
Foto: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados
1. Texto de Manuel Maia (*), ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine:
Assunto - O 'trauma' da notícia da minha mobilização (**)
Estava eu em Terras de Viriato, mais propriamente no RI 14, na qualidade de cabo-miliciano, (posto inventado pelas Forças Armadas Portuguesas para que o país tivesse sargentos a trabalhar pelo preço de soldados...), tendo por função a instrução de recruta a homens que na sua quase totalidade iriam "bater com os costados" numa das três frentes de guerra em que Portugal estava envolvido desde 61, quando recebi a notícia, esperada, da mobilização.
A "ordem de serviço" foi de 22.02.72 e no seu artigo V, da pag. 265, sob o título NOMEAÇÃO DE PESSOAL PARA O ULTRAMAR, reproduzia a imposição de qualquer olissiponense figura, em enviar este vosso amigo, primeiramente para a cálida planície alentejana - mais propriamente como inquilino temporário do antigo convento entretanto transformado em quartel designado por RI 16 - para aclimatação(?) aguardando voo para a nossa querida Guiné.
Acabaria por ser interessante a minha passagem por Évora, cidade de que aprendi a gostar, e tive a felicidade de conhecer o comandante da unidade mais castiço que se possa imaginar...
De nome J... A... Pinheiro, coronel, tinha a seu cargo a bandeira da defesa dos cabos-milicianos(ao que constava teria uma filha casada com um...) e algumas vezes fazia reuniões com todos os graduados do batalhão 4610, "obrigando" o seu ajudante de campo a ler as inúmeras exposições que fazia para o ministério da tutela,reclamando a extinção do posto e promoção automática a furriéis,logo que acabada a especialidade, dos formandos do curso de sargentos milicianos...
Era um homem bom que estaria, creio, já bastante perturbado, provavelmente pelos etílicos vapores e, porque não dizê-lo,reflectindo ainda a vivência de campanhas anteriores...
Naquele 22 de fevereiro fomos quatro os recrutados para África, o Moreira e o Martins para Angola, e este vosso amigo e o Navega para a Guiné.
Fomos muitos a tomar estes destinos bem como Moçambique, nos outros dias em que
nas secretarias das companhias, nos eram entregues as cópias das "ordens de serviço".
Ao meu grande amigo José Galeão, meu colega do Instituto Comercial do Porto calharia em sortes aquilo que sempre aspirara,Angola... Tinha lá familiares que depois lhe arranjariam colocação em zona de paz...
Quando me saiu Guiné na rifa,disse-me: "Trata de arranjar o caixão"... Coitado do Zé acabaria por morrer sob um montão de toros de árvore num estúpdo acidente...
No dia seguinte seria o Barbosa que foi para o Biambe e o meu homónimo de Coimbra que rumou para Encheia (as outras duas companhias operacionais do nosso batalhão de Bissorã).
Foi a sorte de cada um, pois o Maia de Coimbra acabaria por levar um tiro de ricochete que lhe anulou a visão de um dos olhos e criou problemas de mobilidade...
Penso nisto muitas vezes... E se não tivesse ido para a Guiné, como seria?
Necessariamente diferenta mas poderia ter sido bem pior,muito mais traumatizante...
Assim, a sorte, destino, acaso, eu sei lá que mais, proporcionou-me o prazer que hoje tenho de estar aqui a conversar com a malta da Guiné, coisa que não acontece com o "pessoal de Moçambique ou Angola" ...
As visitas ao novo país, já efectuadas por muitos camaradas, evidenciam uma diferença pela positiva no trato daquelas gentes e no seu relacionamento connosco.
Enquanto não for viável a concretização do sonho de lá regressar,um dia, vou podendo trocar impressões com os tabanqueiros graças ao Luís, ao Vinhal e ao Briote que nos facultam este espaço extremamente saudável que de quando em vez sofre um ligeiro abalo para comentar as atoardas dos bandos de Almeidas Brunos (...).
Tenho muito orgulho de ter sido um guinéu, combatente entre tantos. Se não fossem as sortes, não teria a sorte de ver o fabuloso Cumbidjã, o imenso Geba, e sobretudo a afabilidade daquelas gentes com quem lidámos.
Hoje estou agradecido ao destino por me facultar conhecer a Guiné. Apesar de ser considerada a pior das três frentes, não posso dizer que tenha ficado traumatizado...
Obviamente não gostei, teria preferido rumar a S. Tomé ou Timor, mas...
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Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3890: Tabanca Grande (119): Apresentação de Manuel Maia ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)
Vd. último poste da série > 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4095: O trauma da notícia da mobilização (5): Quatro depoimentos (Magalhães Ribeiro)