafos muito extensos. Perde-se algum "fôlego" e "oralidade", ganha-se em "legibilidade"... O autor, por certo, que nos perdoará esta "tropelia"... LG
AS TOPADAS (pp. 143-144)
Sapatos ou botas só ao domingo e tirados logo depois da Missa, para se não estragarem. Tínhamos ainda umas chancas, no inverno, calçado apropriado para os dias de chuva ou de geada. Mas para a maioria, socos ou tamancos eram, durante a semana, o calçado mais usado, no trabalho do campo e até, na falta de melhor, o que muitos usavam para ir à escola, fosse de verão ou de inverno, quase sempre sem meias. Mas à versão mais pobre de calçado chamávamos nós socas. A soca era constituída simplesmente por uma tábua serrada pelo formato do pé a que se pregava uma tira de cabedal aproveitada de qualquer ponta de uma apeaça ou de um cinto velho.
Também cheguei a usar este calçado muito rudimentar, o verdadeiro calçado dos mais pobres, mais propriamente para me identificar com a maioria dos meus companheiros de escola do que por necessidade. Quando crianças, mais do que em adultos, tendemos a adotar os comportamentos, a indumentária e adereços dos que nos rodeiam. Por isso eu andava algumas vezes de socas, nos dias de calor, confecionadas por mim, com a ajuda de algum amigo mais velho. Mas depressa as atirava para um canto, porque, no verão e no outono, o que eu queria mesmo era andar descalço, correr pelos caminhos de terra traçados pelo meio dos campos, na companhia dos da minha idade. E a única forma de não ficar para trás era libertar-me daqueles espartilhos que me empecilhavam os movimentos.
Algumas vezes espetava-me num pico de alguma silva seca, mas não podia dar parte de fraco, tinha que ser como o Neca Pinto, que conseguia andar descalço sobre chão áspero de estrepes, como eram aqueles onde se tinha acabado de cortar o mato. Ele, de tanto calcorrear, nesses inamistosos pisos, com feixes de carqueja às costas, que sua mãe talhava a golpes esforçados de fouce, tinha uma camada calosa na planta dos pés que nem um arame se lhe espetava. Calos era coisa que lhe não faltava, nos pés como nas mãos, talvez até os tivesse na alma, impedido de ser menino, para compensar com o seu labor forçado a incapacidade precoce de seu pai, sobrevinda por uma topada da vida. Mais tarde a vida ensinou-me que os pobres levam sempre mais topadas dos que os ricos e têm sempre muito mais dificuldade em fazê-las sarar.
A topada, no sentido literal do termo, era um acidente muito frequente para quem estivesse pouco afeito a andar descalço pelos caminhos. Acontecia sempre que não levantássemos bem os pés e batíamos então com as pontas dos dedos numa pedra mais saliente, normalmente era a falangeta do polegar que ficava coberta de sangue e com a unha levantada, o mais afetado por ser o da frente. Eu não gostava nada de topadas, não só por serem dolorosas , mas por ter ainda de as esconder do meu pai, que nunca me queria ver descalço.
UM LAVRADOR DE SAPATOS (pp. 79-83)
Irritava-se por o sobrinho não lha querer mostrar, como se tivesse algo a esconder-lhe. Ambos sabiam que ela estava magra, mas o Miguel, que vinha ali todos os domingos à tarde, à casa onde nascera, visitar a mãe, aproveitava para mandar o Manuel abrir a porta da vaca para a ver cá fora. Nas tardes soalheiras, ao domingo, era costume os lavradores soltarem os bois no quinteiro onde sempre havia uma pia de xisto ou granito com água para o gado beber. O Manuel aborrecia-se por o tio o culpar reiteradamente da magreza da vaca e foi por isso que, naquele domingo, se recusou, nos seus dezoito anos, a abrir a porta à leiteira, limitando-se a mostrar-lhe, orgulhosamente, as duas bem tratadas juntas de bois.
O Manuel habituara-se, desde muito cedo, com a perda do pai, quando tinha apenas oito anos e do avô aos quinze, a ser o único varão naquela casa onde vivia com a avó, a mãe, uma tia e duas irmãs. Desde os quinze anos já lhe vinham a desagradar os conselhos do outro tio, do António, que se imiscuía nas tarefas mais comezinhas do quotidiano, da casa até ao negócio das madeiras das sortes ou à compra de uns bois. O Manuel queria desenvencilhar-se da tutela do tio António e da de qualquer outro tio. Então não viam eles como crescera e sabia organizar o seu serviço?
Na década de vinte do século passado havia, em toda a minha freguesia, duzentas e vinte e cinco cabeças de gado bovino, nas quais se incluíam apenas quatro vacas leiteiras. Por esse tempo os lavradores interessavam-se só por bois para trabalho que eram vendidos, após alguns anos de jugo, depois de engordados. Curiosamente as quatro vacas leiteiras eram pertença de bem minguados lavradores, proprietários, apenas, de um ou dois pequenos campos, que vendiam o leite para alimentar pessoas idosas e doentes ou até uma ou outra criança que se agarrava mal ao caldo com broa.
O leite espremido do úbere da vaca da casa da Estivada de Cima que tinha sido comprada pelo Miguel, por ordem dos dois irmãos do Brasil, e ali propositadamente aquartelada, a cargo do novo homem da casa, destinava-se ao consumo da mãe dos “brasileiros”, embora todo o remanescente ficasse à disposição de quem dele quisesse fazer uso. Na verdade os dois irmãos “brasileiros” do Miguel eram já, por esta altura, dois emigrantes de sucesso no Rio de Janeiro. O primeiro, o Manuel, que tinha saído de casa, com catorze anos, em agosto de 1889, tinha o tio Francisco, no Rio de Janeiro, à sua espera, quando lá chegou, no dia 4 de setembro desse ano. Seguiram-se-lhe, na aventura, o Vicente, em 1892 e o malogrado Joaquim, dois ou três anos depois, tendo perecido de doença quando acabara de fazer dezanove anos.
O Miguel era o irmão predileto que os “brasileiros” tinham deixado em Portugal, quase um delegado ou procurador, sobretudo depois do falecimento do José, com trinta e nove anos, o irmão primogénito, pai do Manuel da Estivada..
A prosperidade daqueles dois irmãos no Rio de Janeiro tornou-se notória, sobretudo quando ambos resolveram construir um palacete de férias, luxuoso para a época, mesmo ao lado da casa onde tinham nascido e crescido, concluído em 1914, meses antes do falecimento do pai. As viagens, em navios a vapor, com escala em Leixões, eram cada vez mais confortáveis e, com a nova casa, era agora raro o ano em que não passavam férias nas Medas, em anos alternados, o Manuel só com a esposa e o Vicente com toda a sua prole. Sempre que chegavam eram visitados pelas pessoas do poder da freguesia, do Padre ao Presidente da Junta, não faltando pelo meio o Regedor. E não iam sem resposta animadora, prometendo e cumprindo, com donativos de vulto, para a aquisição de instrumentos em falta na orquestra da terra, para a construção da primeira estrada da freguesia, para a ereção da torre sineira, para além de muitos outros pequenos benefícios.
Mas sem o aval do irmão Miguel, nenhuma obra era comparticipada pelos “brasileiros” que tinham nele os seus olhos e os seus ouvidos.
A freguesia, muito montanhosa, exígua de solo arável, obrigou a um forte fluxo migratório para o Brasil, sobretudo depois da libertação das populações escravizadas e da implantação da República neste país irmão, em 1888 e 1889, respetivamente. Ao incremento desta onda migratória, neste período, não será estranha a imposição definitiva da navegação a vapor, cada vez com maior capacidade, mais segurança, conforto e previsibilidade no tempo de viagem. Já não se ia de barco à vela, em penosas viagens que podiam demorar dois meses, sujeitas a naufrágios. Num barco destes tinha emigrado para o Brasil o pai do Miguel e dos outros oito irmãos, João Gonçalves Viana, na década de cinquenta, tendo-se demorado por lá o tempo suficiente para se elevar ao patamar que lhe permitiu casar na casa da Estivada, falida mas com estatuto.
Mesmo os maiores lavradores das Medas, trabalhando de sol a sol, só se davam ao luxo de calçar uns sapatos, para entrarem na Igreja, em dias festivos ou numa ida ao Porto. O Miguel Viana era o único lavrador das Medas que calçava sapatos à semana, e não precisava de se sujar no trabalho, porque tinha entregado toda a lavoura a três caseiros. Aceitou até a nomeação para Presidente da Junta no mandato de 1919 a 1922, na crença de que poderia assim acelerar a promoção da terra.
Aquilo só lhe trouxe chatices e depressa se apercebeu que lhe era mais de feição trabalhar por fora, instando os irmãos do Brasil a ajudarem a freguesia. Eles, depois que construíram o palacete de férias, vinham mais vezes a Portugal , mas viriam ainda com mais frequência se não tivessem que suportar aquele incómodo trajeto, pelo rio acima, num frágil valboeiro, desde a Ribeira do Porto até ao embarcadoiro do Carreiro. Depois era preciso ainda um carro de bois para os trazer, ao longo de um caminho pedregoso, do Carreiro até ao palacete.
Mas não era só para sua comodidade que os “brasileiros” da Estivada estavam dispostos a contribuir para a chegada da estrada às Medas, era também por quererem bem à terra que lhes tinha sido berço. Nas cartas que, do Brasil, escreviam ao seu irmão Miguel, não deixavam de lhe lembrar que não fazia sentido avançarem com o seu contributo enquanto os poderes públicos não dessem o primeiro passo, definindo o seu traçado e elaborando o respetivo projeto.
Por isso, aproveitando a ocorrência da festa do Senhor, na freguesia, no dia 21 de setembro de 1924, o Miguel da Mota deu, em sua casa, um grande jantar, em honra do deputado Correia Gomes, a quem empenhou em favor da estrada, junto do governo. O deputado, inebriado pelo lauto jantar, a que não faltaram as melhores carnes e os melhores vinhos, havia de lhe prometer que tudo faria, em Lisboa, para trazer tão útil e desejada obra a Medas. E foi isso que o Miguel da Mota transmitiu a seus irmãos, numa missiva que lhes mandou para o Rio de Janeiro, logo na semana seguinte.
Em 1925, o Miguel, amuado por o sobrinho não lhe ter mostrado a vaca, naquele domingo soalheiro, dele fez queixa ao irmão Vicente, enquanto seguiam naquele ronceiro e incómodo carro de bois, a caminho do barco que os esperava no Carreiro para os conduzir até ao Porto, de onde seguiriam para o vapor, de regresso ao Rio de Janeiro, depois de mais umas férias de três meses por cá. Não se sabe como decorreu a conversa, certo é que, no dia seguinte, o Miguel mudou a vaca, da Estivada para a sua casa, na Mota, incumbindo-se a partir dessa data, de mandar o leite à sua mãe, minha bisavó paterna. Mas a vaca, se mal comia na Estivada, mal continuou a comer, mesmo vendo-se num aido novo, e morreu passados poucos meses, de mal desconhecido.
Não era só a falta de uma estrada que aborrecia os irmãos do Miguel, quando por cá passavam férias, era o telefone que teimava em não chegar e a luz elétrica que se sabia estar ainda mais distante. Para eles , habituados a todas as comodidades, na Rua do Uruguai, no Rio de Janeiro, que estavam dispostos a despender significativas comparticipações para estas obras, este atraso era inaceitável. A estrada, impulsionada por um grande subsídio destes brasileiros da Estivada, chegou, em 1930, à Igreja das Medas, finalmente. Ao mesmo tempo eles mesmos, assumiram integralmente o custo total da construção da torre da Igreja.
Não admira que, em 1933, a freguesia lhes tivesse dispensado, na sua primeira viagem de automóvel, do Porto de Leixões às Medas, uma receção festiva, com a estrada engalanada no lugar de Canas, foguetório e a atuação da Banda de Música de Lever.
No centro daqueles festejos estava o tio materno do meu pai, o Miguel, eufórico e orgulhoso da prosperidade dos irmãos. Tinha razões para isso, ele que, no decurso da obra da estrada, não se cansava de trazer de casa um gigo com broa e garrafões de vinho que dava de merenda aos trabalhadores.
O telefone só havia de chegar em 1936, quanto à rede de energia elétrica, empancada pelos constrangimentos da 2ªGuerra Mundial só em 1947 se viram as primeiras lâmpadas acesas nos lugares principais da freguesia. Do Brasil, apagado o meu tio avô, o Vicente, por morte repentina, em 1937, foi-se extinguindo a chama que deu alento à freguesia, durante quase três dezenas de anos, embora o irmão Manuel, que faleceu em 1964, continuasse a ajudar a terra natal, mas com contributos bem mais modestos, porque tinha menos riqueza que seu falecido irmão. As obras da residência paroquial e a instalação da rede elétrica beneficiaram dos seus contributos. Era costume, sobretudo no período da Guerra Civil de Espanha e da 2.ª Guerra Mundial, todos os anos, ser distribuída, pelos mais pobres da freguesia, uma verba de um conto de reis ou mais, fruto da sua generosidade.
O Miguel Viana, o lavrador de sapatos, que morreu na sua casa do lugar da Mota, em 1953, depois de passar pela indizível desdita de assistir à morte dos seus dois filhos e de três netos, ainda encontrou energia para dirigir as obras da reabilitação da residência paroquial, em 1948.
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Notas do editor:
(*) Vd. poste 28 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...
(**) Vd. postes de;
(*) Vd. poste 28 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...
(**) Vd. postes de;
24 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa
22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá
19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados
17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo
15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca
12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo
10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné
12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...
22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá
19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados
17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo
15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca
12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo
10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné
12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...
(***) Último poste da série > 7 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22519: Notas de leitura (1379): Índice e contracapa da obra "Os Números da Guerra de África", de Pedro Marquês de Sousa (Guerra e Paz Editores, 2021, 384 pp.): "Vale a pena ler"! (A. Marques Lopes, cor art ref, DFA)
5 comentários:
Caro Luís Graça
Estás a tratar deste assunto (do meu livro) com tanta insistência, dispensando-lhe tantas anotações e encómios que ainda vais arranjar maneira de eu vender os livros todos e ter que encomendar à editora mais uma fornada deles. Eu gosto do meu livro, mas nunca me passou pela cabeça vender tantos em tão pouco tempo, e tal sucesso não será, apenas, resultado das suas virtudes, mas também deste teu trabalho promocional.
Obrigado
Um abraço
Carvalho de Mampatá
Curiosidade.
Qual o significado daquelas grandes bandeiras brancas? E qual o significado daquela cruz a vermelho numa das bandeiras?
As bandeiras brancas significariam a substituição de uma unidade já farta por outra mais fresca, ou o acto simples de render-se, ou ainda simplesmente o acto de regressar?
A cruz é semelhante a uma cruz pastoral de Papa sem a figura de Cristo, o que é que queria dizer, sendo Mampatá uma tabanca muçulmana fula?
Abraço
Valdemar Queiroz
Caros amigos,
Dar uma topada, ninguém gosta, tanto a real como a metafórica. E topada por topada vamos falar da topada do Malam um colega de infância em Fajonquito.
O Malam, um jovem do campo, como todos nós naqueles fatídicos anos da guerra e de misérias, por ocasião de uma festa qualquer, recebeu de prenda um par d3 sapatos novos, mas o Malam já estava tão habituado a fazer tudo com os pés nus que dava-lhe uma pena calçar os seus sapatos novos. Um dia, o Malam, deu uma topada tão violenta que ficou com o dedão em pedaços, mas em vez de chorar ou de lamentar pelos dedos machucados e sem unhas disse aos colegas uma frase que, até hoje, ficou na mente de todos: "Aííh...Que sorte a minha, se tivesse calçado os meus lindos sapatos concerteza que se iam estragar hoje".
Um abraço amigo,
Cherno Baldé
Deliciosa esta tua estória, caro Cherno. Quanto ao significado daquelas cruzes , meu caro Valdemar, não me lembro, mas vou ver se alguém se lembra. Não me parece, de todo o modo que aquilo constituísse qualquer alusão ao cristianismo.
Um abraço.
Carvalho de Mampatá
OK Carvalho, seria interessante saber e o significado das bandeiras brancas também.
Não tenho a certeza, mas julgo já ter visto um Papa andar com uma cruz parecida.
Um abraço e boa saúde
Valdemar Queiroz
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